sexta-feira, 20 de julho de 2012

O Idioma Metafísico


I.

Chegará o dia em que o brasileiro, por um prodígio de expressividade, será capaz de referir-se da maneira mais abstrata, inespecífica e categórica possível a todo e qualquer objeto – concreto ou não, real ou irreal – a que porventura enderece sua atenção. O brasileiro, sobretudo o de classe média, em seu zelo ontologicamente democrático, só quer saber dessa “coisa” aí, de fazer aquele “negócio” ali e de “resolver uma bronca” alhures. Que a “coisa” possa ser uma chave de fenda, que o “negócio” a ser feito possa ser o conserto de um móvel, que a “bronca” a ser resolvida possa ser a necessidade de criar meios pelos quais obter o dinheiro com que comprar, digamos, móveis e chaves de fenda – são fatos, esses, concretos e específicos demais para que o brasileiro, com sua língua parodicamente metafísica, que só lida com a realidade última (aquela é em que tudo é “ser”, “coisa” ou “negócio” – ou jabuticaba, vá saber), com eles se preocupe e lhes conceda um lugar tímido que seja em seu idioma corrente.

Desde que o brasileiro tido por bem educado habituou-se a uma fala inteiramente desarticulada, na qual orações subordinadas rareiam, na qual estruturas sindéticas reiterativas (“...e...e...e...”) assumem a primazia na sustentação de uma coesão lógica precária, na qual os tempos verbais já não obedecem ao tempo da oração mas à intenção emotiva do sujeito falante, desde então algo de muito grave se anunciava. Pois, entre os dados mais menosprezados pela lingüística, está o fato, testemunhado por estudiosos de línguas antigas, de que palavras jamais surgem isoladamente – com o que cada uma desintegra-se quando o “sistema” rui. Ao hábito do desleixo sintático se segue o hábito da penúria semântica.

O homem, onde quer que fale, primeiro se preocupa em dizer “Louvado seja Deus!” ou “Bendita seja esta terra!” antes de definir, como num dicionário mental, o significado isolado de “Deus”, “terra”, “ser” etc. Isso, para não falar dos “sincategoremas”, os termos gramaticais sem referentes concretos e diretos na realidade (preposições, por exemplo). Contra as distinções pedagógicas das gramáticas, historicamente nunca há – ou só de raro em raro, e em pequena escala – deslocamento entre o eixo do desenvolvimento sintático da língua e o eixo de seu desenvolvimento morfo-semântico. O alto nível de abstração ganho com a introdução de artigos no latim medieval, condição lingüística remota da emergência da escolástica – opinião de Karl Vossler, não minha, que jamais perceberia essas coisas –, é exemplo clássico de como uma grande mudança estrutural do idioma se fez acompanhar de uma maior objetividade dos nomes: pois que, ao mesmo tempo, os substantivos, quase que se reduzindo aos de caso acusativo, passavam a gozar de maior precisão analítica e rigor em sua disposição nas orações, elementos mais propícios a padronizações técnicas; como, de fato, ocorreu na universidade medieval. Desnecessário dizer que hoje é tarefa banal distinguir “um objeto” de “o objeto”, mas pensem no ganho tremendo que isso (não só isso, claro) representou para a disseminação da filosofia através de textos há cerca de mil anos.


II.

Digo isso apenas para lembrar que a barbárie de nosso idioma não nos deixa impunes. Vivemos a época do emprego de um idioma parodicamente metafísico – uma espécie de esperanto semi-animal – por um povo abertamente dinheirista e carreirista. Mas não só isso. Ainda não a encontrei, mas acredito haja uma conexão sutil, até mais ou menos datável na história, por mais distantes que possam parecer, entre a língua da patuléia, mesmo da patuléia mais bem posicionada na sociedade, e a língua em uso entre a nossa intelectualidade atual, se assim podemos chamá-la. Não, contudo, apenas aquela intelectualidade entre muros de universidade, obtusamente esquerdista ou o que seja, mas também entre a turma mais jovem, e de referências outras, que em breve começará a ocupar seu lugar. Mas exemplifico. Se há um princípio estilístico básico e universalmente reconhecido, pois já diz respeito até a necessidades gnoseológicas elementares à operação de qualquer distinção, é o princípio de que não se deve trocar um vocábulo preciso por outro mais impreciso (quando se o faz, é porque o poder conotativo do vocábulo mais geral guarda maior precisão do ponto de vista da intenção do autor). Se a “camélia” de Castro Alves fosse não a “camélia pálida”, mas tão-somente uma “muito alva”, é evidente que a sua “formosa mulher”, aquela que “banharam de luz as alvoradas”, não seria tão formosa assim...

