I.
Chegará o dia em que o
brasileiro, por um prodígio de expressividade, será capaz de referir-se da
maneira mais abstrata, inespecífica e categórica possível a todo e qualquer
objeto – concreto ou não, real ou irreal – a que porventura enderece sua
atenção. O brasileiro, sobretudo o de classe média, em seu zelo ontologicamente
democrático, só quer saber dessa “coisa” aí, de fazer aquele “negócio” ali e de
“resolver uma bronca” alhures. Que a “coisa” possa ser uma chave de fenda, que
o “negócio” a ser feito possa ser o conserto de um móvel, que a “bronca” a ser
resolvida possa ser a necessidade de criar meios pelos quais obter o dinheiro
com que comprar, digamos, móveis e chaves de fenda – são fatos, esses, concretos e específicos demais para que o brasileiro, com sua língua parodicamente
metafísica, que só lida com a realidade última (aquela é em que tudo é “ser”,
“coisa” ou “negócio” – ou jabuticaba, vá saber), com eles se preocupe e lhes
conceda um lugar tímido que seja em seu idioma corrente.
Desde que o brasileiro tido por
bem educado habituou-se a uma fala inteiramente desarticulada, na qual orações
subordinadas rareiam, na qual estruturas sindéticas reiterativas (“...e...e...e...”)
assumem a primazia na sustentação de uma coesão lógica precária, na qual os
tempos verbais já não obedecem ao tempo da oração mas à intenção emotiva do
sujeito falante, desde então algo de muito grave se anunciava. Pois, entre os
dados mais menosprezados pela lingüística, está o fato, testemunhado por estudiosos
de línguas antigas, de que palavras jamais surgem isoladamente – com o que cada
uma desintegra-se quando o “sistema” rui. Ao hábito do desleixo sintático se
segue o hábito da penúria semântica.
O homem, onde quer que fale,
primeiro se preocupa em dizer “Louvado seja Deus!” ou “Bendita seja esta terra!”
antes de definir, como num dicionário mental, o significado isolado de “Deus”,
“terra”, “ser” etc. Isso, para não falar dos “sincategoremas”, os termos
gramaticais sem referentes concretos e diretos na realidade (preposições, por
exemplo). Contra as distinções pedagógicas das gramáticas, historicamente nunca
há – ou só de raro em raro, e em pequena escala – deslocamento entre o eixo do desenvolvimento
sintático da língua e o eixo de seu desenvolvimento morfo-semântico. O alto
nível de abstração ganho com a introdução de artigos no latim medieval,
condição lingüística remota da emergência da escolástica – opinião de Karl
Vossler, não minha, que jamais perceberia essas coisas –, é exemplo clássico de
como uma grande mudança estrutural do idioma se fez acompanhar de uma maior
objetividade dos nomes: pois que, ao mesmo tempo, os substantivos, quase que se
reduzindo aos de caso acusativo, passavam a gozar de maior precisão analítica e
rigor em sua disposição nas orações, elementos mais propícios a padronizações
técnicas; como, de fato, ocorreu na universidade medieval. Desnecessário dizer
que hoje é tarefa banal distinguir “um objeto” de “o objeto”, mas pensem no
ganho tremendo que isso (não só isso, claro) representou para a disseminação da
filosofia através de textos há cerca de mil anos.
II.
Digo isso apenas para lembrar que
a barbárie de nosso idioma não nos deixa impunes. Vivemos a época do emprego de
um idioma parodicamente metafísico – uma espécie de esperanto semi-animal – por
um povo abertamente dinheirista e carreirista. Mas não só isso. Ainda não a
encontrei, mas acredito haja uma conexão sutil, até mais ou menos datável na
história, por mais distantes que possam parecer, entre a língua da patuléia,
mesmo da patuléia mais bem posicionada na sociedade, e a língua em uso entre a
nossa intelectualidade atual, se assim podemos chamá-la. Não, contudo, apenas aquela
intelectualidade entre muros de universidade, obtusamente esquerdista ou o que seja, mas também
entre a turma mais jovem, e de referências outras, que em breve começará a
ocupar seu lugar. Mas exemplifico. Se há um princípio estilístico básico e
universalmente reconhecido, pois já diz respeito até a necessidades
gnoseológicas elementares à operação de qualquer distinção, é o princípio de
que não se deve trocar um vocábulo preciso por outro mais impreciso (quando se
o faz, é porque o poder conotativo do vocábulo mais geral guarda maior precisão
do ponto de vista da intenção do autor). Se a “camélia” de Castro Alves fosse
não a “camélia pálida”, mas tão-somente uma “muito alva”, é evidente que a sua
“formosa mulher”, aquela que “banharam de luz as alvoradas”, não seria tão
formosa assim...
