Em tempos passados, entristecia-me um pouco ver índios na TV usando bermuda, havaiana, vendo TV, guiando carro. Achei uma graça algo melancólica ao saber que os índios isolados do Xingu, que preservavam diversos de seus rituais e aceitaram colaborar para o filme Kuarup, pediram como pagamento uma antena parabólica. Um pouco desse sentimento ainda persiste em mim, mas hoje luto bravamente contra ele. Que pena - pensava então; índio de verdade tem que pintar o corpo, andar nu, amarrar pênis com cordão e fazer as danças rituais que sempre fizeram. Ao abandonar esses costumes, estariam perdendo sua cultura tradicional, a unidade estética que os distinguia de nós; eram menos índios. Na verdade, eles estavam é se afastando da unidade e pureza cultural e estética que existia apenas na minha cabeça, mas que nunca caracterizou povo algum, ao contrário do que a mitologia romântica que sobrevive até hoje gosta de supor.
O que a história nos mostra é que todo povo é um misto de elementos vindos de todas as partes, e com base neles cria coisas novas. O povo judeu é um bom exemplo disso; exemplo acessível a todos que tiverem uma Bíblia em casa. A cultura desse povo que saiu da Mesopotâmia (a referência aos "querubins" no Genesis aponta para uma entidade da mitologia babilônica) vai incorporando uma série de traços dos diversos povos com quem se relaciona: egípcios, fenícios, gregos, persas, babilônicos, romanos. Essa inculturação constante só era condenada quando botava em risco o culto a Deus; de resto, ela foi mesmo incorporada na relação dos judeus com Deus e com a religião em geral (o sacrifício nas alturas, a construção do Templo - similar a templos egípcios e a outros - que sucedeu essa prática ainda associada ao paganismo, o uso do grego, e por fim a incorporação à cidadania romana - mencionada, por exemplo, por S. Paulo). Leituras mais detalhadas revelam diversos outros elementos de fusão e intercâmbio cultural. Isso de um povo particularmente cioso de manter sua própria cultura e que cria impedimentos teológicos à mistura e à miscigenação. Os demais povos do mundo carregam consigo ainda mais elementos de outras culturas.
A ideia da pureza cultural é falsa; e quando a aplicamos apenas aos outros (como os índios) e não a nós, é condescendente ao extremo. Por acaso os índios deveriam ser peças de museu vivas para nossa contemplação, ou ainda para alimentar a vã fantasia de que existem enclaves ainda intocados pela cultura ocidental que se espalhou pelo mundo? Claro que não. A influência cultural é um fenômeno incontornável quando há comunicação entre diferentes culturas. Nosso mundo globalizado lembra o Oriente Médio do início da era cristã: uma colcha de retalhos de povos todos misturados, comunicando-se em várias línguas mas com uma em comum, o grego. Por acaso um egípcio estava traindo seu povo ou sua cultura ao adotar o modo de se vestir helênico? Não, ele estava ajudando no desenrolar dela, assim como o índio que veste shorts e assiste televisão.
O que é, então, culturalmente falando, o índio? Ele é aquilo que cada um deles escolher adotar ou ser. Somos menos "brasileiros" (aliás, o que é isso?) por comer mandioca ou relaxar numa rede? Ah, mas os brasileiros são essa mistura, então tá valendo... Mas e os filhos e netos de portugueses que primeiro adotaram esses costumes estrangeiros? Estavam eles matando sua cultura ou criando uma nova, ou nem faz sentido falar de uma coisa sem a outra? No final das contas, preservar um modo, uma língua ou uma música para manter a pureza de uma cultura não faz sentido; mesmo porque esse passado supostamente puro já não era nada puro, e só surgiu porque muita gente violava sem receio as regras que os tradicionalistas do presente defendem.
Que triste espetáculo assisti na televisão no ano passado! Uma certo tribo tinha um ritual de pesca, mas devido à construção de uma barragem próxima, não chegavam mais peixes ao trecho do rio em que os índios pescavam. A FUNAI então trazia os peixes de caminhão e os soltava naquele trecho de rio para que os índios, alguns metros abaixo, pudessem pegá-los. Há infantilização mais óbvia do que essa? A cultura das diferentes tribos é tratada como uma peça de museu a ser preservada; da mitologia à comida. Essa preservação artificial, que é diferente da preservação natural que ocorre quando fazemos as coisas de uma certa maneira porque julgamos que ela é boa, congela a cultura e infantiliza seus membros. Nessa onda, até mesmo a língua geral, codificação e união de diferentes línguas indígenas, feitas pelos jesuítas, e que permitiu que todos os povos se comunicassem com mais facilidade e tivessem uma língua escrita, é criticada como "poluição" das culturas originais.
Os índios são descendentes de povos que estavam aqui antes da chegada dos portugueses; que se organizavam em tribos, sociedades e nações. Às nações e tribos que porventura ainda existam, e que perderam suas terras pela violência do Estado português ou do brasileiro, deveriam ter seus direitos reconhecidos. Mas não por meio de reservas e políticas culturais que os mantenham na eterna infantilidade.
O que quero hoje aos índios é que recebam o reconhecimento de que são homens como nós, capazes de tomar suas próprias decisões. Sendo assim, deveriam receber suas terras ou como propriedade suas dentro do Brasil ou mesmo como nações plenamente independentes do Estado brasileiro, e daí que façam com elas o que bem quiserem: cultivar, vender, retornar à caça e à coleta, desenvolver softwares a impostos baixos, etc. É isso que desejo aos índios do Brasil. Se quiserem TV à cabo ou não, se quiserem pintar a cara ou não, se preservarem o tupi-guarani ou alguma outra ou adotarem o português ou mesmo o inglês, pouco importa. Isto é, importa apenas na medida em que importar para eles. Seria terrível para a minha cultura abrir mão de restaurantes japoneses, do jogo de futebol e do rock; não posso, pensando assim, querer que membros de outros povos pensem diferentemente. Eu não me defino em nada pelo folclore de camponeses portugueses de um passado perdido; e nem eles precisam se definir por alguma dança da chuva ancestral.