I. Há modos bastante prosaicos de
verificar a nossa – nós: brasileiros – progressiva incapacidade de perceber sutilezas. E digo-o assim mesmo,
“sutilezas”, de um modo geral e abstrato; tudo aquilo, enfim, que não é oito
nem oitenta, principalmente ao nível da língua; mas aqui penso em específico em tudo aquilo que
de meio imponderável há nos valores das
coisas (em acepção ontológica), os quais jamais coincidem com atualizações
completas do “ótimo” ou do “péssimo”, e no modo como a consciência humana se
relaciona com eles. (Evito escrever “bem” ou “mal”, em lugar de “ótimo” ou
“péssimo”, para não dar conotação meramente axiológica a essas atualizações,
por motivos que adiante ficarão mais claros.)
Veja-se, por exemplo, a confusão pueril
que nós, os indignados, fazemos entre o hipócrita e o pecador.
II. Um dos sentimentos mais
consagrados na imagem do brasileiro é a indignação. Da classe média para cima,
é potencialmente pateta, entre seus pares, aquele que não se afirmar
continuamente com um misto de revolta geral contra o Mundo (“governo”,
“sociedade machista”, “gramcismo”, “direção do Flamengo”, “inflação” etc.) e um
desengano radical contra tal revolta, o que serve de aborto preventivo de uma
ação que mal se insinuou. Por isso tanto mais passivo será o brasileiro quanto
mais ele se alegrar consigo próprio em sua indignação, que neste caso é uma
perversão emocional: é uma concupiscência,
a daquele que se compraz em um sentimento negativo que se articula não tendo em
vista objetivamente o que nega, aquilo a que responde na realidade (o valor em
causa), mas o conforto mesmo de negar. É um dos tipos de falseamento da
“resposta afetiva” (o modo como a totalidade do indivíduo reage àquilo que conhece,
ou seja, a emoção que inevitavelmente acompanha qualquer intelecção) que
Dietrich von Hildebrand, em The Heart,
vê como mais maléficos à visão distinta e clara do que são, afinal, as emoções:
como quando, por exemplo, uma pessoa chora comovidamente não tanto por conta
daquilo que a comove, mas por orgulhar-se de ser alguém capaz de se comover. O
que é dizer: muita vez ficamos indignados por considerarmos bonito ser um
indignado, e não tanto por ser a postura natural de quem nega um determinado
fato que clama por indignação.
Não é à toa que bem pouca coisa é
afirmação triunfal e entusiasmada em nossas artes. O brasileiro é capaz de
negar o mundo, mas não é capaz de fazê-lo tragicamente; porque não se trata,
afinal, de negação de algo exterior, mas apenas de afirmação mesquinha de si
mesmo. Sob esse aspecto, um grego cabe na cabeça de um brasileiro tão pouco
quanto o aoristo cabe na gramática portuguesa. A singularidade de uma
personagem como o Mestre Severino de Cais
da Sagração, de Josué Montello, está entre outras coisas em ser um dos
raros momentos em que, na nossa literatura, um homem, dotado de um firme
propósito, diz à morte: só morrerei quando eu disser que chegou a hora. E a
imagem do velho pescador que não sucumbe aos mares, aí, é a imagem de quem doma
a morte. De quem atravessa a barra do perigo, mas volta para casa. Fosse um
jornalista (eu mesmo, talvez) em seu lugar, veríamos nele algo bem diverso: um
sentimento difuso de indignação contra a própria existência do mar e sua
turbulência, sem sequer resquício da resignação que poderia levá-lo a cruzar o
mar. Pois o comum dos brasileiros hoje tem indignação o suficiente para odiar a
Bastilha, mas não tem alegria o suficiente para fazer uma Queda da Bastilha.
Nada o indignado odeia com tanta
intensidade quanto o hipócrita, e aqui voltamos ao início do texto. No entanto,
para ele, não existe distinção alguma entre o hipócrita e o pecador: essa
distinção já lhe é sutil demais e lhe escapa. Nós ouvimos os indignados
vociferarem: – A Igreja é hipócrita! – A família é hipócrita! – José Dirceu é
hipócrita! – Sou muito franco, odeio hipocrisia! – mas essas pessoas
rigorosamente não sabem do que estão falando. Não só por muitas vezes não
saberem o que é a Igreja, o que é a família, o que é o José Dirceu e, sobretudo,
o que são eles próprios, mas principalmente por não saberem o que é hipocrisia.