Pois bem: a consciência desse
princípio elementar anda mais baixa que nunca em nossa “cultura” – à exceção de
uns poucos bons poetas – e no “debate público” brasileiro. Tomei para ler, dias
atrás, um estudo de história e filosofia publicado há pouco*. O autor é capaz,
por exemplo, de, ao pretender tratar de determinados conceitos de outros
autores, dizer que irá “elaborá-los”, com o que atravessa inadvertidamente
todo o campo semântico que vai de “abordar” a “elaborar” – quase que a
distância entre pegar o bonde andando e pô-lo para andar. Uma tal falha nesse
texto – de cujo tipo há, nele, incontáveis – passa, aliás, quase que às
escondidas quando comparada a outros modismos já bem disseminados no Brasil e
ali presentes. Outro exemplo: foge-se da mesóclise e do bom uso da próclise como
o diabo da cruz. Deus do céu, mesóclise, para os que não a amam, há sempre como
evitá-la optando por construções alternativas; o mesmo para a ênclise inconveniente. Não é, contudo, o caso aqui. O
autor se permite iniciar orações com sinistros e malsonantes “Deveria-se ir à raiz das coisas” e “abordaria-se dois pólos” ou, ainda,
escrever coisas como “em que tem-se” e um inexplicável “se converjam”.
Quando inadequações como essas –
ou erros brutos – chegam a textos de conteúdo filosófico, é porque todo bom
senso musical da língua já foi pras picas. Ora, escrevemos “fazê-lo-ia” e não
“fazeria-o” pelo mesmo motivo pelo qual, sei lá, no português quinhentista
deixamos de escrever “mandam-lo” para escrever “mandam-no”: são fenômenos
naturais de harmonização sonora do idioma – às vezes até de fisiologia da elocução
–, e não caprichos. O problema mais hediondo está, aliás, no vernáculo acadêmico.
Nesse sentido, o livro recém-publicado do sociólogo Luís de Gusmão, O fetichismo do conceito – Limites do conhecimento teórico na investigação social (Topbooks, 2012), volume que
tem tudo para ser a zebra editorial do ano (quando foi que saiu o último livro
de ciências sociais realmente importante no Brasil?), cumpre papel saneador. Embora
aspecto marginal seu – mas que conta com um capítulo brilhante a respeito: “Um
elogio do conhecimento de senso comum” –, o livro traz uma crítica técnica e
precisa, sustentada em exemplos concretos, da construção de jargões
universitários como muleta que se usa para dar ares científicos à pesquisa
social (Bourdieu, numa expressão cheia de graça, é descrito como “consultor
epistemológico de investigadores sociais em crise de identidade”). Muleta essa que
não cura o coxo, mas o adoenta. O inferno, aí, é o “fetichismo do conceito”
aliado ao semi-analfabetismo. É o que qualquer pessoa que tenha freqüentado uma
universidade brasileira conhece bem.
III.
Entre a língua rastaqüera das
chamadas “classes falantes” e o hermetismo oco do texto universitário (claro:
guardadas as exceções), há o lugar nenhum, culturalmente condicionante dos dois
problemas anteriores, dessa coisa amorfa, desse lixão imaginativo que temos a
benevolência de chamar de literatura brasileira contemporânea, esse império da
narrativa subjetiva em primeira pessoa no qual não assoma com nitidez voz ou
pessoa alguma. É difícil precisar quando a “coisa” começou a degringolar, mas
suspeito que foi quando se começou a levar a sério livros como os de João
Gilberto Noll, cujo primeiro, de 1980, foi de pronto laureado com um Prêmio
Jabuti. Mesmo Raduan Nassar já era presságio de pouco auspício, e não tardaria
que viéssemos dos “transgressores da geração 90” a estes “20 melhores jovens autores brasileiros”. Assim, pouco a pouco, o elogio do vago, do incerto; o
prazer no tão-só pretensamente imaginativo; o gosto pela elisão lógica, pelas construções
frasais taquigráficas, de pontuação aborrecidamente abundante e orações
nanicas; a preferência por narrativas passadas num cenário urbano abstrato,
inverossímil e fraco mesmo quando localizado geograficamente, porque feito de
palavras sem substância; assim, pouco a pouco, foi-se criando o ambiente
cultural em que a palavra perde toda sua carga de objetividade, a ponto tal que
entram em circulação termos absurdos e cuja absurdidade poucos se dão ao
trabalho de notar – por exemplo, “homofobia”, que até etimologicamente é sem pé
nem cabeça (palavras como "xenofobia" têm radical tirado a línguas clássicas, mas "homo", aqui, é uma abreviação de homossexual...).
É talvez o caso de lembrar
a constatação de Ângelo Monteiro: “Não queremos a salvação e queremos nos
salvar”, verdade também constatável em outro nível, o dos que querem distinguir a ousia aristotélica do ens tomista, mas não querem antes saber
distinguir um complemento nominal de um adjunto adnominal. Ângelo Monteiro, em seu manifesto
fabular contra a “lavação da burra” nacional, chega quase a dizer que a
"transcendência" do brasileiro consiste em sua completa intranscendência – e uma
intranscendência lingüística, eu acrescentaria, pela qual trocamos o mundo real
por um idioma burlescamente metafísico, no qual tudo, no fim das contas, cabe
em duas ou três palavras, em duas ou três estruturas frasais. No qual tudo, enfim,
é misteriosamente “a Coisa”.
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* O livro em questão é Crise e Utopia: o dilema de Thomas More
(Vide, 2012), de Martim Vasques da Cunha. Cito-o aqui, em nota, e não no curso
do texto, para prevenir qualquer impressão de que eu o esteja desmerecendo apenas
com base em comentários de teor gramatical. Com toda evidência, não é o livro,
em si, que me interessa aqui.