"Esqueci qual delas era a aorta; então fiz uma oração só para ter certeza." |
Acho que podemos, desde já, estabelecer uma solução inaceitável: agradecer somente a Deus, esquecendo-se do homem. Imagine um caso ainda mais gritante que o do médico: você está passeando com seu cachorrinho quando ele se solta da guia e corre em direção a uma avenida movimentada. Um homem que vê a cena corre até o cachorro e, com grande esforço e com algum risco para sua integridade física, salva-o e o traz de volta para você. Ao receber de volta o cachorro, você, sem se conter de gratidão, olha para o céu, estende as mãos e exclama: "Muito obrigado, Deus, por me devolver meu querido MJ!" e então segue em frente com o passeio, ignorando o homem ofegante ali na sua frente. A imagem no início do texto também pode, dependendo de como a interpretemos, ilustrar essa visão: "no fundo, é Jesus que está te operando; é ele quem guia a mão do médico."
O médico é responsável pelo salvamento? É. E Deus? Bem, Deus é o autor da realidade, inclusive desse salvador abnegado de cães; ou seja, é a causa primeira de tudo o que acontece. E portanto todas as coisas boas que ocorrem (assim como todas as más) são sim atribuíveis a Ele. Estamos aqui vivendo, gostamos muito de viver; tudo isso se deve, em última instância, exclusivamente à vontade de Deus.
Seria um erro, contudo, ver Deus e o homem "partilhando entre si" a responsabilidade do fato, como se atribuir mérito a um tirasse, nessa exata medida, o mérito do outro. "Um pouco de graças para você, e um pouco para Deus." Deus e o sujeito são integralmente responsáveis pelo salvamento de maneiras diferentes e não-excludentes. Deus, o mais óbvio, por ser a causa de tudo. Só que como Deus é a causa de tudo? Ele não pegou diretamente o cachorrinho e o colocou de volta em seu colo. Tudo o que Deus faz no universo Ele o faz por causas secundárias, isto é, pelo próprio processo da natureza. As coisas se comportam de acordo com suas naturezas, produzindo seus efeitos, e gerando novos seres e situações. É Deus que age por eles pois Ele as criou e, ademais, criou-os para especificamente este processo que de fato ocorre no mundo, até seus mínimos detalhes. Em casos mais raros, Deus age diretamente, sem causas intermediárias: chamamos a esses eventos de milagres (e deixo também um espaço aberto para o funcionamento da mente humana, que pode ser um âmbito no qual uma influência direta de Deus se dê ordinariamente; embora possa também não sê-lo).
O homem, agindo livremente como é de sua natureza, faz parte da criação divina. Ele é instrumento de Deus assim como todos os outros seres. Mas, diferentemente dos demais seres, ele age por decisão própria. Ou seja, sua participação na obra criadora de Deus não é apenas passiva, mas ativa, o que não muda o fato de que é Deus quem está por trás de tudo, mesmo da ação livre humana (o que me remete à superstição das pessoas que julgam que um evento aleatório - como um jogo de dados ou uma escolha "às cegas" de uma passagem bíblica - revele melhor a vontade de Deus do que a decisão consciente de um homem).
Assim, agradeça tanto a Deus quanto a seu médico (ou ao cara que salvar seu precioso cachorrinho): um não exclui, e nem se opõe de qualquer maneira, ao outro.