domingo, 22 de abril de 2012

S. Dráuzio Varella, Perdoai nossa Intolerância!


A auréola não está aí à toa.

Dráuzio Varella é um exemplo do que seria um iluminista dos dias atuais: convicção no poder da razão humana de conhecer a realidade acoplado a uma ignorância algo mal-intencionada para com todo tipo de fé ou de religiosidade. Contudo, à candura e à combatividade iluminista (com todo seu sarcasmo e desprezo aberto pelo diferente, pelo não-civilizado, pelo irracional), ele prefere os ideais contemporâneos da tolerância e do politicamente correto.

Assim, à panfletagem antirreligiosa clássica, ele adiciona alguns vícios favoritos de nossos tempos, como o se fazer de vítima/oprimido e se colocar humildemente como exemplo de virtude mal compreendida. Vejamos seu mais recente artigo para a Folha de S. Paulo (21/04): Intolerância Religiosa.

Algo ou alguém desrespeitou Varella? Não sabemos. Ele ou algum outro ateu é vítima de agressão palpável? Ele não diz. Ou seja: não, pois se houvesse algo concreto do qual reclamar ele seria o primeiro a apontar o dedo. O que há, provavelmente, é ainda um ranço contra as manifestações religiosas não muito expressivas contra o aborto do anencéfalo, polêmica que o lado religioso perdeu (bem, considerando as religiões contrárias ao aborto; há aquelas que o defendem, como a Igreja Universal do Edir Macedo).

Sem finalidade clara e sem nenhum fato ou argumento relevante, o artigo é um misto de tese antropológica, propaganda antirreligiosa e, por fim e principalmente, autoelogio. Vou fazer um comentário sobre cada parte.

Varella começa explicando a suposta origem da religião: o medo da morte. Não entrarei nesse mérito, mas a tese tem alguma plausibilidade: a morte é algo dramático o bastante para nos fazer querer que haja algo maior. O dado, contudo, de que todos os povos acreditavam em vida após a morte é falso. Os judeus antigos, retratados no Pentateuco, parecem não ter nenhuma noção de existência pós-morte. Falam muito em vida farta e rica, em descendência numerosa, mas nada para além da cova. Entre os gregos também é sabido que diversas escolas filosóficas negavam a imortalidade da alma (atomistas, epicuristas); não consta que tenham sido perseguidos, embora fossem mal-vistos por outras correntes. Segundo uma anedota relatada por Diógenes Laércio, Platão teria tentado queimar todos os livros de Demócrito (e, de fato, em toda sua obra Platão não faz nem sequer uma menção a esse contemporâneo importantíssimo de Sócrates); mas o próprio, que segundo a mesma fonte viveu 100 anos, não foi "perseguido e assassinado".

Sejamos claros e honestos: houve sim muita perseguição religiosa no passado; coisa lamentável e injustificável. A própria Igreja Católica teve que aprender muito ao longo de sua história, e embora tenha cometido crimes (em escala menor do que se propagandeia e quase sempre com menos fanatismo e violência do que queriam as turbas enfurecidas e os governos sedentos por dominação total de seus súditos) é hoje a maior defensora da liberdade de consciência do planeta. A desonestidade de Varella está em esticar essa ligação histórica e construir uma ligação necessária entre religião e intolerância ou fanatismo. Para isso, ele usa exemplos enviesados, manipulação da linguagem e qualificações arbitrárias.

"Na realidade, a religião do próximo não passa de um amontoado de falsidades e superstições." - É assim que ele descreve como um religioso enxerga o crente de outra religião. A linguagem dele dá a entender que quem tem religião necessariamente desrespeita ou é agressivo com quem discorda de sua fé. A escolha da expressão "religião do próximo" não é acidental: ela remete ao "amor ao próximo", dando a entender que, no fundo, a religião que prega isso (que nós sabemos qual é) é hipócrita. Só que, despida dos termos inflamatórios que Varella utiliza, a afirmação é trivial; ela diz que quem crê na religião A considera que a religião B é falsa, ou ao menos que ela tem elementos falsos. Como é isso que a frase comunica de fato, e trata-se de uma verdade quase tautológica, o leitor é levado a assentir também ao significado emocional da frase: quem tem religião desrespeita as crenças do próximo.

