A preocupação com o bem estar animal merece consideração mais atenta do que a concedida por Luiz Felipe Pondé em “A Ética das Baratas” (Ilustrada, 16/09/2013). Ridículo ou não, há um problema mal-resolvido aí que nos desafia a encará-lo.
É complicado negar que o valor da vida humana seja superior à de outros animais. Ou então responda: num incêndio, um bombeiro que preferisse salvar dez ratos a salvar uma criança agiria corretamente? Não é preciso, contudo, condenar o “especismo” – o preferir pessoas a ratos – para se adotar uma posição vegana quanto à morte de animais; ou seja, para se negar a matá-los e a explorá-los.
Para muita gente no planeta, matar animais talvez seja questão de sobrevivência. Para indivíduos de classe média nos grandes centros urbanos (a maioria dos leitores deste blog), no entanto, o que está em jogo não é uma decisão entre vida humana e vida animal. A decisão é entre vida animal e pequenos prazeres humanos. Aí já fica mais difícil justificá-la.
Você estaria disposto a matar dezenas de animais de maneira cruel para usufruir de algumas horas de prazer? Se você frequenta churrascarias, sua resposta já é “sim”. A maioria prefere não pensar no assunto e esquecer que a picanha e o espetinho custaram vidas e causaram dor. Só que essas mesmas pessoas ficariam horrorizadas se um vizinho adotasse um lindo cachorrinho numa pet shop e, chegando em casa, jogasse-o na panela para preparar um ensopado. Tem algo aí que não fecha.
O sofrimento de porcos e bois num abatedouro está mais distante de nossos olhos e ouvidos do que o do cachorro do vizinho, mas é igualmente real. Sim, é verdade que, como afirma Pondé, a natureza “mata sem pena fracos, pobres e oprimidos”. Leões, pássaros e bactérias matam e continuarão matando sempre; não têm escolha. Nós temos. Podemos matar ou não matar. É por isso que a questão ética surge para nós e não para os leões. É correto causar sofrimento a outros seres? Em que casos? O que deve pesar mais: o prazer de comer um bife ou a agonia brutal do boi?
Dito isso, adianto que não sou vegano. Vou sem culpa a um churrasco, e estou preparado para defender minha posição. Nego que haja comensurabilidade entre o bem humano e o bem de animais não racionais, e posso mostrar os problemas conceituais e práticos que identifico no veganismo. Discordo dele, mas não posso dizer que seja ridículo. É uma posição honesta, que leva às últimas consequências uma intuição ética universal: não devemos causar sofrimento desnecessariamente. Fugir do assunto, ridicularizando quem tenta alcançar consistência entre ideias e modo de vida, é uma postura empobrecedora, especialmente quando vem de um filósofo.
Enquanto toda a sociedade busca empurrar para longe da consciência fatos que, se levantados, nos incomodariam profundamente, o filósofo deveria ser o primeiro a protestar e a suscitar a dura reflexão; independentemente da posição específica que venha a adotar.
Tomar consciência da quantidade de dor animal que vem embutida em nossas opções de consumo é coisa séria, e que muita gente evita. Uma vez conscientes, daí sim poderemos mudar essas opções ou, caso contrário, afirmar essa dor, agora de olhos abertos.
Artigo originalmente rejeitado pela Folha de S. Paulo.
Artigo originalmente rejeitado pela Folha de S. Paulo.