De todas as passagens bíblicas, uma das que mais apresenta dificuldades é a ordem de Deus para que Abraão sacrifique seu filho. Abraão, perfeitamente obediente a Deus, leva Isaac ao monte, levanta sua faca e, na hora H, um anjo o impede e explica que Deus estava apenas testando sua fé. O fim da história é perfeito e fácil: Deus não queria o sacrifício humano, e o episódio todo teve um papel de teste (teste para o próprio Abraão conhecer a si mesmo e para provar sua fé aos demais homens; não, obviamente, para Deus, que tudo sabe) e também pedagógico.
Ocorre que, entre a ordem de Deus e o aparecimento do anjo, houve um período em que Abraão não sabia que se tratava de um teste, e mesmo assim o acatou. E essa decisão de Abraão é louvada em todas as correntes monoteístas que dele derivam. A disposição de matar o próprio filho, para obedecer a uma ordem divina, é vista como virtuosa. Deus, portanto, não quereria o sacrifício humano, mas quereria fiéis dispostos a assassinar um inocente se Ele assim o mandasse?
Outro problema é de ordem epistemológica. Suponha que você, pai de família temente a Deus, ouça uma voz que alega proveniência divina (se é o próprio Deus ou um anjo que fala por ele, não importa). A princípio, pode se tratar de três coisas: você pode estar alucinando; pode ser que a voz venha de um ente espiritual e seja de fato divina; e pode ser que a voz seja de um ente espiritual maléfico, demoníaco.
Como saber a proveniência da voz? Um critério é: se a voz ou a aparição pedir ou demandar algo que seja imoral, então ela não é de Deus (este critério é um dos utilizados pela Igreja católica para avaliar revelações privadas). Ora, pedir para se assassinar uma criança é bastante imoral. Portanto, pelos elementos que Abraão tinha para julgar sua situação, ele tinha melhores motivos para julgar que se tratava de uma alucinação ou de um demônio do que acreditar que o pedido vinha de Deus. A decisão correta seria rejeitar a ordem dada.
Ele seguiu a ordem, levou o filho ao monte, chegou a levantar a faca e, felizmente, a ordem viera mesmo de Deus, ele foi impedido e ponto final. Mas e se fosse um demônio ou uma alucinação? Então ele teria conseguido matar o próprio filho; ficaria ali, ensaguentado, assistindo o cadáver pegar fogo, e esse seria o fim. O homem que julgava seguir a vontade de Deus não passaria de um esquizofrênico que acabara de cometer uma barbaridade indizível, ou de um agente de Satanás num ritual horripilante.
Como salvar, ou justificar, esse que é visto como o grande ato de virtude de Abraão? Notem que o fato da ordem ter, de fato, vindo de Deus, não resolve o problema. Pois de seu ponto de vista, Abraão não tinha como saber que ela vinha de Deus. Muito pelo contrário, os elementos de que ele dispunha apontavam mais para o demônio do que para Deus. Se um homem recebesse o mesmo chamado de Abraão hoje em dia e o acatasse, seu ato seria considerado, pela Igreja e por qualquer pessoa com um mínimo de sanidade, um pecado.
Tampouco poderemos justificar o ato de Abraão apelando para alguma convicção interna de que o chamado vinha de Deus. Pois a convicção interna, seja ela qual for (seja um sentimento profundo de paz, ou uma certeza inquebrantável, ou mesmo visões esplendorosas), é apenas uma variação da experiência subjetiva humana, podendo ser produzida igualmente por Deus, pelo demônio ou por alguma alucinação.
Como, então, salvaremos o ato de nosso pai na Fé?
Parece-me que o único modo de fazê-lo é reconhecendo que Abraão - e sua tribo de pastores nômades - era uma homem tão rude e tão selvagem que, subjetivamente, não era culpável por não julgar sua situação de acordo com os critérios mais racionais e propriamente humanos pelos quais qualquer homem minimamente civilizado tem a obrigação de julgar. Do ponto de vista dele, que era um ponto de vista objetivamente muito precário e indesejável, a questão moral de respeito à pessoa humana e os problemas epistemológicos da revelação privada simplesmente não se colocavam. Tratava-se apenas da escolha de entregar ou não tudo a Deus. Que a força maior (que lhe dera um filho no passado) talvez não fosse Deus nem lhe passava pela cabeça; era uma força maior à qual ele estava submetido. Que um filho, ou seja, outro ser humano, não deva ser tratado como uma propriedade da qual o dono tem todo o direito de "abrir mão", como se fosse um televisor ou um terreno, também não lhe ocorria. O filho era seu bem mais precioso, e fora dado por Deus. Ele tinha a fé necessária para abrir mão até desse bem pelo amor/obediência a Deus? Estava disposto a entregar o bem recebido para ficar com a fonte do bem (sim, sim, aqui já é uma interpretação abstrata e filosófica que também não devia passar por sua cabeça)? Seu amor a Deus tinha transcendido o amor pelo benefício que recebera de Deus?
Nesse sentido, a ação de Abraão foi realmente virtuosa, mas só porque seu nível mental (cultural; no que diz respeito a sua natureza, Abraão era provavelmente um homem muito inteligente) era tão baixo que ele não tinha como considerar os elementos que faziam com que sua ação fosse, objetivamente falando, imoral. Ele não tinha capacidade para o bem real neste caso; sua ação refletia o melhor de que ele era capaz dadas as circunstâncias. E sendo Abraão moralmente inocente - e mais, virtuoso - ao aceitar a ordem de Deus, o fato de Deus ter emitido tal ordem não viola a bondade divina (que seria violada se Deus comandasse um pecado).
Assim, conclui-se que virtude e vício dependem das circunstâncias em que cada um se encontra; o que é vicioso em um caso pode ser virtuoso em outro, sem que, no entanto, caia-se no relativismo. A ordem objetiva da moral é mantida, reconhecendo-se apenas que a capacidade humana para se adequar a ela pode variar.
O episódio também mostra, a meu ver, como Deus faz uso inclusive das imperfeições humanas para levar adiante sua obra redentora. Fosse Abraão homem civilizado, a história não poderia ter sido assim; sua virtude teria sido pecado [edição: na verdade, acho mais exato colocá-lo de outra maneira: "a escolha que, no caso de Abraão, foi virtuosa, para um homem de hoje em dia seria pecaminosa ou, no mínimo, errônea"].