Ocorre-lhes que hipócrita seja a pessoa falsa, demagoga ou oportunista. Mas não
lhes ocorre que um hipócrita jamais é alguém com um ideal claro e franco e que
se esforça para atingi-lo, eventualmente fracassando em seu tento; não lhes
ocorre que isso é precisamente o oposto
da definição de hipócrita e algo muito próximo da definição de pecador
fervoroso, em seu aspecto de sujeito consciente e insatisfeito com sua danação.
O pecador diz, com sinceridade: Deus, afasta-me do pecado; e busca manter-se
longe do pecado, considerando o pecado de fato algo pecaminoso, mas
eventualmente caindo a sério nele. O hipócrita diz, talvez com sinceridade
ainda mais temível: meus amigos, Deus me livre de parecer um pecador aos seus
olhos; e em geral queda indiferente ao que há de pecaminoso no pecado, deste se
afastando só na medida em que lhe traz vantagens públicas.
III. Vai na distinção entre o pecador
fervoroso e o hipócrita – e na distinção que o indignado faz, ou antes não faz,
entre um e outro – uma complexa questão de filosofia dos valores, a que apenas aludi parágrafos acima: o modo como a consciência se relaciona com o valor
daquilo que lhe é objeto de experiência.
No pecador e no hipócrita
encontramos modos muito diversos de tratar do valor das coisas, o qual nunca
apreendemos com clareza se nos valemos de conceitos rudes ou amplos demais, do
mesmo modo como nos é impossível apertar um pequeno parafuso nos valendo de uma
britadeira – catalogar cada ato e coisa a partir de critérios ideais
pré-estabelecidos, sem o devido confronto entre idéia e fato (como faz o
indignado), é renunciar ao fato e ficar somente com a idéia. Mais ainda, esses
são modos radicalmente diversos de lidar com a própria noção de que algo tenha valor. A universalidade obrigante do reconhecimento da existência
de valores, pelo menos em seu fundamento, é-nos ainda mais ou menos o
imperativo categórico de Kant; o próprio senso de unidade do discurso que nos
leva fatalmente a certas conclusões, dadas certas premissas, impõe que
aceitemos o fato de que nenhuma idéia de dever moral que tomemos para nós
próprios pode ser tão só individual, uma vez que contradiria o próprio conceito
de dever, do qual duas das notas são sua necessidade e o desejo de máxima perfeição
(numa hipótese extrema e irreal, mesmo aquele que tem a “maldade” como meta não
deixa de tê-la em conta como algo ideal, como grau máximo de perfeição a se
atingir; mas não recordo se Kant diz algo nesse sentido nem tenho o livro à mão
no momento para conferir). Nesse ponto,
pois, e só nesse ponto, lógica e
moral são uma e a mesma coisa.
(É provavelmente ignorância
minha, mas só conheço dois autores que o afirmaram explicitamente: Olavo de
Carvalho e Otto Weininger, sobre o qual se lê uma ou duas coisas neste texto.)
Com isso, percebemos ser possível
até oferecer prova de que a noção de valor é estrutural e objetivamente
inevitável à conduta humana, já que, havendo um elo fundamental entre lógica e
moral, o homem, por meio desta última, necessariamente haverá de lidar com o
sentido, o valor, a qualidade das situações. Isso, contudo, assim afirmado, diz
respeito a um nível fundamental demais da consciência e corre o risco de ser
apontado como algo procedente apenas quanto à estrutura subjetiva do indivíduo;
não é suficiente para atinar aos valores específicos com que lidamos (“grotesco”,
“sublime” etc.) e afirmar a existência objetiva deles na realidade. Restaria,
dito de outro modo, a questão de se existem parâmetros objetivos para afirmar
que algo seja grotesco em si mesmo, independente de qualquer projeção da mente
do indivíduo sobre o objeto.
