O céu se fechou para o Padre Beto, e ontem, dia 29/04, caiu o relâmpago da excomunhão, ato inédito para a diocese de Bauru, outrora notória
pela ortodoxia de seu clero. Sendo assim, ele já é, à sua maneira, um mártir da
repressão hierárquica. “Ainda bem que não tem fogueira”, comentou, lembrando
que, séculos atrás, esse seria precisamente seu destino. Em nossos dias de
tolerância, e graças às pressões de um mundo secular, a Igreja teve de voltar
às boas práticas de sua origem: limitar-se às sanções eclesiásticas. É bom que
seja assim. A hierarquia tinha algo a aprender com o mundo.
Pe. Beto defende um Cristianismo um tanto... pós-cristão. No
campo dos costumes, sexo livre. No campo da teologia, incerteza sobre o além-túmulo. Há como compatibilizar o pensamento de Pe. Beto com o ensinamento
oficial da Igreja Católica? Não há. Nesse sentido sua excomunhão era inevitável.
Uma certeza matemática. O que surpreende é sua ordenação. As autoridades
clericais não foram capazes de perceber o seminarista com ideias avessas a tudo
o que elas pregam. Ponto negativo para o departamento de RH.
Do ponto de vista institucional, a postura do bispo D.
Caetano foi perfeita. Embora considere o Pe. Beto “brilhante”, explicou muito
bem sua incompatibilidade com o ensinamento atual da Igreja, a qual ele jurou
obedecer (mas e a discordância não pode ser, ela também, um serviço?). Pe. Beto
“avançou no sinal” (será que o sinal um dia abrirá?), foi além do que a
doutrina da Igreja permite. Tendo sido já advertido em privado, e tendo tornado
públicas suas ideias, coube à Diocese pedir uma retratação.
Pe. Beto é o rosto da Igreja para muita gente. É preciso cobrar
algum tipo de coerência entre suas opiniões e as da instituição que ele
representa. Se lembramos ainda que ele tem um foro privilegiado para emitir
suas opiniões, aumentando seu alcance, justamente por causa desse suporte
institucional, então a cobrança de disciplina fica ainda mais justificada.
Enfim, a excomunhão foi justa. Mas foi sábia? A Igreja não
vive seu melhor momento na História. Com razão, suas posturas e diversos ensinamentos
são publicamente questionados. Cabe a nós, católicos, e de maneira especial a
nossos líderes visíveis, abrir-se a essas questões e acolher quem as levanta. O
bom professor não é aquele que manda para fora da classe quem levanta objeções,
mas aquele que dá as respostas que põem fim às dúvidas. Precisamos ver D.
Caetano – e não só ele, mas todos os bispos do mundo – dando os motivos pelos
quais Pe. Beto está errado. Que dialoguem com ele nesse nível, no nível das
questões levantadas, e não no da obediência devida aos superiores. Queria ver o
Bispo, ou mesmo outros sacerdotes, fazendo seus próprios vídeos, discordando,
enfrentando as opiniões de Pe. Beto em seu próprio meio. Aí sim teriam alguma
esperança de conquistar as almas seduzidas pelo papo de Beto à mesa do bar.
Afinal, o problema do Pe. Beto, se houver, não foi ter
desobedecido aos superiores. Suponha que ele esteja certo em suas doutrinas; então
será futuramente canonizado um confessor da fé. “Mas é óbvio que ele está
errado!” – Aí está o cerne da questão. Então a medida principal não é ele ter “avançado
o sinal”, mas ter dito coisas erradas. Ele as ter dito em voz alta é um dado
relevante, mas não é o principal.
Um amigo meu, católico, foi aluno de Pe. Beto, e demonstrou seu
apoio por ele nas redes sociais. Conheço muitos outros como ele. A quantidade
de Betos, tanto no clero quanto no laicato, supera em muito os
defensores aguerridos da ortodoxia oficial. Talvez estejam completamente
errados, navegando a esmo em meio a um mar de heresias; talvez estejam certos,
apontando o dedo para uma nudez milenar que só agora se tem a coragem de notar.
Talvez as duas coisas convivam em cada alma indecisa que acredita na Igreja mas
não em tudo que seus hierarcas dizem.
Infelizmente, cultivou-se uma cultura do silêncio na Igreja.
Enquanto não se abrir a boca, não há heresia exterior, e portanto não cabem sanções.
O real pecado do Pe. Beto foi exatamente ter falado em voz alta o que tantos
outros pensavam. E de fato, falar tais coisas sendo padre tem sim muito de
imprudência e não deve ser incentivado; cabe uma punição. Mas o buraco é mais
embaixo: se é realmente com a sã doutrina que se preocupam as autoridades, e
não com uma mera obediência exterior e tipicamente romana; se eles querem almas
e não números para o IBGE, então ou o rapa não pode parar no Pe. Beto, ou o
rapa não é a solução, talvez nem mesmo
para o Pe. Beto.
Ao contrário de D. Caetano, não vi brilhantismo algum nos
vídeos polêmicos do Pe. Beto. Repetia muitas opiniões comuns, clichês do mundo
contemporâneo, sem dar a eles nenhuma formulação persuasiva ou defesa cogente.
Rejeitava formulações tradicionais (“Céu”, “Casa do Pai”) como antiquadas,
ultrapassadas, impossíveis hoje em dia, mas sem dizer por quê. Seu talento aparece em vídeos mais comedidos, que agradariam qualquer diocese. É a excomunhão,
mais do que o brilhantismo do excomungado, que confirmará a ala mais
progressista da Igreja em suas dúvidas e dissensos. Quem ousa não aceitar tudo
só porque a hierarquia de séculos anteriores o declarou teve sua boca calada. Suas
palavras continuaram sem resposta. A Igreja mostrou sua face burocrática, fria
e impassível; as rodas implacáveis do direito canônico giraram, com direito
mesmo a juiz eclesiástico. Nenhuma palavra ou gesto de entendimento foram
ofertados para aqueles que se identificavam com o que Pe. Beto dizia.
A Igreja tem um sério dilema à frente: o que fazer com as
centenas de milhões de Betos que existem no mundo, cada vez menos dispostos a
tolerar uma hierarquia doutrinalmente autoritária, que faz demandas pesadas e,
descobre-se, é capaz de encobrir os próprios crimes de forma vergonhosa, só para
não denegrir a imagem da Igreja. A hierarquia pode tapar ouvidos e os olhos e
mandar todo mundo embora. É seu direito; o catecismo está aí e os incomodados
que se mudem. Pode fingir que não há nada de errado, que o problema é com o
resto do mundo que se recusa a obedecê-la. É a saída mais confortável, que
exige menos disposição de mudança; e que garantirá a obsolescência. Ásia e
África ainda dão influxo positivo à Igreja. Mas e quando a insatisfação
ocidental chegar lá?
Ou então ela pode descer do palanque, reconhecer que também
tem muito a aprender (afinal, é humana), e quem sabe, aos poucos, conquistar o
direito de liderar ao mesmo tempo em que se despe da pretensão de mandar. Não escrevo
nada disso como uma crítica a D. Caetano, cuja nota oficial foi justa e
honesta. Tampouco teço loas ao Pe. Beto. É que por trás desse Beto há outros novecentos milhões, sentados à
mesa de um boteco, com a cerveja na mão. Quando decidirem, como ele, ser transparentes e abrirem a boca... haja canonistas!
***