É bom para o Brasil que médicos de outros países – inclusive
de Cuba – atendam nossa população desamparada. É bom também chacoalhar o poder
do CFM; deixar que a medicina seja praticada mais livremente, fora das
regulamentações impostas pelo cartel. O que não
é bom é o projeto político a que esse influxo cubano
serve. Explico-me.
O benefício de se receber mais médicos
Os médicos cubanos melhorarão a saúde das localidades que atenderem.
Essas localidades são sub-atendidas por médicos brasileiros, pois aqui a
escassez relativa de médicos permite que novos formandos aspirem a condições de
vida e de trabalho melhores do que as que vigorariam numa vila pobre do
interior. Imagine um médico recém-formado. Suas opções são buscar trabalho numa
grande cidade, onde será desafiado, fará contatos, se desenvolverá na carreira,
na vida pessoal e cultural; ou passar anos num fim de mundo sem amigos, sem
nada para fazer, receitando antibiótico e alertando a população sobre água
suja. Sem desafios, sem contatos, sem futuro. Ainda que com salários (da rede
pública) menores, a cidade grande vence.
O atrativo econômico de se ser médico, contudo, e a
consequente expansão dos cursos de medicina, formando 16 mil por ano, já vem
trazendo resultados: muitos médicos, que sonhavam com uma carreira sólida e
bem-remunerada, têm se deparado com um mercado muito competitivo – menos atraente, portanto – nas grandes cidades. Ou se entra no jogo das
seguradoras, que garantem demanda constante, mas a um preço muito baixo; ou se
arrisca no o voo solo, correndo o risco de consultório vazio.
Essa remuneração abaixo do esperado faz com que outras
opções (ir trabalhar no interior do país), antes pouco atrativas, fiquem aos poucos
mais interessantes. Os salários da rede pública não obedecem diretamente às
pressões de mercado, mas é razoável esperar que também não sejam totalmente
independentes delas (com mais médicos, fica, no mínimo, mais difícil conseguir
um emprego bem pago na rede pública, pois aumentam os inscritos em concurso). Ao ritmo atual de formação de novos
médicos, é de se esperar um crescimento gradual, natural, da presença médica em
cidades menores.
Mesmo assim, dificilmente chegarão aos lugares mais remotos.
Simplesmente não vale a pena se preparar por 10 longos anos em cursos caros
para uma carreira de cuidar de infecção, gravidez adolescente e hipertensão no
interior do Acre. A imposição de um patamar de formação mínimo garante a carência crônica da oferta.
Essa lacuna acaba sendo ocupada pela medicina alternativa (ervas, curandeiros,
rezadeiras, parteiras, cirurgiões espirituais, etc.), mas é uma pena que justo
a medicina que funciona a taxas melhores que o placebo tenha tamanhas barreiras
legais à sua prática.
Já para os médicos cubanos a transação vale a pena. Ainda
que fiquem perdidos no coração do Brasil, suas condições de trabalho, e a
infraestrutura que encontrarão, serão equivalentes às da pátria mãe, e a
remuneração será muito superior. Sendo assim, para uma cidadezinha de interior,
que não tem os recursos para atrair talentos das capitais brasileiras, faz todo
o sentido importar médicos de Cuba, onde eles são abundantes e pobres, e
portanto dispostos a migrar por salários bem menores que os dos médicos
nacionais.
As manobras defensivas do CFM
Como todo cartel, o CFM – e seus equivalentes estaduais –
está sempre querendo limitar a entrada de novos prestadores do serviço: provas
de qualificação para exercer a profissão (que ainda não foram implementadas,
mas já se fala no assunto), fechamento de cursos que não se adequarem a um certo nível de
qualidade, etc. Ou então querem aumentar as prerrogativas legais dos médicos,
como faz o Ato Médico; ao exigir a assinatura de médico para uma série de
atividades que antes não o exigiam, os médicos aumentam seu valor de mercado (e
encarecem todas essas atividades). Na mesma linha dessas reservas de mercado
está a exigência do Revalida para médicos estrangeiros. Seria interessante
saber quantos dos médicos brasileiros atuantes, que saíram faz tempo da
universidade, passariam naturalmente (sem cursinho!) no Revalida.
