Desde que me entendo por gente,
sei que funciono melhor à noite. Se obrigada a acordar e a atender a
compromissos de manhã, sinto-me um zumbi. O horário mais confortável para o meu
funcionamento seria acordar às duas da tarde e dormir às quatro, cinco da
madrugada. Gosto de estudar, escrever e pensar enquanto todos dormem e não há
barulho ou movimento lá fora. O que há de errado nisso?
Não sei se há algo de intrinsecamente
errado nisso, quer dizer, se ignorar todo o resto para viver no “ritmo da noite”
de algum modo, a curto ou longo prazo, faz mal. Mas, pensando bem,
paralelamente ao instinto notívago sempre tive algo como um contra-instinto que
me fez buscar atividades diurnas; escolhi cursar a graduação de manhã e agora,
na pós, que só tenho aulas à tarde, me matriculei num curso de língua russa
optativo pela manhã. Se acordar cedo me é tão penoso, por que busquei essas
aulas matinais? Juro que nunca tinha pensado a fundo sobre isso, caro leitor.
Até que li essa matéria na Folha Online.
A Suécia começa neste mês uma nova revolução social, com a introdução da chamada "Sociedade B" -- uma sociedade que leva em conta os diferentes ritmos biológicos dos indivíduos para introduzir horários alternativos de funcionamento para escolas, locais de trabalho, universidades e organizações. (...) A Sociedade B se baseia em pesquisas científicas que indicam que cada indivíduo tem seu próprio ritmo biológico, uma espécie de "relógio interno" que é geneticamente determinado. (...) esses diferentes ritmos biológicos também são uma realidade nas escolas, onde um grande número de crianças e adolescentes tem dificuldades de concentração pela manhã. Ou seja, esses alunos não têm exatamente preguiça de levantar para ir à escola -- eles são apenas "pessoas B".
Dois conhecidos me enviaram a
matéria dizendo: “Olha aí a solução dos seus problemas”. Eu li e minha reação instantânea
foi pensar: “Esse mundo está cada dia mais louco!”
Acontece, leitor, que uma
iniciativa como a tal Sociedade B tem sua origem nas mesmas ideologias e é
suportada pelos mesmos grupos que defendem coisas como a extinção da diferenciação de
gêneros nas escolas e a “liberdade” para interromper gravidezes
psicologicamente estressantes, tudo em nome de uma dita “qualidade de vida” que
é maior ou menor segundo confirmam “as pesquisas científicas”. Não quero dizer
que rejeito a ideia da Sociedade B por causa das conexões ideológicas de seus
defensores – às vezes ideias boas surgem de locais insuspeitados, sobretudo
quando lidam com questões de ordem prática (nada impede um abortista de ser o
inventor de um excelente descascador de bananas). O que quero dizer é que todas
essas iniciativas – a liberdade para se viver de dia ou de noite, não ser
chamado nem de menino nem de menina e se livrar do estresse de gerar um filho –
têm a mesma raiz perniciosa, são afinal de contas a atualização de um mesmo
princípio cultural.
Parece que a palavra de ordem
da cultura contemporânea é não sentir dor, desviar de todos os obstáculos
possíveis, principalmente daqueles que transformariam você em gente grande, não
deixar que a ditadura da dificuldade oprima seus instintos mais viscerais, e
nunca, jamais, em hipótese alguma, passar vontade. No reino do relativismo o
barato é “ser o que se é”, e isto é nada menos do que se entregar ao acaso,
abrir mão do próprio destino, ir sendo ao bel prazer dos acidentes que cruzarem
o seu caminho. Pois é isso que acontece quando você se põe à disposição dos
seus “instintos viscerais”. Há tanta contradição dentro de um ser humano,
tantas pulsões conflitantes, que a cultura do “siga o seu coração, não oprima seus
instintos” só poderia resultar nisso que estamos vendo cada vez mais: pessoas
totalmente desnorteadas, incapazes de firmar compromissos, chafurdando até o
último fio de cabelo no aqui-e-agora, pois já não são donas do próprio futuro.
Isso se reflete de modo mais catastrófico (por atacar um âmbito tão básico da
existência humana) nos relacionamentos amorosos feitos de algodão-doce:
desfazem-se ao menor sopro. Eu estou com você hoje, mas amanhã posso sentir
vontade de estar com outra pessoa, e eu sou livre demais para não seguir as
borboletas no meu estômago, por isso chegarei aos trinta anos tomando ecstasy
nas baladas.
Voltando ao ponto específico
das “criaturas da noite”. Eu creio que em parte essa tendência notívaga (seja
ela inata ou adquirida, não faz tanta diferença) deva ser explorada por seus
portadores. Trabalhar à noite tem suas vantagens. Mas daí a institucionalizar a
coisa, apagando o conflito noite-dia, já é demais. Para mim o ponto-chave é que
esse é um conflito necessário: sair do conforto da noite para as obrigações
ensolaradas, forçar-se a funcionar segundo a normalidade, eis algo de que as
pessoas de hoje em dia necessitam. Eu, inclusive. Obrigo-me, duas vezes por
semana, a acordar às seis da manhã e frequentar o mundo dos diurnos, senão por
outro motivo, apenas por este não ser o meu mundo, e porque é difícil, porque
exige disciplina, abnegação, resignação. As pessoas de hoje em dia precisamos
demais de tudo isso. Nos demais dias da semana não acordo tão cedo, mas tento
também não acordar muito tarde, com exceção de, talvez, dois dias, nos quais
exerço plenamente minha potência noturna. Creio encontrar assim certo
equilíbrio. Tornar a noite em regra apenas reforçará em todos esses molengas da
Sociedade B sua imobilidade em relação a seus próprios acidentes.