Por que não sou vegano?
A pergunta não é tão fácil de ser ignorada, ó leitores hedonistas. "Gosto mesmo é de um bom churrasco!" - Eu também gosto, mas você gosta tanto de um bom churrasco que está disposto a matar vários animais de forma excruciante, fazendo com que seus últimos momentos de vida sejam de dor e desespero? Se você, como eu, não é vegano, sua resposta já é sim.
A pergunta não é tão fácil de ser ignorada, ó leitores hedonistas. "Gosto mesmo é de um bom churrasco!" - Eu também gosto, mas você gosta tanto de um bom churrasco que está disposto a matar vários animais de forma excruciante, fazendo com que seus últimos momentos de vida sejam de dor e desespero? Se você, como eu, não é vegano, sua resposta já é sim.
Ao contrário do que alguns pensam, o veganismo não depende de se denunciar o "especismo". Não depende de considerarmos que homens e animais têm o mesmo valor. Imagine um bombeiro que, num prédio em chamas, prefira salvar dois ratos a salvar uma criança. Seria monstruoso; e um vegano pode afirmá-lo sem problemas. Ele pode reconhecer que o homem é, em alguma instância, superior aos outros animais e, mesmo assim, julgar que essa superioridade não é tal que justifique escravizar e matá-los apenas para proporcionar-lhe um prazer gustativo e um conforto maior na vida.
Hoje em dia, com a tecnologia que temos, matar animais - para comer, para se vestir e para quase qualquer outro fim - é uma escolha conveniente, e não uma necessidade. É possível viver sem escravizá-los e matá-los: com um pouco menos prazer e conforto, mas nada de outro mundo. Talvez seja impossível zerar completamente o dano direto causado a animais? Talvez. Mas dá para diminuí-lo muito, e isso não seria já um objetivo salutar?
Parece-me, contudo, que mesmo esse veganismo mais razoável leva, ele também, a conclusões práticas nada razoáveis. E portanto deve haver algo de errado com ele, ainda que não saibamos mostrar bem o quê.
Se diminuir o sofrimento animal deva ser um fim relevante para nós, então não podemos ficar indiferentes ao sofrimento que não é causado por nós. Voltemos à comparação com seres humanos: o sofrimento de uma criança é algo que devemos tentar diminuir, sem considerar se ele é causado por homens ou se vem de alguma causa não-humana. Claro, devemos ter como princípio jamais causar voluntariamente sofrimento sério a uma criança. Mas se uma criança sofre por uma causa não-humana - digamos, malária - isso é também algo que devemos investir recursos para sanar. Com os animais vale a mesma coisa: se devemos nos preocupar com o sofrimento animal, então nos interessará diminuir não apenas o sofrimento que causamos a eles mas também, na medida do possível, o sofrimento oriundo de outras causas.
Sabemos que a vida "no meio natural" é marcada por sofrimentos imensos e recorrentes. A vida do leão na savana depende da morte do filhote de zebra. E se o sofrimento animal nos diz respeito, então o sofrimento desse filhote de zebra nos diz respeito. Cabe a nós impedi-lo, salvar o tal filhote da morte dolorosa.
Mas e a fome do leão? Deixar alguém morrer de fome também não é muito ético. Como conciliar essas duas necessidades incompatíveis? Uma ideia é permitir a morte da zebrinha, mas torná-la indolor por meio de anestésicos. Outra é alimentar os leões com carne sintética. "Pera aí cara, você já está indo longe demais!" Não estou não; existem utilitaristas não-especistas que defendem exatamente isso: intervenção no meio natural para minimizar o sofrimento que nele ocorre. E essa conclusão prática me parece absurda.
O fato de haver sofrimento humano ainda não sanado, e de, tudo mais constante, o homem ser mais importante do que os outros animais, não impede que essa mesma conclusão prática seja alcançada. Pelo simples motivo de que, havendo alguma comensurabilidade entre bem-estar humano e animal (e no início aceitamos basicamente isso ao dizer que um pequeno desprazer humano não justifica um enorme sofrimento animal), conclui-se que pode haver sofrimentos animais intensos o bastante para justificar que tomem nossa prioridade, mesmo com sofrimentos humanos ocorrendo paralelamente.
Até agora estive supondo que temos alguma obrigação de sanar o sofrimento alheio. Talvez se essa premissa cair, a conclusão absurda não se siga (continuará sendo meritório sanar o sofrimento alheio; mas não obrigatório - assim como é meritório ajudar uma abelha que perdeu o rumo dentro de casa, mas ninguém diria que é uma obrigação nossa zelar pelo bem-estar das abelhas). Mas me parece que abrir mão dessa premissa é adotar um egoísmo muito grande. Não temos obrigação nenhuma para com os sofredores do mundo? Acredito que devamos sim ajudá-los, e que negligenciar isso seria errado (o que não quer dizer que algum deles tenha direito sobre nossos recursos e nosso tempo). Já negligenciar o sofrimento animal natural não me parece errado (exceto talvez em casos muito específicos e de muita proximidade). Se for, segue-se a conclusão acima apontada.
Como mencionei antes, se nosso foco for o direito e não a minimização do sofrimento, a coisa muda um pouco de figura. Se o importante for preservar direitos dos animais, então que eles sofram por causas não-humanas é um problema mas não necessariamente exige solução nossa. Do nosso ponto de vista, o importante é não violar o direito deles. Se um homem é atacado por um leão, isso é uma tragédia, mas seu direito à vida não foi violado, como seria se ele fosse atacado por outro homem.
