A beleza da discussão filosófica reside no fato de que premissas, argumentos e
reflexões são – e devem ser! – publicamente abertas ao exame crítico e à
discordância refletida. Diferente da experiência religiosa, por exemplo, em que a experiência do sagrado “acontece”, fundamentalmente, na vida interior de uma consciência singular
privilegiada pela revelação, a filosofia emerge do lapidar trabalho do diálogo refletido, em outras palavras, é um empreendimento "político" por excelência.
Ademais, não dá para realizar um exame crítico público acerca
da validade de premissas estabelecidas pela experiência religiosa, nosso acesso à
experiência religiosa de outra pessoa é necessariamente “mediado” pelo conjunto
simbólico transmitido por testemunhos orais ou textuais acumulados ao longo da tradição histórica. Nesse
caso o que está efetivamente em jogo é a liberdade de crença: acolhemos a mensagem sagrada da
experiência do profeta por um genuíno salto de fé dado por uma relação
viva do testemunho exemplar mediante a transformação da conduta
“convertida”.
No caso do filósofo, pelo contrário, só faz sentido o exame
crítico na medida em que todo fundamento da obra é posto à luz do dia, isto é,
da “razão” – cuja característica peculiar implica a reflexão pública e o
encontro do seres pensantes e falantes. A beleza da discussão em filosofia reside, portanto, em sua
“publicidade” e na pluralidade de opiniões relativas em busca da verdade da realidade.
Quer criticar um filósofo? Ora, percorra, pari passu, suas obras e refute a inconsistência dos seus argumentos, aponte a invalidade
dos pressupostos e, em última análise, demonstre que a conclusão não segue das
premissas. Tudo isso dá trabalho, mas é gratificante e eleva o debate. Criticar
traços específicos da pessoa a fim de se tentar demolir a obra não resolve, só demonstra o quanto se é intelectualmente pobre e
moralmente vigarista. Filosofia é um empreendimento de seres livres, pensantes e falantes, não uma atividade de canalhas mal-intencionados.
A discordância acusatória demonstra o quanto se vive mergulhado e assombrado por um
imaginário distante da realidade. Toma-se a realidade de um filósofo, em um primeiro momento, por sua produção filosófica “revelada” em seus escritos – embora o filósofo
não se reduza aos seus escritos, o texto possibilita o primeiro acesso ao seu
lógos, mas não determina-o em sua totalidade -- a tensão dessa
problemática foi um tema constante na história da filosofia, e percebido desde o início por
Platão (ver Carta VII, 341c-e e 344 c-d e Fedro, 278 b-e).
A discordância refletida enriquece a filosofia e eleva o
patamar do debate público, a discordância acusatória – e/ou difamatória – anula
a riqueza dessa pluralidade e impõe-nos a homogeneidade desértica do perturbado
mundo dos palpiteiros. Pincelar dois ou três ditos de uma obra filosófica ou da
mera opinião de um filósofo também não ajuda, filósofos são falíveis. Sócrates
foi prova viva da possibilidade de falência do discurso reflexivo – e morto pela ostentação do discurso difamatório –, e, a fim de revelar essa fragilidade, pagou com a
própria vida.
Um exemplo, posso acusar – e difamar – Heidegger de canalha por
sua aproximação com o nazismo, mas criticar a filosofia de Heidegger requer
outro tipo de esforço. No caso da sua relação com o nazismo só a própria
consciência de Heidegger poderá julgar o grau de equívoco e arrependimento –
claro que podemos fazer um juízo moral acerca dessa relação –, mas no caso das
premissas de sua filosofia o problema é de outra natureza: na filosofia tudo
está aí (pois deve estar; caso contrário não seria filosofia) disponível, temos
acesso direto aos pressupostos fundamentais que sustentam a filosofia
heideggeriana (seus textos).
Pode-se ter uma relação afetiva com a obra e os escritos de
Heidegger – julgar que não gostamos dele por causa do seu estilo truncado, etc
–, no entanto, a única forma de demonstrar que Heidegger, o filósofo, está
errado não é outra senão o trabalho de apontar o erro.
Usei Heidegger a fim de ficar apenas com um exemplo distante, mas isso serve para
qualquer um de nossos desafetos! Inclusive -- e sobretudo -- os nossos filósofos brasileiros constantemente massacrados por palpiteiros que nunca se deram ao trabalho de percorrer seus textos. A grandeza da filosofia se dá na discordância honesta porque lapidada pelo longo percurso da reflexão. Assim que se constrói uma cultura: no diálogo de gente grande! Enquanto que a sua decadência começa no rumor dos tagarelas.