Não resisti iniciar esta discussão porque trata de um tema que muito me interessa: a chamada "falácia naturalista", cuja primeira expressão clara foi feita por David Hume. Os partidários da tese da "falácia naturalista" dizem, basicamente, que de uma afirmação positiva (que tenta descrever como a realidade é) não se segue necessariamente nenhum juízo normativo (que tenta prescrever como a realidade deve ser). Isso se opõe a um certo naturalismo ético, que diz que, se a realidade, ou a natureza, ou a natureza humana, é de determinada maneira, então esse fato tem poder normativo; ele prescreve como as coisas devem ser. Ou seja: se algo é naturalmente assim, então ele deve ser assim. Os partidários da falácia naturalista dizem, em essência, que o naturalismo é falacioso. Eu sou um desses partidários.
Filipe Faria, ao contrário, se autodenomina naturalista. Em outras palavras, para ele a realidade tem sim, pelo mero fato de ser como é, um caráter normativo para o ser humano. Se o homem é naturalmente de uma forma, seria ingênuo, utópico e perigoso propor ou sonhar que ele seja de outra forma. Ou aceitamos a própria natureza humana como ela é ou entramos numa luta contra a realidade; estaremos exigindo do homem mais do que ele pode ser.
Segundo Faria, os partidários da falácia naturalista "dizem que não podemos cair na ideia de que lá porque algo é naturalmente assim, tal significa que tenha de ser aceite como regra." Ou seja, sua definição é a mesma que a minha. E embora ele aceite limitadamente a validade da tese, ainda assim diz que, ao adotarem essa posição, os partidários da falácia naturalista efetuam "uma forma de negação dos factos para dar lugar ao sonho, à utopia confortante e, em última instância, à engenharia social".
A menção à engenharia social já aponta que ele tende a identificar posições éticas a propostas de políticas públicas. Assim, se alguém não aceita que o natural deva ser aceito como norma de conduta, então essa pessoa provavelmente defenderá medidas governamentais que não levem em conta a natureza humana ou - pior ainda - que visem a alterar a natureza humana.
O primeiro ponto a se notar é que é preciso distinguir entre natureza humana e atos humanos. Na imensa maioria dos seres, seus atos, isto é, aquilo que fazem ou aquilo que ocorre com eles, é determinado por sua natureza. No caso do homem, contudo, por mais que tenhamos tendências naturais, instintos e pulsões que não estão sob nosso comando, é quase sempre possível agir à revelia deles. Para nós, homens, o natural, aquilo que se verifica na maioria dos casos, não é de forma alguma determinante. Nossa natureza não escolhe por nós.
Faria cita alguma evidência do nepotismo nas ações humanas; e é bem possível que seja verdade que os homens tendam a favorecer seus familiares. Qual a conclusão que um naturalista, como ele, tira desse fato? Que devemos louvar e aceitar o nepotismo (pensemos apenas no nepotismo que todos consideram ser condenável, como o favorecimento de parentes com cargos públicos) como um dado imutável da natureza? Ora, mas é possível ao homem não ser nepotista. Na política brasileira (e na portuguesa?) o nepotismo é endêmico e notório, mas duvido que se encontre graus comparáveis de nepotismo na política neo-zelandesa ou sueca. E se aceitarmos o nepotismo como fato imutável de nossa condição, daí é que ele não irá embora nunca; pelo contrário, só piorará.
Escolhas individuais produzem culturas diferentes, que por sua vez criam incentivos diferentes para a conduta individual. O motorista suíço, regrado, quado se muda para o Rio de Janeiro, em poucos meses já se aclimata ao trânsito local... O mesmo loiro de olhos azuis, com seus genes germânicos perfeitos, está lá furando farol vermelho e xingando pedestre da mesma forma que o taxista negro do Botafogo. Genes, por mais que possam determinar tendências reais (não podemos negar a priori a possibilidade do fato, por mais que possamos e devamos dizer que ainda não se chegou a nenhum tipo de resultado definitivo nessa direção), não são destino.
Aliás, é gritante a ingenuidade com que Faria aceita resultados altamente polêmicos sobre o comportamento humano, baseado em alguns estudos estatísticos. Sua aceitação da validade da medição de QI e até, aparentemente, de teses racistas, torna seu naturalismo ainda mais preocupante; pois o que ele procura naturalizar, normatizar, é justamente o que há de menos nobre no grosso da humanidade.
É claro que a cultura humana tem bases biológicas. Faria acerta ao apontar a tola separação entre biologia e cultura como um caso da velha e falsa dicotomia corpo-alma. Mas apontar a falsidade da dicotomia é muito diferente de dizer que o corpo determina a alma. Povos com genética idêntica podem ser muito diferentes: Coréia do Sul e do Norte; Alemanha ocidental e oriental; norte e sul da Bélgica; Inglaterra, Escócia e País de Gales; etc. A base biológica nos dá, como Faria aponta, alguns limites; e mesmo esses limites, conforme a tecnologia avança, se mostram cada vez menos restritivos. É possível que, algum dia, dar 50 piruetas no ar seja um ato plenamente factível por qualquer idoso. Portanto nem mesmo os aparentes limites de hoje em dia devem bloquear as mentes dos inovadores, descobridores e empreendedores cujas inteligências trabalham para melhorar nossa vida.
Embora Faria se oponha a algo que eu também considero mau, a engenharia social, ele o faz por motivos espúrios. Não é porque a natureza humana é de tal maneira que não devemos tentar mudar a conduta dos indivíduos. Aceitar isso é aceitar o racismo, o nepotismo, a ignorância, o ressentimento e tudo o que há de pior no homem comum como imutável e até mesmo como "bom".
O real motivo para se opor a propostas de engenharia social é porque ela viola os direitos (ou a dignidade) mais fundamentais dos indivíduos por ela afetados. Não é que ser oportunista ou nepotista seja algo bom; é que uma proposta política que não leve em conta o oportunismo ou nepotismo dos cidadãos será desastrada e não atingirá seus fins. E uma proposta que, sob a bandeira de extirpar o oportunismo e o nepotismo, promova grandes limitações à nossa liberdade e privacidade, gerará uma sociedade pior de se viver do que aquela que é assolada por esses vícios privados.
Outro dia um casal de mendigos brasileiros achou e devolveu 20 mil Reais. Tanto a cultura nacional quanto o instinto de sobrevivência (talvez até mesmo os genes? O brasileiro, afinal, não tem a mesma "pureza" racial dos portugueses; se bem que lá em Portugal também houve uma boa dose de mistura) diziam ao casal: "fiquem com o dinheiro". Não ficaram; fizeram a coisa certa. O naturalismo perdeu essa batalha. E a falácia naturalista foi mais uma vez revelada: não é porque as coisas costumam ser assim que elas devam ser assim.
Ideais elevados, que vão além da mera normalidade estatística, não são, de forma alguma, sonho ou utopia; são uma possibilidade real a todos que estiverem dispostos a vivê-la. E essa possibilidade, ela sim, é que destrói um sonho mau e confortante que lateja em nossas mentes e que por vezes encontra o respaldo intelectual do naturalismo: "seus vícios e seus defeitos não são culpa sua. Não há nada que você possa fazer". Há.