Por outro lado, pesa o fato de
que ou se atenta aos diferentes níveis de perfectibilidade de um ser, dada a
sua finalidade (aretê), e os
sentimentos correspondentes com que a consciência (o “coração”) responde a eles,
ou todo imperativo moral perde a escala concreta em que se atualiza. Da imagem
de um ser humano crivado de balas à imagem de um ser humano praticando a
caridade tem-se graus variados da realização do valor próprio à humanidade e,
portanto, graus variados de resposta afetiva diante da maior ou menor
realização da excelência de uma determinada coisa. Ou seja, a percepção dessa
escala e a conformação da conduta emotiva e volitiva a ela – o sentir e o querer em acordo com o que o objeto de conhecimento pede que se
sinta e se queira – só podem ser precisadas tendo em vista o valor individual
de cada ente em cada situação, e não apenas uma estrutura deontológica geral,
como a de Kant, a qual contudo, como disse, permanece válida e incontornável. Mas,
caso se postule que a percepção daquela escala não possui objetividade alguma,
sendo relegada à mera “subjetividade”, então não há nada que nos permita
afirmar racionalmente que existe pelo menos uma ligeira diferença real entre um
santo e um homicida – ou entre Bach e o funk. A negação da diferença entre uma
coisa e outra, ademais, não é sequer racionalmente formulável, pois aí a
própria linguagem, em sua comunicabilidade, seria impensável: negar a diferença entre o ótimo e o péssimo
é, na esfera dos valores, negar implicitamente a diferença entre linguagem
eficiente e linguagem ineficiente. É a forma afetiva e axiológica do
paradoxo do relativista: é algo que não se pode afirmar sem que a própria
afirmação seja um argumento suicida. Seria imprudência minha tentar expor aqui
como penso ser possível estabelecer tal objetividade, mas posso afirmar que sem
ela é impossível tornar congruentes vida e ciência.
IV. Outra dificuldade está em que o
fator mais imponderável de uma antropologia filosófica é o “centro decisório da
mente”, o que torna ainda mais sutil a questão da culpabilidade dos indivíduos
quanto ao seu comportamento frente aos valores e, portanto, mais tênue a
oposição hipócrita/pecador. É razoavelmente possível delimitar as três esferas
em que, em geral, se divide a consciência humana: a intelecção, a volição e a
afecção – embora eu desconheça quem o tenha feito de forma cabal,
principalmente quanto à última; mas o centro decisório, ao qual se dá
pouquíssima atenção, é uma articulação dos três fatores e, ainda, algo um tanto
mais acima e um tanto mais profundo, o que se prova pelo fato de que um homem
pode muito bem conhecer algo lhe percebendo seu valor próprio (intelecção), ter
um sentimento que lhe é mais ou menos objetivamente correspondente (afecção) e
se determinar a agir em conformidade com tal coisa (volição), mas, ainda assim,
talvez pela premência de um vício continuado, agir de maneira de todo
contrária. Mas já não se trata aqui apenas de sinceridade frente à consecução
de uma meta ou ao próprio estabelecimento de uma meta, como na distinção entre
o hipócrita e o pecador fervoroso. Trata-se de algo que, à falta de melhor
nome, talvez pudéssemos chamar de “fortaleza”. Pouco sei o que pensar a
respeito.
Do ponto de vista do valor – algo
adjacente à “causa final” aristotélica – de cada coisa, a postura do hipócrita é
a de uma preguiça espiritual, uma intransigência em não querer responder
afetivamente àquilo que lhe é objeto de intelecção. É similar ao que a Igreja
chama de acídia, e não consigo pensar
em melhor nome para essa sofreguidão deprimida, esse deixe-estar do espírito. Vale
aqui, aliás, fazer um pequeno reparo a uma obra.
V. Max Scheler, na segunda parte de Essência e Formas da Simpatia, dá por
implícito, em sua argumentação, que os sentimentos vão de uma máxima afirmação
a uma máxima negação da experiência; iriam, assim, do máximo amor – o desejo
derradeiro de que algo seja – ao
máximo ódio – o desejo derradeiro de que algo não seja. Com todos os seus méritos, ele se equivoca nesse ponto.
