As mulheres foram vítimas de diversas injustiças ao longo da história. Na Idade Média em diversas nações, por exemplo, não tinham o direito de herdar propriedades. Salvo raras exceções, não cursavam ensino superior e nem tinham qualquer abertura para a vida intelectual. Bem sabemos, também, que práticas absurdas como a punição física à esposa foram toleradas no Ocidente até pouco tempo atrás.
[Isso não quer dizer, contudo, que a vida das mulheres tenha sido, acima de tudo, marcada por sofrimentos e injustiças. Apesar desses, coisas más que os tempos modernos fizeram bem em corrigir, as mulheres, assim como os homens, sempre foram capazes de viver, ser felizes e até mesmo vencer as barreiras institucionais a seus anseios, como diversas mulheres notáveis ao longo da história mostram. Já que dei um exemplo negativo inicial da Idade Média, um período que conheço melhor do que os outros, é dela também que tiro exemplos positivos de intelectuais polímatas (Hildergad von Bingen), autoras literárias de sucesso (Christine de Pizan - inclusive uma protofeminista no sentido de se preocupar com a situação da mulher, Margery Kempe - autora da, se não me engano, primeira autobiografia em inglês), poetisas trovadoras (Clara d'Anduza, Almucs de Castelnau, a Condessa de Dia, Maria de Ventadorn), rainhas (Eleonora de Aquitânia) e ainda teólogas e místicas (Juliana de Norwich, Catarina de Siena, Brígida da Suécia).]
A luta contra injustiças reais, contudo, não justifica o uso da mentira e da distorção dos fatos. E quanto mais leio ou discuto com pessoas que se dizem feministas (que significa não apenas defender a igualdade entre homem e mulher, mas aderir a toda uma visão de mundo que relê nossa sociedade como uma luta de classes entre homens opressores e mulheres oprimidas), mais me parece que o que distingue o feminismo de uma mera reivindicação de justiça, e o que permite sua existência, são exageros, manipulações e até mesmo mentiras.
Uma dessas mentiras, patente e inegável, apareceu na discussão do meu artigo "O que Querem as Mulheres?". Disse uma comentadora, que no mais revelou, pelos termos escolhidos, sua filiação ao feminismo "ortodoxo", que não-sei-quantas mulheres são assassinadas pelo mero fato de serem mulheres. Segundo ela, quando um homem agride ou mata sua esposa ou namorada por sentir ciúmes dela, ele o fez porque ela é mulher. A prova da afirmação? Ora, se ela não fosse mulher, não teria sido morta. Assim, parece que o ódio à mulher explica uma série de crimes violentos cometidos contra mulheres.
Mas analisemos isso mais de perto: se fosse verdade que é o ódio à mulher que guia a ação do namorado ciumento, ele não limitaria sua violência à sua própria namorada. Qualquer mulher cumpre perfeitamente o requisito de seu ódio: ser mulher. Ele poderia tanto matar sua namorada quanto uma transeunte qualquer na rua; e por que não ambas? Fica claro que o que explica o crime não é o ódio à mulher; é o ciúme que o sujeito sente ao descobrir ou imaginar a infidelidade de sua namorada. Se ela não fosse mulher, ela seria morta? Bom, em se tratando de um heterossexual, é claro que não, pois se ela fosse homem, não seria namorada dele e portanto não poderia ser vítima de seu ciúme doentio.
Estaria uma feminista disposta a afirmar do caso de um homem morto pela namorada ciumenta, que esse homem foi assassinado "apenas por ser homem"? Não cola, né? Então a inversa também não pode ser verdadeira, por mais que as feministas desejem que seja (e elas o desejam porque, se admitirmos essa forma de falar, estamos dando crédito à suposta opressão masculina onipresente que rege a história humana e as relações pessoais). Se a explicação de tantos crimes contra as mulheres for apenas o ciúme universal somado aos efeitos comportamentais da testosterona e à confiança que a preeminência física dá no trato a dois, então o castelo feminista rui.
Na verdade, não é preciso nem recorrer à suposta maior violência do homem para explicar os casos de abuso físico e sexual nos relacionamentos. Já é bem sabido que entre homossexuais, inclusive entre lésbicas, vigoram taxas semelhantes de abuso (vejam também este estudo inglês). Infelizmente, não é incomum que uma parte mais forte exerça um poder indevido sobre uma parte mais fraca, seja de que sexo forem. Se uma mulher agride sua parceira, a culpa é do patriarcado?