Não tenho a menor dúvida de que a objeção de muitos médicos
é verdadeira: falta estrutura física, remédios e utensílios médicos; um médico
sozinho não pode fazer muita coisa. Mas poderá fazer algo. É melhor um médico sem nada do que apenas nada. O mesmo vale
para o nível de formação: antes um médico de formação precária (precária para os padrões estabelecidos pelo CFM)
do que médico nenhum. Mesmo porque a maioria dos cuidados médicos necessários
em tais lugares são primários. Segundo uma médica brasileira formada em Cuba e
que voltou para cá (o processo de validação de seu diploma foi eficiente:
demorou apenas quatro anos), 80% dos pacientes não necessitam de equipamentos ou estrutura cara; apenas de
um médico fazendo coisas que, a bem da verdade, profissionais com formação bem
menos exigente também poderiam fazer. O raciocínio do CFM parece ser: já que
não dá pra cuidar dos 20% de casos difíceis, melhor não cuidar de nenhum.
Uma evidência forte de que a revolta da classe médica se dá
antes por um espírito de autodefesa corporativa do que por zelo pela saúde
nacional (o que não nega que tenham também
zelo pela saúde nacional) é a ameaça do MP de processar o Mais Médicos por não seguir a lei trabalhista na contratação dos médicos estrangeiros. Ora,
esses médicos conhecem os termos da contratação, querem vir para cá trabalhar nesses termos, e prestarão um serviço que
os médicos brasileiros não querem prestar. Como ser contra essa vinda? Esse ponto deveria, por sinal, despertar nos defensores do Mais Médicos – gente em geral “de esquerda” – alguma suspeita de que as leis trabalhistas não sejam coisa tão boa assim. Afinal, o mesmo exato raciocínio que aplicamos aos médicos estrangeiros se aplica a qualquer trabalhador brasileiro.
Os médicos estrangeiros não “resolverão” o
problema da saúde. Mas servirão para aliviar um pouco o sofrimento de doentes
espalhados pelo país. Talvez consigam até mesmo imbuir as populações pobres de
bons hábitos preventivos, em que os médicos cubanos são aparentemente bons.
Médicos em Cuba
Em Cuba, sobram médicos. Movido por decisões políticas, o regime cubano promoveu
a intensa formação deles ao longo de décadas. Com tanto capital humano dedicado
à medicina, ele naturalmente escasseou em outras áreas, tão ou mais
importantes, diga-se de passagem. Nem só de médico vive o homem; e Cuba, país
com medicina razoável e ainda assim miserável, é um bom lembrete. “Maybe
there is no gasoline in Cuba to fill the car up before heading off to work in
the morning, and they don’t have meat for lunch everywhere, but at least the
people are healthy.” Diz uma reportagem russa
de 2003 que, ainda assim, elogia a qualidade do sistema. Por causa do número de
médicos, a remuneração deles é muito baixa - menos de US$ 50,00/mês. Ganham, eles também, menos que
cabeleireiro e funcionário de hotel.
Com médico sobrando e estrutura física cada vez mais precária e dilapidada, a medicina cubana naturalmente se especializou em modalidades
que demandam mais capital humano e menos capital físico: medicina preventiva,
médico de família, acompanhamento dos pacientes, conserto e manutenção de
equipamentos velhos, etc., coisas que fazem falta em países pobres.
Apesar dos méritos, os resultados dessa medicina não são
espetaculares como alguns acreditam. Cuba tem um bom sistema de saúde; melhor,
sem dúvida, que o nosso SUS – que é igualmente estatal. Mas pelo ranking dos sistemas de saúde feito pela OMS em 2000, estava atrás dos latino-americanos
Colômbia, Costa Rica, Argentina, Chile e Dominica. O fato do aborto ser
praticado a taxas altíssimas e o efeito positivo que isso tem no índice de mortalidade
infantil não é segredo para ninguém (quem morreu no útero, não morre depois de
nascer; especialmente se o aborto for praticado preferencialmente em fetos de
viabilidade duvidosa). Com uma taxa de fertilidade de 1,46 filhos por mulher, é muito mais fácil cuidar dos que nascem. Falando nisso,
Cuba acaba de entrar no time glorioso das nações com decrescimento populacional.
O sistema de saúde do regime cubano foi ajudado por décadas
de patrocínio soviético. Com dinheiro estrangeiro rolando solto, criava-se a
ilusão de prosperidade do sistema, usada para fins missionários. Desde os anos
60, o excedente de médicos fez parte da estratégia diplomática do Estado
cubano, e cumpre esse papel até hoje.
Entre 1999 e 2000, quando 166 médicos cubanos foram importados sob os auspícios do então ministro José Serra, a Veja fez uma reportagem a respeito. Não havia dúvida de que tinham uma finalidade política além da médica. “Fazemos isso porque somos socialistas e exercermos uma espécie de militância da medicina.”, justificou um diplomata cubano da época. Na vinda atual, permanece a mesma intenção militante. Como explicar médicos que saem do avião vestindo jaleco e abanando bandeirinhas de Cuba? Ocorre que esse tipo de propaganda é bastante inócuo, e nem é essa a principal função deles hoje em dia do ponto de vista do Estado cubano. Para ele, os médicos são primariamente uma fonte de receita.
