Interior da Basílica de Nazaré, em Belém-PA |
Durante a idade
das trevas da minha adolescência rebelde (prolongada até demais, segundo o
costume da época), mantive um único elo com a religião e o sagrado: a Virgem
Maria. Não sei se poderia dizer que tinha “devoção” ou “fé”; era um contato,
uma espécie de confiança automática e cega, mas real, tanto que me manteve de
pé em diversos momentos de desespero, impedindo-me de desabar no completo
vazio, embora eu tenha por diversas vezes me aproximado disso. Lembro-me de maldizer
a Igreja e afirmar que a morte era o fim de tudo, mas não recordo um único
período de minha vida em que não rezasse à Virgem Maria. Contraditório, sim, e
inteiramente verossímil.
Eis a origem da
contradição: sou paraense. Ano passado, nessa mesma época, escrevi um texto sobre o Círio de Nazaré, onde descrevia a transformação por que a cidade de
Belém passa durante a quinzena da festa e sua profunda importância cultural
para o povo do Norte. Agora estou aqui de novo, no Pará, no dia do Círio, e o
raciocínio que comecei no texto do ano passado continua a se desenvolver.
Mas comecemos
pelo começo.
*
Um dos meus
passatempos favoritos quando morava aqui era sair para longas caminhadas (isso
ainda era possível dez anos atrás, quando andar pelas ruas não era sinônimo de
ser assaltado), caminhadas que invariavelmente passavam pelo meu local favorito
na cidade: a Basílica de Nossa Senhora de Nazaré. Eu então não me interessava por
religião, ou política, ou qualquer coisa que não fosse “a poesia do mundo”; a
Basílica era um lugar aconchegante, silencioso e que (na expressão que me
lembro de utilizar na época) parecia situar-se em outro tempo. Fora dela, a cidade feia e maltratada; dentro dela,
a beleza, a austeridade e uma curiosa sensação de proteção. Eu não frequentava
bibliotecas: ia para a Basílica ler e rabiscar pseudopoemas, inspirada pelo
ambiente que me remetia para além do meu século.
É exatamente
isso o que um templo religioso precisa transmitir às pessoas: a sensação de que
ali se está fora do tempo, diante de
algo maior do que o ambiente imediato e não condicionado por ele. É de
propósito que falo em sensação e não em convencimento intelectual: a Igreja
visível deve falar aos homens também
pelos sentidos, propondo símbolos que impregnem nosso imaginário e nos
despertem emoções propícias à fé –
como uma obra de arte. Cada igreja, bem como os ritos que se realizam dentro
dela, não deveriam ser menos do que obras de arte: a expressão simbólica do
sagrado, ou ao menos a expressão da sempre insuficiente tentativa humana de
amar publicamente a Deus. Falei algo em torno disso nesse poema.
Sem dúvida,
tomaram parte no meu retorno ao catolicismo aquelas tardes passadas sob o teto
da Basílica de Nazaré e o olhar guardião da Virgem, ainda que eu então não
atentasse à gravidade do que se passava ali. Diferente da maioria das igrejas
mais recentes, a Basílica – com sua arquitetura pensada para torná-la em
símbolo tangível da fé cristã – é um verdadeiro apostolado de pedra dessa fé.
No entanto, nem
só de pedra vivem os corações humanos... Penso no quanto teria sido fácil
jamais ter me afastado da Igreja, se além de me acolherem aquelas belas paredes
eu tivesse sido também intelectual e vivencialmente instruída na fé. Ao invés
disso, tive aquelas aulas medonhas de catecismo que são responsáveis por afastar
9 em cada 10 apóstatas, entre várias outras experiências negativas que por fim
se confundem com a experiência geral de ignorância religiosa do mundo
contemporâneo.
Não tenho
dúvidas de que Nossa Senhora de Nazaré, intimamente conhecida pelos paraenses
como a Rainha da Amazônia, foi enviada por Deus para guardar esse Norte tão
pobre do nosso país. E ela certamente o guarda. Porém hoje, retornando já
adulta a Belém e à Basílica de Nazaré e capaz de entender melhor o que se passa
ao meu redor, vejo com tristeza o quanto os paraenses cada vez mais se
distanciam do sentido real do Círio e da pessoa de Jesus Cristo. As causas
desse distanciamento são um tema que eu não saberia esgotar mesmo se dispusesse
do espaço e do tempo apropriados. Mas não é necessário ser teólogo ou
historiador para enxergar o óbvio: se as pessoas têm cada vez menos em conta o
sagrado e o sobrenatural, é porque também a Igreja as levou a secularizar sua
percepção do mundo. São exemplares, nesse sentido, os casos da Basílica de
Nazaré e do Círio – esses dois espetaculares símbolos cristãos, mas que se vêm apequenando diante da cultura secular, ao invés de combatê-la.