O problema é que falar em direitos exige que se fale também na defesa do direito; inclusive no direito de se defender um direito com violência. No fundo, afirmar que alguém "tem direito a X" implica afirmar que essa pessoa tem direito de usar a violência para garantir seu X se alguém tente tirá-lo dela. Então se aceitamos que animais têm direito à vida, por exemplo, teremos que concluir que um homem que viole esse direito é um assassino e que, para evitar esse assassinato, é lícito usar violência contra ele; mesmo que a violência seja letal. Novamente, chegamos a uma conclusão que considero absurda: é lícito matar um homem que esteja prestes a agredir um animal (o funcionário de um abatedouro, ou alguém que veja e pise numa formiga?).
A ordem natural das coisas
Uma objeção às considerações acima seria a de que não dei devido peso ao valor da ordem natural, do equilíbrio dos ecossistemas que vigora em diferentes partes. O bem da natureza não é apenas o bem-estar de seus indivíduos constitutivos, mas também a saúde do todo, do sistema de interdependências que eles compõem. Assim, o veganismo não depende de tratar os bichos como indivíduos dotados de direitos, mas sim da percepção de que o mundo natural tem um valor intrínseco.
O problema dessa visão é que, desde Darwin, sabemos que a natureza não opera num equilíbrio. O que, para um observador casual, parece ser um ecossistema estático, é na verdade um curto período de um processo de mudanças ininterruptas. 99% das espécies de seres vivos que um dia existiram já se extinguiram, e apenas uma minúscula parcela dessas extinções se deu por mãos humanas. A natureza está sempre mudando.
Além disso, o homem é parte da natureza (um vegano aliás tenderá a afirmar isso com mais afinco do que um cristão). As alterações que ele causa no meio natural são também parte da natureza. A cidade humana é um ecossistema da mesma forma que a selva virgem. Por que a fauna de homens, ratos, baratas, formigas, pardais e pombas seria menos valiosa do que aquela de onças, antas e araras?
O único critério para se fazer um juízo de valor desses é o próprio homem. Para o homem, não é bom que as selvas sejam todas destruídas, ou que todo o planeta seja convertido em pastagens e parques industriais, e que o ar seja inundado de gás carbônico e fuligem. Já para os ratos, isso seria muito bom. E sendo o critério o bem do homem, a conclusão vegana não se segue. Pois para esse critério, toda vez que um bem humano puder advir de um mal para algum animal, não haverá problema em se perseguir esse bem e causar, portanto, o mal animal.
Por que não sou vegano mesmo?
Ah sim, voltando ao tópico. Pelas razões aludidas acima, ou seja, pelas conclusões práticas absurdas ou ao menos muito contraintuitivas do veganismo (ou melhor, dos possíveis embasamentos do veganismo), penso que há um problema de princípio nelas. E esse problema está exatamente em afirmar uma comensurabilidade entre sofrimentos animais e humanos; afirmação que parece razoável, mas que leva a consequências não razoáveis.
Afirmo sem problema a superioridade humana, pois somos capazes de alcançar bens inacessíveis aos animais. Aliás, enquanto agentes racionais, somos a origem dos juízos de valor no cosmos. Mesmo um pequeno bem nosso (ex: maior prazer gustativo) pode justificar um mau muito grande (ex: morte dolorosa) causado a muitos animais (parece horrível quando dito, não? Mas nossa vida, da alimentação às pesquisas científicas, depende dela; saiba o que você está defendendo). O sofrimento animal deve ser absolutamente evitado apenas quando ele não tem nenhuma contrapartida boa humana (por exemplo, no caso da crueldade: o prazer em fazer o animal sofrer - aqui, diferentemente do prazer de se comer, a satisfação vem da própria dor causada; é um desejo irracional).
Outro suporte do meu não-veganismo é a suspeita de que antropomorfizamos demais a psicologia animal. A bem da verdade, antropomorfizamos até mesmo objetos inanimados e plantas. Com os animais é ainda mais forte. Duvido da ideia de que existe na mente deles uma narrativa da própria vida, mais ou menos como a nossa, na qual sofrimentos e medo da morte apareçam como questões cruciais e terríveis. Eles não são pessoas nesse sentido. São uma sucessão de estados subjetivos - informados por uma memória, é verdade; não se trata de uma pura sucessão de sensações desconexas - sem grandes preocupações ou pensamentos sobre o que não é presente ou que é atualmente desejado ou temido.
Vejo meu gato. Ele me adora; dou carinho nele rotineiramente. Ele vem se esfregar em mim, ou mesmo deitar em mim, sempre. Mas quando ele está num lugar onde não deve (na cadeira onde quero sentar, por exemplo), enxoto-o com um empurrão e uma voz brava, e ele sai. Nem por isso nossa relação sai prejudicada, e nem há nele qualquer ressentimento ou ressabio com relação a mim. Sou sua autoridade; mando nele e posso machucá-lo, mas também posso fazer-lhe se sentir bem e dar-lhe uma ração úmida que ele pede toda noite. Não há expectativa alguma de "tratamento humano", e ele é feliz assim.