The art of losing is not hard to master;
so many things seem filled with the intent
to be lost that their loss is no
disaster...
— Elizabeth Bishop, em poema
traduzido por Bruno Tolentino
em O Mundo Como Ideia
Busco entender, Bruno, à luz desses versos
que tu citaste em paráfrase alheia,
algo da morte. Eu já rezei três terços
tentando clarear minhas ideias,
mas essa noite é maior do que eu,
ela circula pelas minhas veias
junto aos teus versos. Pelo amor de Deus,
Bruno, me diz se as coisas são fadadas
ao destino que as afinal perdeu,
se o que foi perda nascera cilada
como o que esplende é destinado ao brilho;
me diz, Bruno, se a liberdade é dada
integralmente ou num vago caminho,
se o já nascer com natureza é sina
intransponível, ou se vai do estilo
que ir vivendo aos poucos nos ensina.
Eu, por exemplo, nesta madrugada;
penso na voz rouca que me destina
tão sutilmente a me entregar ao nada,
ou ao infinito – como vou saber? –,
mas o exercício mental me embriaga
mais que esclarece. O que meu corpo quer
(dormir, sorver ar puro) é rejeitado
pela proposta maior que é viver
dentro dessa espiral, desse quadrado:
vou lendo os versos que o Bruno escreveu,
esse meu esquisito antepassado,
e dando o tom que essa noite me deu
ao poeminha idiota que, depois,
far-me-á vergonha apenas por ser meu.
Um rol de mortes terríveis, atroz
em sua óbvia futilidade,
me vem à mente e se procuro o algoz,
a mão capaz de mover tudo que arde,
encontro um novelo malsão de culpas
e nenhuma ao final. Então me invade
o tipo de revolta mais estúpida:
por que, meu Deus, além da dor da vida
de quem viveu incapaz de uma súplica,
por que – alguém, por bondoso, me diga! –
depois de terem vivido no inferno
esses coitados que a vida fustiga
ainda têm de ir parar no Inferno,
pois, loucos, se atiraram da janela?
“Todos existem livres. Sempiterno
e onipresente é o brilho dessa Estrela,
o amor do Pai. Aqueles que não veem-na
cegaram-se à vontade, porquanto Ela
não cessa de brilhar jamais.” A pena,
então, me cai dos dedos, choraminga:
“Ó, Pai, não logro a certeza serena
de que, nesse presente mundo, à míngua
de tudo o mais basicamente humano,
basta-nos ter boa vontade – a língua
de Deus fala por todos... Mas o engano
às vezes, tudo indica, fala mais.
Há quem nasça fadado ao desengano,
é o que parece – há um algo que induz
as almas ao abismo sem que elas
tenham lá grandes chances. E, ao invés,
existem as que se salvam quando nelas
qualquer coisa de fora as inverteu,
movendo-as como a chama de uma vela
ilumina ao redor. Quem compreendeu
o drama viu que há sinas discrepantes,
e é assim que eu me pergunto por que eu,
meu Deus, fui ver essa luz causticante
e salvadora, em vez de um outro irmão;
quem quer que fosse, estando diante
do que eu vi, nunca ousaria o ‘Não’.
Se é tudo uma questão de Graça, ó Pai,
ou falta dela, então o Inferno é vão.”
Há coisas que se o dom da perda esvai
– diz lá a Bishop, apud
Tolentino –
é porque existe um dom
da perda. Mais
ainda, o perder é bem seu destino.
Isso se aplica à vida? Os suicidas
perdem-se em nome de um desatino
atinado, glosando o que as feridas
da perda ofereceram como mote?
Pergunto se essa força que os instiga
coincide com seu fado, com sua sorte,
ou qualquer desses termos sorrateiros
que denominam o que precede a morte.
Há a força propulsora, o derradeiro
pendor, algo assim como um dom da perda?
Existem dons? Se sim, o desespero
do suicida que a loucura verga
para além da janela não é só dele.
Donde, não é tão livre como prega
a grã filosofia em que se espelhe
nosso mundo mental; o determina
(ao suicida) algo que, em vez, lhe acolhe,
faz-lhe beber do leite da má sina.
Não sei se estou conseguindo explicar
(ainda mais tentando-o em terça rima)
o que essa madrugada – a insônia, o ar
dessa noite maligna – me incutiu.
Tem a ver com liberdade, com causar-
mos realmente o que nos sucedeu.
Sei quanto o livre-arbítrio é ideia cara,
mas sei também que a mim a Graça encheu
do que eu não merecia – a minha cara
de espanto, gratidão e de temor
é testemunha. Essa dádiva rara
por que não dá-se a todos, pleno amor?