Mas vejam: a afirmação é verdadeira não só para religiões. Quem é ateu acredita que a religião X é falsa. Assim, usando do mesmo truque de Varella, sou autorizado a dizer que, para Dráuzio Varella (ateu), a religião do próximo não passa de um amontoado de falsidades e superstições. E, portanto, o ateísmo também leva naturalmente ao desrespeito do próximo.

Em outros trechos, ele usa o qualificador "religioso" para transmitir à religião o caráter negativo de alguma postura ou atitude humana má em si mesma. "Quantas tragédias foram desencadeadas pela intolerância dos que não admitem princípios religiosos diferentes dos seus?"; ou ainda "O fervor religioso é uma arma assustadora, sempre disposta a disparar contra os que pensam de modo diverso". Troquem, nessas frases, o termo "religioso" por "político", "filosófico", "econômico", e o resultado será o mesmo. Sim, a intolerância dos que não admitem princípios políticos diferentes dos seus já causou muitas mortes; isso deve nos levar a concluir que a política é em si perigosa? Não; perigoso é o fanatismo, a intolerância, que não é monopólio da religião. Lembremos que, na União Soviética, praticar uma religião podia ser (e era!) punido com a morte. E ao dizer que "ele" (isto é, o fervor religioso, no sentido de fanatismo intolerante), promove a desunião e o massacre, embora se refira objetivamente ao fanatismo e à intolerância (que podem não ser religiosos), promove a confusão dos significados: pois se a crítica se aplica a todo tipo de fervor irracional, a frase designa apenas o fervor religioso.

A argumentação chega a seu ponto mais baixo quando se refere a pastores mercenários e a homens-bomba, como se eles fossem socialmente bem vistos por serem religiosos, o que é obviamente falso. Ninguém, a não ser os iludidos por esses malfeitores, aplaudem o mal que fazem; o fato de alguém usar o nome de Cristo para alguma falcatrua só aumenta o opróbrio que sobre ele recai. Na imaginação do bom médico, todo crente considera ateus desprezíveis. Não é possível inverter o ponto de vista e fazer uma generalização muito parecida, com alguns pequenos ajustes, para a forma como ateus vêem crentes? Existe até mesmo uma versão ateia para a afirmação religiosa de que sem Deus é impossível ser bom: é a de que, se a ética depende de Deus, então ela é apenas oportunismo e não virtude verdadeira. E é isso mesmo que o artigo insinua ao dizer que não se deve fazer o bem "para agradar a Deus".

O artigo fecha no que deve ser sua finalidade última: o autoelogio. Superior à estreiteza do pensamento religioso (que não foi, contudo, instanciada em nenhum exemplo concreto; nosso contato com a religião é todo ele mediado pela impressão subjetiva do autor), Varella dá aula de respeito ao próximo: "Fui educado para respeitar as crenças de todos, por mais bizarras que a mim pareçam". Admito que fiquei tocado.

Varella é o epígono da virtude moral ateia. Enquanto os crentes olham-no com um misto de ódio e medo, dado que a existência de um ateu tão virtuoso os força a questionar suas próprias convicções, ele nada tem além de compreensão e carinho por todos. "Quanto aos religiosos, leitor, não os considero iluminados nem crédulos, superiores ou inferiores, os anos me ensinaram a julgar os homens por suas ações, não pelas convicções que apregoam". E como sabemos que a religião apregoa o desrespeito e a intolerância, concluímos que os que têm religião, se não se deixarem levar pelos falsos ideais apregoados pela religião, ou seja, se não levarem sua fé a a sério, podem ser pessoas boas.

A mensagem de amor e respeito de Varella é em muito superior à dos livros sagrados, e foi ensinada pela longa experiência de vida que ele acumulou. Bem interpretada, ela diz: Crentes e homens de fé, não temam: eu respeito suas crenças bizarras que lhes tornam terroristas em potencial. E, contanto que elas lhes sirvam apenas de muleta existencial e não sejam levadas a sério, não vejo problema algum. Com essa sanção e essa advertência oportuna, podemos dormir em paz.

Meditemos agora no corajoso brado de indignação (sem, como vimos, objeto definido) que abre o artigo: "Sou ateu e mereço o mesmo respeito que tenho pelos religiosos". Não seja modesto, Varella: você merece muito mais do que esse misto de desprezo, condescendência, preconceito e autoglorificação travestidos de virtude superior. Merece muito menos, contudo, do que os elogios efusivos que os leitores, levados pela mesma vaidade, têm derramado a seus pés.
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