Ora, o ódio é um empenho do indivíduo frente a algo, é uma postura proativa; o
ódio pode inclusive ser uma santa ira, e assim a outra face de uma afirmação
amorosa: como Jesus expulsando os vendilhões do templo*; e isso evidentemente é um princípio de deslocamento ao longo da
escala afetiva, para mais próximo ou não do amor. Mas de forma alguma é o
oposto radical deste. O oposto radical do amor, do desejo de eternidade do
objeto amado, é a acídia à que me referi. É o simplesmente não atinar ao valor
das coisas; é quase que se deslocar para fora da escala humana e normal de
sentimentos, esta não lhe dizendo mais respeito. Não é o desejo de obliteração
de algo, como pode ser o ódio; é a indiferença total do indivíduo diante de um
determinado objeto de atenção. Logo, é uma psicopatia do espírito.
O hipócrita, em suma, tem algo
disso – algo da acídia; o pecador fervoroso, não, ou o tem menos, com o que
ambos são quase tipos caracterológicos – sim: lido aqui com tipos caricatos – a
ilustrar as respostas afetivas o mais radicalmente opostas com que uma
filosofia das emoções tem de lidar.
Mas, bem abaixo da questão
filosófica, há confusões públicas quanto ao seu aspecto mais prático. Reações como
a recente em torno do pastor Marcos Pereira acabam se constituindo num clamor
contra o hipócrita (o que parece ser mesmo caso), o que é legítimo; o que não é
legítimo é que, daí, passe-se à generalização de que líderes religiosos talvez
sejam todos uns hipócritas e, numa extrapolação mais surpreendente ainda, à
generalização de que toda e qualquer vida religiosa só pode ser uma intricada
sistematização de hipocrisias. Isso é perder de vista a sutileza, aliás, nem
tão sutil assim, em que diferem o hipócrita e o pecador fervoroso. O primeiro
está mais, sob o aspecto da culpa, para a renitência final de Iago. O segundo,
mais para a morte de Lady Macbeth, que termina louca, não se sabe se só
desesperada ou também arrependida. O risco de perder toda a noção da diferença
entre uma postura e outra; o risco de pensar que as palavras “ideal” e “ideologia”
descrevem uma e mesma coisa só porque têm a mesma raiz; o risco de pensar que nada
diferem em méritos o homem que falha em alcançar uma meta e o homem que desde o
princípio apenas finge querer alcançá-la: esses são os riscos que o indignado
de mesa de bar, essa espécie de ressentido tão tipicamente brasileira, nos põe
a correr.
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* Mas justiça seja feita a Scheler. Em
alguns momentos, ele chega a insinuar, mas não leva adiante, a inadequação da
oposição amor-ódio, como ao escrever (cito de uma tradução francesa do livro, Nature et formes de la sympathie, trad.
M. Lefebvre, Payot, 1971, p. 212-213; creio que a versão indireta livre, neste
ponto, não fira muito o original; e, infelizmente, não cabe tratar aqui o que o
autor entende por “valor superior”):
Em primeiro lugar, a diferença entre
o amor e o ódio não é tão grande assim, pois se pode ver no ódio o amor pela não-existência
de uma coisa. O ódio é antes um ato positivo no qual está dado um não-valor
tanto quanto no amor está dado um valor positivo. Mas, ao passo que o amor é um
movimento que se dirige dos valores inferiores aos valores superiores e a favor
do qual o valor superior de um objeto ou de uma pessoa se nos impõe subitamente
como inspiração, o ódio representa um movimento em sentido inverso. Isso
implica, sem que haja necessidade de nisto insistirmos, que o ódio visa à
existência possível de um valor inferior (sua existência mesma já sendo um
valor moral negativo) e à supressão da existência possível de um valor superior
(supressão que, por sua vez, é um valor negativo). O amor, ao contrário, visa a
realizar um valor tão elevado quanto seja possível, o que por si só já é um
valor positivo (como quando se trata, por exemplo, da conservação de um valor
superior), e a suprimir um valor inferior (intenção que por si própria já é um
valor moral positivo). Assim, o ódio não comporta uma negação absoluta dos valores
em geral; antes, implica uma intenção positiva para com os valores inferiores.