É sintomático de nossa grande mídia que, na tradução do artigo para o Estado de S. Paulo (“Conservadores são mais felizes”) esteja estampada, no topo da página, a chamada: “Uma razão: diferentemente dos liberais, eles não se preocupam com a desgraça alheia e ignoram a injustiça”. Ou seja, o que aparecia como uma opinião da esquerda que o autor citava para combater, na versão brasileira aparece como uma verdade objetiva, neutra, emitida pela realidade enquanto tal. E como a chamada é tudo que muitos dos leitores lerão deste artigo, essa é a mensagem final que a versão brasileira passa: “conservadores, felizes porque alienados”.
Mas o que me interessa não são as falhas da mídia nacional, e nem a tese de Arthur Brooks enquanto tal (a de que os conservadores sejam mais felizes), mas a premissa da qual ela e tantos outros estudos similares dependem: a de que a informação revelada pelas pesquisas de felicidade é confiável e útil.
Essas pesquisas (um exemplo citado por Brooks é esta) baseiam-se no self-report, ou seja, em respostas que entrevistados dão acerca de sua própria felicidade. Deixando de lado a possibilidade de definições radicalmente diferentes do termo “happy” ou “feliz” circularem por aí (e talvez não devêssemos deixá-la de lado assim tão facilmente…), o que a pesquisa está perguntando aos entrevistados é como eles avaliam o próprio bem-estar: se estão/são alegres, otimistas, de bem com a vida, ou tristes, desesperançosos, etc. É uma pergunta que visa conhecer algo do que se passa dentro da pessoa; cuja resposta revela, portanto, um dado subjetivo de quem responde.
O bem-estar subjetivo pode advir de uma série de fatores, nem todos eles bons ou válidos em uma consideração objetiva. Um homem que viva plenamente iludido pode estar plenamente contente em sua ilusão. Um seguidor de algum culto trambiqueiro pode sentir-se feliz e seguro com a ideia de que ele é um iluminado, embora não o seja. Esse tipo de satisfação, parece-me óbvio, embora seja subjetivamente real (o indivíduo está, de fato, feliz), não é desejável e muito menos invejável.
Se a felicidade advinda de diferentes variáveis será usada como critério para argumentos sobre a superioridade dessa ou daquela crença e estilo de vida, ou, ainda mais, para políticas públicas (e Arthur Brooks é defensor ativo de que pesquisas de felicidade tenham impacto político; aliás, o FIB, felicidade interna bruta, tem recebido atenção crescente de sociólogos e políticos), a mera opinião pessoal de cada um acerca de seu bem-estar subjetivo não é lá muito relevante.
Essa observação já deveria dar um choque de humildade nas pretensões que animam artigos como o de Brooks. Afinal, quando se escreve um artigo dizendo que certo grupo é mais feliz (dessa vez foram os conservadores; outras vezes são os solteiros, os que não têm filhos, os pobres, os ricos, os butaneses, etc.), há uma implicação implícita muito clara: eles têm algo a ensinar ao resto do mundo sobre como viver; encarnam algum tipo de ideal a ser emulado. Não é o caso. A plena felicidade (entendida como bem-estar subjetivo ao longo do tempo) é compatível com as situações objetivas menos desejáveis.
Ainda assim, se as perguntas sobre a própria felicidade revelassem diretamente o bem-estar subjetivo das pessoas, elas ao menos nos dariam uma coisa: a possibilidade de comparar as crenças (e outras variáveis) pela capacidade que elas têm de gerar bem-estar subjetivo nos homens. Mesmo isso, contudo, é difícil, por dois motivos que decorrem de uma mesma causa: não temos a observação direta do bem-estar alheio; podemos apenas confiar no que a pessoa responde.
Quais os dois problemas disso? O primeiro é que falar do próprio bem-estar subjetivo é sempre fazer uma comparação; não há uma medida absoluta, em kelvins ou gramas, de bem-estar. Cada indivíduo tem para si algum patamar que chama de “feliz”, ou um ideal mais ou menos alto que persegue, e responde com base nesse critério. Um indivíduo que espera muito da vida, e que julgue que sua satisfação módica é pouco perto do que ele poderia alcançar, pode se considerar infeliz mesmo tendo mais satisfação subjetiva (ou seja, sendo em geral mais alegre e derivando mais prazer e bem-estar de sua vida) do que outro que julgue estar já próximo do nível máximo de bem-estar. “Felicidade”, mesmo quando restrita ao âmbito subjetivo (e supondo parâmetros similares de comparação), pode significar coisas diferentes para pessoas diferentes.
Para além desse problema da comparação de respostas diferentes, temos o problema da sinceridade da resposta. Até que ponto as pessoas estão dispostas a reconhecer, para outros e para si mesmas, que não são felizes? Mesmo em pesquisas anônimas, a mentira é um fato com o qual os estatísticos sempre se deparam, e por isso mesmo tentam desenvolver métodos para reduzir suas taxas. Não tenho provas, mas poderia apostar que temas delicados como a própria felicidade geram maior grau de mentira (e uma mentira praticamente impossível de se desmascarar) e auto-engano.
Se essas características (disparidade de critérios de felicidade e relutância em dizer a verdade) forem igualmente distribuídas por todos os grupos, então não afetarão os resultados; na média, todos se compensam. Mas e se membros de certos grupos tiverem maior tendência a mentir sobre seu bem-estar? E se padrões médios diferentes do que é ser feliz vigorarem entre diferentes grupos? Daí a pesquisa estará viciada desde o princípio, e não revelará nem as diferenças médias de bem-estar subjetivo entre os grupos estudados.
Um dos resultados que Brooks revela é que quem tem crenças “extremas”, para qualquer lado, diz estar mais feliz do que quem tem crenças moderadas. Ora, quem tem crenças mais “extremas” é justamente quem julga ter entendido a realidade em maior profundidade, indo além do senso comum. A pessoa que julga ser membra de uma minoria que realmente detém a verdade sobre o homem, e que vive segundo essa verdade, não sentirá naturalmente uma certa obrigação (para si ou para a comunidade de que faz parte) de dizer que é feliz? Afinal, ela tem tudo, e ela quer convencer o mundo de que ela tem o que os demais procuram. Esse argumento não prova nada; outros processos psicológicos podem estar em jogo. Espero apenas ter mostrado como a possibilidade de mentiras sistemáticas não pode ser descartada a priori, e nem podemos supor que, na média, todos os grupos mintam em nível igual.
Suponhamos, contudo, que todos esses problemas sejam contornados – que, com diversas mensurações e testes, seja possível corrigir estatisticamente os diversos vieses. E suponhamos que os resultados de felicidade em pesquisas de self-reporting sejam usados como subsídios para políticas públicas ou como objeto de artigos que defendam uma certa visão de mundo, como o de Arthur Brooks. Suponhamos, por fim, que o público saiba desse fato.
Sabendo ou supondo que a pesquisa pode ter impacto no mundo real (via política ou mídia), os entrevistados podem tomar a decisão consciente de dizer que são felizes para melhorar a imagem de seu grupo. E portanto quanto mais utilizadas forem essas pesquisas, menos confiáveis serão.
O que se conclui disso tudo? Apenas uma postura fundamental: cautela. Números impressionantes podem revelar muito menos do que gostaríamos que revelassem. A pesquisa em que Arthur Brooks se baseia diz, concretamente, o seguinte: conservadores dizem, em média, ser mais felizes que liberais. Pessoas com crenças extremas dizem ser mais felizes do que os moderados. É possível ir além disso no estudo da felicidade? Possivelmente; mas não com base em dados como esse.