A cada ano que
passa, o Círio firma-se mais como uma idiossincrasia regional, um feriado com
suas particularidades e tradições, que as pessoas repetem um tanto
maquinalmente, sem saberem bem o que fazem ou por quê. (Repito aqui o que disse
no ano passado: com “as pessoas” refiro-me primordialmente à classe média que
não chega a envolver-se na procissão; os romeiros que vão na corda são um caso
mais complexo.) O fato de a festa tomar as ruas e modificar a vida da cidade
por vários dias (além da procissão principal, no segundo domingo de outubro, há
várias outras adjacentes) lança no ar um magnetismo contagiante, motivo pelo
qual não há paraense que não reconheça a experiência do Círio como algo
“mágico, encantatório, sobrenatural”. O que eu gostaria é que não se
empregassem tais adjetivos metaforicamente: o Círio celebra de fato algo sobrenatural e é preciso vivê-lo
com a reverência de que são dignos os grandes mistérios. É preciso, intensamente,
rezar... E não perder de vista que Maria é a Mãe de Jesus, redentor dos homens,
substância da fé cristã, e não alguma genérica “Mãe”, à qual nos apegamos por uma espécie de carência afetiva (ver a partir de 3m30s).
Consola-me saber
que Deus escreve certo por linhas tortas e que em nossos tempos menos é mais, e
é preferível esse contato superficial a contato nenhum com a Virgem e o
cristianismo. O Círio de Nazaré, tendo-se tornado patrimônio cultural do povo
paraense, está arraigado a sua identidade e tem sobre ele uma influência
poderosa. Como comentei anteriormente, há uma parte da população sinceramente
devota e cristã e outra cujo cristianismo é apenas, digamos, cultural, e que
provavelmente já nem teria qualquer relação com a religião se não vivesse em
uma sociedade consagrada à Virgem de Nazaré (vide meu exemplo próprio, que relatei
no início do texto).
O que me dói é
ver quão prodigiosas são as graças que Deus dá aos paraenses, visíveis no
Círio, na Basílica e na fé estranha que insiste em resistir no coração desse
povo – me dói porque é preciso ver também, a cada ano, a cada Missa, tais
prodígios serem tratados com um desrespeito imperdoável! Rezar a Santa Missa ao som de carimbó não vai trazer o povo à Igreja, vai antes fazer com que, no
entendimento desse povo já completamente sem instrução religiosa, a Igreja
identifique-se ao século, perdendo todo o seu peso simbólico e, por fim, toda a
autoridade.
E novamente não me refiro só à ignorância da população pobre, mas à classe média
educada pela televisão, da qual provenho e que, digo de carteirinha, já não faz
a mínima ideia do que há para se fazer em uma Missa a não ser torcer para que
acabe o quanto antes. Porém, tornar a Missa mais “divertida”, disfarçando o
máximo possível seu sentido de Sacrifício, não vai trazer mais ovelhas ao
rebanho. Como diria W.H. Auden, no
one has yet believed or liked a lie. Dizer às pessoas
que o Inferno é uma metáfora é uma imensa crueldade da parte daqueles que
deveriam ser nossos diretores espirituais.
Quem já viu o
Círio de Nazaré pôde testemunhar o quanto esse povo quer se entregar, quer
crer, quer viver a fé, e o faz na medida de suas possibilidades, com uma
sinceridade evidente. Se, ao invés de contribuir com a cultura da
superficialidade e da distração; se, ao invés de privar seu rebanho do peso
real da Revelação cristã, a Igreja o instruísse, o acompanhasse de perto, com o respeito que é sempre incompatível com a condescendência que tapa o sol com a peneira, o povo paraense seria um dos exércitos mais poderosos lutando a batalha de
Cristo. Mesmo com toda a confusão em voga, ele o é; mas poderia ser muito
mais...
A procissão
terminou há algumas horas e a cidade continua imersa na agitação da festa. Neste ano, pela primeira vez, vou embora de Belém com o coração apertado após ter visto o Círio. Há algo de muito errado no ar. Sinto como se tivesse
diante dos olhos um corpo moribundo, do qual muito em breve só restará a casca.
E não sei o que se pode fazer para salvá-lo...
Aparentemente, só
nos resta a oração silenciosa e a súplica individual. E cuidar dos símbolos,
que eles existem para nos orientar nesse mundo. Justamente por isso é que
retornarei a Belém em fevereiro: para casar aqui. Na Basílica de Nazaré. A cada
vida compete um simbolismo pessoal e intransferível: a minha exige que todo
um passado de erros seja entregue no altar da morada que me acolheu quando eu
nem desconfiava precisar dela. Tudo, absolutamente tudo sob os olhos da Virgem
de Nazaré.