Voltando ao debate: parece-me que Faria sequer tocou no ponto central, que é a impossibilidade de derivar qualquer juízo normativo de afirmações positivas sobre os costumes ou a biologia humanos. O exemplo emblemático da minha tese, trazido pelo próprio Faria, é o do nepotismo.
Como ele diz, os homens são naturalmente nepotistas. Para esta discussão, definamos o nepotismo como uma preferência pelos próprios familiares. Ora, tal preferência é, em alguns casos, perfeitamente aceitável, virtuosa e quase obrigatória (imagine um pai que seja completamente neutro e imparcial entre levar ao cinema o próprio filho ou qualquer outra criança do planeta). Em outros casos, contudo, o nepotismo é uma grave falha moral, como no caso de um político que dá cargos a parentes. Em ambos esses casos, o nepotismo é natural, fruto de uma tendência arraigada na natureza humana, nos genes. O que faz dele bom em um caso e mau no outro não pode ser, portanto, seu caráter natural, que ambos os casos partilham. Logo, não é o fato de algo ser natural que determina se um ato é bom.
Em casos como o nepotismo na administração pública, o virtuoso é exatamente contrariar a natureza biológica. De fato, os países mais civilizados e desenvolvidos do mundo são aqueles que conseguiram, entre outras coisas, varrer do costume nacional esse nepotismo político. A cultura política desses povos (em que corruptelas comuns na vida política brasileira são simplesmente impensáveis) reflete um longo processo de aprimoramento moral, que tem como um de seus pressupostos a convicção de que é possível elevar-se para além da mera tendência biológica; convicção comprovada pela prática.
Enfim, o desafio para o naturalismo ético continua de pé, e sinceramente é improvável que Filipe Faria ou qualquer outro consiga vencê-lo (não estou contando vantagem; afinal, quem apontou a falácia naturalista não fui eu!).
Ele se prendeu demais a uma opinião de passagem minha, referindo-me com ceticismo a supostas diferenças de inteligência e capacidade entre as raças humanas, como se isso me tornasse partidário do mais ingênuo igualitarismo, que precisa acreditar dogmaticamente que todos os indivíduos são iguais em tudo. Nada mais longe da verdade; não tenho nenhuma dúvida de que as capacidades individuais variam; e apesar de não crer que existam provas sobre diferenças entre as raças, também não nego a possibilidade. O que penso é que essas diferenças de capacidade são apenas parte da história. Como são raríssimos os que atingem plenamente seu potencial, é perfeitamente possível que pessoas com capacidade inferior atinjam melhores resultados do que outras com maior capacidade. Além disso, o que constitui capacidade menor ou até entrave em um campo da ação pode ser benéfico em outro.
Mudemos um pouco de problema. Faria aproveitou seu texto para comentar o que, na opinião dele, está errado com esse monstro tão querido a que chamamos "direita", e em cujo altar eu também, afinal, sacrifico minhas pombinhas. Detesto o termo, assim como "esquerda", por mascarar sob si um conjunto muito heterogêneo de crenças e valores sem unidade real. Além disso, a rivalidade histórica entre os dois lados cria uma rejeição sentimental automática de um para o outro, o que ocasiona muitas discussões e inimizades espúrias. Todavia, como não dá para travar uma guerra constante contra o uso contemporâneo das palavras (é preciso focar os esforços!), reconheço que minhas posições são classificadas no grupo da direita. Vejamos, então, o diagnóstico que Faria faz do fracasso político desse grupo.
Há igualmente algo de relevante a dizer do ponto de vista político. Joel Pinheiro diz que já participou brevemente no “O Insurgente”, pelo que é razoável especular que não se considera de esquerda. Contudo, se fosse de esquerda, o seu discurso tinha sido exactamente igual. Mesmo a parte onde se opõe à engenharia social seria corroborada pela esquerda (que nunca define o que faz como “engenharia social”).