Outra distorção muito comum é a do número de estupros, da qual é muito difícil conseguir dados sólidos. Há números para todos os gostos. Segundo artigo recente de Paula Abreu, uma mulher é estuprada a cada 12 segundos no Brasil; o que daria por volta de 2,6 milhões de estupros por ano. Para isso bater com os dados das secretarias de segurança estaduais (ex: RJ teve 4589 casos registrados em 2010), a taxa de denúncia oficial de estupro teria que ser bem inferior a 10%. A RAINN, uma ONG não-ideológica de combate ao estupro, abuso sexual e incesto, trabalha com uma taxa de 46% de notificação de estupros e abusos sexuais à polícia. Os dados dela vêm de um estudo do Departamento de Justiça do governo americano.
E olha que nesses casos registrados pode haver muitos abusos sexuais que nem de longe caracterizam estupro numa consideração objetiva dos atos (como esta do CDC americano, que, na violência sexual, distingue entre ato sexual completado - basicamente, qualquer tipo de penetração -, ato sexual incompleto mas com intenção de se completar, contato sexual abusivo e abuso sexual sem contato). A legislação brasileira, desde 2009, considera qualquer tipo de abuso sexual como estupro: da "mão boba" à penetração violenta. Nas palavras de um delegado-geral da Polícia Civil Paulista, Marcos Carneiro (citado em um dos links acima): “Antigamente, o estupro era algo muito específico: o homem atacando a mulher e tendo relação. Hoje, um beijo lascivo forçado pode ser entendido como estupro. [...] Ampliou muito o leque. Uma passada de mão no Metrô, dependendo do entendimento do delegado no momento e de todo o contexto, pode ser interpretado como estupro.” É bom e louvável que se procure registrar e punir mesmo agressões sexuais como uma passada de mão por fora da roupa. Agora, igualar isso à penetração sexual forçada é pura manobra demagógica para agradar grupos de pressão. É o equivalente a tipificar soco na cara como homicídio. O principal dano dessa decisão é a perda de informação que isso traz. Agora a informação oficial de estupros no país é pouco confiável; nunca saberemos a realidade e gravidade dos crimes sexuais no Brasil. Para variar, a jogada demagógica (de dizer que é tudo igualmente grave e que sequer propor que não seja já é um insulto) enlameia as águas da discussão. A boa intenção erigida em moralismo - do qual discordar gera indignação automática - perverte a busca da verdade.
Esse tipo de demagogia tem consequências nocivas. Por exemplo: é bem sabido que sociedades e culturas diferentes têm patamares muito diferentes de respeito à mulher. Já li, e já ouvi pessoalmente, relatos de mulheres que viveram na Alemanha contando que a agressão sexual e verbal lá vem principalmente, se não exclusivamente, dos turcos, e não dos alemães. No caso brasileiro, não é bonito dizê-lo, mas todo mundo deve ter uma ideia mais ou menos confiável de que nos estados do Sul a violência contra a mulher deve ser bem menor do que no Nordeste. Onde mais os benefícios da civilização ocidental chegaram, mais a mulher (e, na verdade, o indivíduo de maneira geral, independentemente do sexo) é respeitada. Mas se aceitamos a demagogia feminista, de que toda a sociedade é permeada de opressão patriarcal, igualamos coisas muito diferentes: São Paulo é tão machista e patriarcal quanto o Maranhão.
O feminismo vive de pintar o mundo como o mais puro horror para as mulheres. Sair na rua é uma experiência traumática, e cada segundo de vida é passado sob o medo intenso do estupro. Isso é algo que me interessa muito e que só fui tomar consciência lendo algo de sites feministas: de fato, para um homem que saia sozinho à noite, há o medo do roubo, mas não do estupro. Se estou com um grupo de semi-conhecidos, entro de carona num carro deles sem receio algum. Para uma mulher não é tão simples. Quando pergunto sobre isso, contudo, a amigas minhas, o que elas dizem difere muito da narrativa feminista padrão: sim, o receio do estupro é uma preocupação em determinados contextos, o que exige algumas precauções padrão (sempre levar dinheiro para um táxi, por exemplo); mas não é de maneira nenhuma um medo dominador de um perigo visto como sempre à espreita. Toda elas saem sem medo de casa sozinhas, têm vida social, não se importam se um desconhecido vier puxar conversa no bar, etc.