Pois bem: a consciência desse princípio elementar anda mais baixa que nunca em nossa “cultura” – à exceção de uns poucos bons poetas – e no “debate público” brasileiro. Tomei para ler, dias atrás, um estudo de história e filosofia publicado há pouco*. O autor é capaz, por exemplo, de, ao pretender tratar de determinados conceitos de outros autores, dizer que irá “elaborá-los”, com o que atravessa inadvertidamente todo o campo semântico que vai de “abordar” a “elaborar” – quase que a distância entre pegar o bonde andando e pô-lo para andar. Uma tal falha nesse texto – de cujo tipo há, nele, incontáveis – passa, aliás, quase que às escondidas quando comparada a outros modismos já bem disseminados no Brasil e ali presentes. Outro exemplo: foge-se da mesóclise e do bom uso da próclise como o diabo da cruz. Deus do céu, mesóclise, para os que não a amam, há sempre como evitá-la optando por construções alternativas; o mesmo para a ênclise inconveniente. Não é, contudo, o caso aqui. O autor se permite iniciar orações com sinistros e malsonantes “Deveria-se ir à raiz das coisas” e “abordaria-se dois pólos” ou, ainda, escrever coisas como “em que tem-se” e um inexplicável “se converjam”.

Quando inadequações como essas – ou erros brutos – chegam a textos de conteúdo filosófico, é porque todo bom senso musical da língua já foi pras picas. Ora, escrevemos “fazê-lo-ia” e não “fazeria-o” pelo mesmo motivo pelo qual, sei lá, no português quinhentista deixamos de escrever “mandam-lo” para escrever “mandam-no”: são fenômenos naturais de harmonização sonora do idioma – às vezes até de fisiologia da elocução –, e não caprichos. O problema mais hediondo está, aliás, no vernáculo acadêmico. Nesse sentido, o livro recém-publicado do sociólogo Luís de Gusmão, O fetichismo do conceito – Limites do conhecimento teórico na investigação social (Topbooks, 2012), volume que tem tudo para ser a zebra editorial do ano (quando foi que saiu o último livro de ciências sociais realmente importante no Brasil?), cumpre papel saneador. Embora aspecto marginal seu – mas que conta com um capítulo brilhante a respeito: “Um elogio do conhecimento de senso comum” –, o livro traz uma crítica técnica e precisa, sustentada em exemplos concretos, da construção de jargões universitários como muleta que se usa para dar ares científicos à pesquisa social (Bourdieu, numa expressão cheia de graça, é descrito como “consultor epistemológico de investigadores sociais em crise de identidade”). Muleta essa que não cura o coxo, mas o adoenta. O inferno, aí, é o “fetichismo do conceito” aliado ao semi-analfabetismo. É o que qualquer pessoa que tenha freqüentado uma universidade brasileira conhece bem.


III.

Entre a língua rastaqüera das chamadas “classes falantes” e o hermetismo oco do texto universitário (claro: guardadas as exceções), há o lugar nenhum, culturalmente condicionante dos dois problemas anteriores, dessa coisa amorfa, desse lixão imaginativo que temos a benevolência de chamar de literatura brasileira contemporânea, esse império da narrativa subjetiva em primeira pessoa no qual não assoma com nitidez voz ou pessoa alguma. É difícil precisar quando a “coisa” começou a degringolar, mas suspeito que foi quando se começou a levar a sério livros como os de João Gilberto Noll, cujo primeiro, de 1980, foi de pronto laureado com um Prêmio Jabuti. Mesmo Raduan Nassar já era presságio de pouco auspício, e não tardaria que viéssemos dos “transgressores da geração 90” a estes “20 melhores jovens autores brasileiros”. Assim, pouco a pouco, o elogio do vago, do incerto; o prazer no tão-só pretensamente imaginativo; o gosto pela elisão lógica, pelas construções frasais taquigráficas, de pontuação aborrecidamente abundante e orações nanicas; a preferência por narrativas passadas num cenário urbano abstrato, inverossímil e fraco mesmo quando localizado geograficamente, porque feito de palavras sem substância; assim, pouco a pouco, foi-se criando o ambiente cultural em que a palavra perde toda sua carga de objetividade, a ponto tal que entram em circulação termos absurdos e cuja absurdidade poucos se dão ao trabalho de notar – por exemplo, “homofobia”, que até etimologicamente é sem pé nem cabeça (palavras como "xenofobia" têm radical tirado a línguas clássicas, mas "homo", aqui, é uma abreviação de homossexual...).

É talvez o caso de lembrar a constatação de Ângelo Monteiro: “Não queremos a salvação e queremos nos salvar”, verdade também constatável em outro nível, o dos que querem distinguir a ousia aristotélica do ens tomista, mas não querem antes saber distinguir um complemento nominal de um adjunto adnominal. Ângelo Monteiro, em seu manifesto fabular contra a “lavação da burra” nacional, chega quase a dizer que a "transcendência" do brasileiro consiste em sua completa intranscendência – e uma intranscendência lingüística, eu acrescentaria, pela qual trocamos o mundo real por um idioma burlescamente metafísico, no qual tudo, no fim das contas, cabe em duas ou três palavras, em duas ou três estruturas frasais. No qual tudo, enfim, é misteriosamente “a Coisa”.

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* O livro em questão é Crise e Utopia: o dilema de Thomas More (Vide, 2012), de Martim Vasques da Cunha. Cito-o aqui, em nota, e não no curso do texto, para prevenir qualquer impressão de que eu o esteja desmerecendo apenas com base em comentários de teor gramatical. Com toda evidência, não é o livro, em si, que me interessa aqui.
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