Isto explica como a direita foi totalmente aniquilada pelo pensamento de esquerda (nomeadamente da new left). A vitória do pensamento igualitário de esquerda foi tão pronunciado que mesmo a direita não consegue fugir desse paradigma. Sem surpresas, por ter de jogar dentro das regras que a esquerda definiu e impôs, por ter de argumentar dentro de uma moldura (framework) igualitária, a direita está sempre a perder campo político porque não tem a força da coerência e persuasão; e perde de tal forma que se transforma em esquerda; tal como é possível de aferir pelo texto do Joel Pinheiro.Não fica totalmente claro o que Faria quer dizer com "igualitarismo". Se for a tese de que todos os indivíduos são estritamente iguais em suas capacidades, não a defendo (nem o fiz em meu texto anterior), e nem, parece-me, a direita em geral. Agora, se por "igualitarismo" ele se refere à proposta de que os homens sejam todos iguais em seus direitos perante uns aos outros, e que sejam tratados e respeitados pelo ordenamento jurídico segundo sua igualdade fundamental, então sua rejeição não é à "esquerda", mas à razão humana enquanto tal.
O que falta à direita não é uma rendição automática a qualquer vício que calhe de ser natural ou comum a um povo, e muito menos aos tribalismos e ao domínio dos superiores sobre inferiores, como se fosse tudo inevitável. Isso é o que sobra; isso é o que tem matado toda oposição aos projetos de esquerda, sejam eles comunistas, socialistas ou intervencionistas. A que me refiro? À falta de um ideal.
Não se pode substituir algo por nada. A esquerda pode estar completamente equivocada, e seu pretenso ideal ser algo detestável (quando se entende o que ele significa na prática), mas ao menos ela tem um. A direita conservadora carece até mesmo disso. Ela sabe do que ela não gosta: do socialismo. Mas também não tem nenhuma aspiração a oferecer. Por isso mesmo é, verdadeiramente, reacionária; ou seja, funciona em reação a mudanças com um objetivo claro (e mascara sua falta de propostas chamando a seus adversários de utópicos, idealistas, teóricos, partidários da razão abstrata, etc.), sem propor nada. "Nossos antepassados faziam assim; nossa tradição ordena que seja assim; nossos genes determinam que seja assim. Paremos de mirar um céu inatingível; baixemos nossa visão a nossos próprios pés. Enquanto ficarmos parados, continuaremos vivos."
Existem diversas formas de conservadorismo. O puramente cultural e o religioso têm seus aspectos negativos (embora eu critique a ambos, eles ao menos visam preservar coisas boas, ainda que sem o espírito animador que as faz boas e que nos faz aderir ao bem), mas o conservadorismo biológico é o pior de todos. Seu olhar nostálgico não se volta para a Idade Média ou para o século XIX, e sim para o tribalismo da Idade das Trevas ou, ainda, para o mundo pré-cristão (qual foi o impacto político do cristianismo, afinal, senão a elevação de todos os indivíduos humanos à mesma igualdade fundamental, acima de diferenças culturais e biológicas?). O que dizer de um ideário que lamenta a instituição do Estado imparcial e impessoal, do império da lei sobre o capricho do soberano? O que ele nos ofereceria como alternativa, dado seu louvor (ou, ao menos, derrotismo) ao nepotismo, ao tribalismo e às demais tendências espontâneas da biologia humana? Onde podemos observar esses "ideais" de forma mais pura, menos poluídos por influências igualitárias ou de esquerda como a filosofia, o cristianismo ou o pensamento político ocidental de S. Tomás para frente? Creio que um bom mostruário são os hutus e tutsis.
Para se contrapor a esse tipo de conservadorismo biológico, que acaba defendendo o tribalismo e quaisquer relações de conflito ou violência existentes, não é preciso ser socialista, de esquerda, e nem defender a intervenção estatal na vida humana; basta crer que a razão humana, e não os instintos, deve ser o guia último de nossas vidas.
A direita, pelo que quero dizer a defesa do capitalismo ou livre mercado, ao contrário da esquerda (que tem abandonado suas velhas bandeiras por percebê-las impraticáveis), tem o embasamento teórico coerente necessário para defender seus ideais. Os valores da criatividade humana, da benevolência e da iniciativa e mérito individuais podem ser concretizados e vividos no mundo real. Eles dependem, entre outras coisas, do reconhecimento dos direitos individuais inalienáveis e iguais a todos, que a tradição ocidental, a única verdadeiramente anti-conservadora, foi capaz de instituir.