Vejam essa tirinha:
A vida da pobre mulher é uma sequência de insultos e baixarias que a deixam humilhada, com a autoestima no chão. Apenas uma verdadeira heroína aguentaria esse tipo de abuso interminável a cada momento do dia em que sai a público. E, quando volta ao "santuário" do lar, o que ela encontra? O pior agressor de todos - o marido! (A barbinha de cafajeste e a barriga de cerveja dizem tudo). Insensível ao sofrimento da esposa que ele diz amar, o safadão, assim como todos os anônimos da rua, a vê como um pedaço de carne. Depois de tantas agressões verbais no espaço público, ela agora se prepara, aterrorizada, para a agressão física dentro do lar (notem a mãozinha dele, chamando-a para a cama; e pela expressão facial e corporal dela vocês podem inferir o que ela sente pelo contato físico que está prestes a ocorrer).
Aqui no Ad Hominem, por outro lado, das minhas três amigas que comentaram o post "O que Querem as Mulheres?", duas disseram não gostar de comentários como esses, mas também não deram mostras de se sentirem assediadas o tempo todo e de viverem uma situação infernal toda vez que saem à rua; e outra disse que, dependendo da situação, até gosta deles. Ou seja: a tirinha é de um exagero patente; a cara da mulher no último quadrinho, como uma vítima, uma coitada oprimida e infeliz nas mãos dos homens, é, objetivamente falando, uma mentira. O que não quer dizer que não haja mulheres que se sintam assim.
Parece-me, portanto, que é na cabeça das feministas que o problema e as agressões tomam as proporções aterradoras e basicamente dominam a vida da mulher (quem duvidar do que estou falando, leia os comentários no site da Lola; há mulheres que dizem viver no mais profundo e constante pavor).
E se, arrisco agora, a real essência do feminismo estiver justamente nesse medo dominador? A doutrina feminista depende de fortalecer e arraigar o medo em suas adeptas, caso contrário ela seria vista como obviamente exagerada, para não dizer falsa. Mas e se a causalidade for inversa: é o medo inicial e irracional que cria e sustenta a doutrina que o justifica?
O mesmo vale para o primo pobre e louco do feminismo, o masculinismo, ideologia muito mais bizarra e ressentida que sua prima. Se fôssemos escolher um dos dois sexos como o que mais sofreu e ainda sofre injustiças no mundo, certamente seria o feminino. De onde então esses caras tiram que são os homens que sofrem, sistematicamente, humilhações e opressão nas mãos das mulheres? É certo que uma outra tentativa de correção legal ou de imposição da cartilha feminista por meio da lei possa ter ido longe demais, ou ter sido baseada em exageros e mentiras demagógicas. Mas disso a imaginar uma conspiração feminina contra os pobres homens é ir da sensatez à loucura, não é?
No meu post, um masculinista - não o estou criticando pessoalmente, apenas usando-o de exemplo - trouxe um vídeo que ele considerava absurdo: um homem é espancado por outros por ter estapeado uma mulher que o estapeara. É para rir?
O princípio de que a mulher é diferente do homem, em geral mais delicada e frágil fisicamente, está enraizado em nossa cultura - talvez porque as mulheres de fato o sejam. Não tem nada de conspiração feminina nisso. Pelo contrário, para as feministas esse princípio é machista, pois diz que a mulher é incapaz de se defender autonomamente como o homem. Seja como for, é por causa desse princípio que se considera que usar da violência contra uma mulher é uma desonra para o homem e visto como um crime muito mais sério e covarde do que usar violência contra um outro homem.
Tem gente, em geral feministas, que quer abolir esse princípio, mas não sei se elas próprias querem as consequências que isso implicaria. Recentemente uma aluna da ECA (faculdade de comunicação e artes da USP) recebeu uma rasteira sem noção de um colega retardado. Um amigo dela, em defesa da moça, escreveu: "O ato se agrava por ser a agredida uma mulher, mas independentemente de gênero, usar da força por motivo fútil é, em si, vergonhoso." É um julgamento quase inescapável: o fato de ela ser mulher agrava a agressão. E se não agravasse? Então a agressão seria encarada da mesma maneira que entre dois homens: isto é, não geraria escândalo ou indignação e seria quase inconcebível chamar a polícia (quem chama é visto - dependendo do caso, justificadamente - como covarde). O esperado socialmente dessa menina seria que ela se levantasse e revidasse a agressão, iniciando assim uma luta. Tem certeza de que isso seria melhor?
Noto entre os masculinistas alguns lugares comuns: como o de que as mulheres só fazem sexo com "homens alfa", e não com perdedores. Ora, se eles acreditam nisso, ao menos uma coisa se segue: eles, que se autoidentificam como não sendo "alfas", não encontram parceiras (ou não encontravam antes de sua conversão) - se encontrassem, teriam em suas próprias vidas a refutação dessa tese absurda. E talvez esse fato, mais do que qualquer outra coisa, esteja por trás de sua visão de mundo anti-mulheres.