Entre 1999 e 2000, quando 166 médicos cubanos foram importados sob os auspícios do então ministro José Serra, a Veja fez uma reportagem a respeito. Não havia dúvida de que tinham uma finalidade política além da médica. “Fazemos isso porque somos socialistas e exercermos uma espécie de militância da medicina.”, justificou um diplomata cubano da época. Na vinda atual, permanece a mesma intenção militante. Como explicar médicos que saem do avião vestindo jaleco e abanando bandeirinhas de Cuba? Ocorre que esse tipo de propaganda é bastante inócuo, e nem é essa a principal função deles hoje em dia do ponto de vista do Estado cubano. Para ele, os médicos são primariamente uma fonte de receita.
Desde que o patrocínio soviético secou, Cuba encontrou um novo uso para seus
médicos: exportação rentável. O primeiro e maior contrato foi feito com a
Venezuela, seu novo benfeitor, que oferece até hoje petróleo subsidiado (com a
subida do preço desde 1999, quando Cuba acertou com Chávez, o lucro por ela
ganho foi enorme). Faz sentido econômico: em Cuba sobram médicos e falta todo o
resto; hora de exportar. Isso tem sido feito ao ponto de efetivamente tirar
médicos do sistema de saúde cubano, levando a uma piora no atendimento local (seção “Costs for Cuba”; ou
então nesta revista online escrito por
cubanos – menos médicos em casa foi o preço para acabar com os apagões diários
de oito horas, opina um entrevistado). Já a saúde do Estado, que é a que importa nessa decisão, vai
bem. Serviços médicos são, de longe, a principal indústria de exportação
cubana; bem maior do que o turismo e do que aquela outra grande fonte de riqueza: o envio de dólares de expatriados para a família que ficou para trás.
Os médicos que vão para os diversos países se inscrevem
voluntariamente. Todos querem ir, porque ganharão mais dinheiro e poderão
trazer bens inacessíveis na volta para casa. Não que o médico que venha para cá
não queira ajudar. Mas ele também
quer comprar computador, eletrodoméstico e até carro novo (vide reportagem
antiga da Veja, linkada acima). Sim, isso mesmo: os cubanos são gente como a
gente, querendo melhorar de vida e comprar bens de consumo melhores. Até entre
médicos-militantes importados diretamente de Havana, que deveriam ser modelos
puros do altruísmo socialista, sobrevive o espírito inconfundível da classe
média.
A caridade do governo Dilma
O médico cubano é barato. Salário baixo (US$ 183,00/mês, em
média) mais despesas da estadia. Some-se a ela, contudo, uma taxa para o Estado
cubano, e ele sai caro. O Estado cubano é, afinal, o agenciador, o
intermediário desse tráfico de mão de obra, e guarda a maior fatia da renda
para si. No nosso caso, um secretário do Ministério da Saúde, Fernando Menezes, disse que os médicos cubanos ganharão entre R$ 2,5 e 4 mil. Como é
o governo cubano que determina o salário, não sei até que ponto essa informação
é confiável. Anteriormente, outro secretário do Ministério, Jarbas Barbosa, estimara que os cubanos receberiam o que costumam receber em
outras missões similares. Isso significa o salário de US$ 183,00 mais US$ 200,00 de despesas mensais gerais (incluindo passagem aérea). Ou seja, uns
US$ 400,00/mês, o que dá uns R$ 1000,00. Seja como for, dado que o governo
brasileiro paga R$ 10 mil/mês por médico à OPAS, que repassa 95% ao Estado cubano,
é seguro afirmar que mais de 60% do que for pago irá para ele.
Isso não viola algum princípio do socialismo, não? Longe de
ti esse pensamento! Apenas creia que Cuba vive um outro sistema, uma outra
mentalidade, e que nossos parâmetros capitalistas não dariam conta de
entendê-la...
De qualquer modo, há países pagando mais (Angola: US$ 5 mil/médico) e outros pagando bem menos
(Namíbia: US$ 2784,00, sendo que encomendaram apenas 52 médicos e algumas
centenas de enfermeiras). Como nossa encomenda é grande, e não estamos correndo
para amenizar uma catástrofe, termos melhores poderiam ter sido negociados. Bem
sei que Dilma e o PT apoiam o regime de Fidel. Apoiam-no a ponto, contudo, de financiá-lo
com dinheiro do Estado que controlam? Pode até ser, ainda mais considerando
que, para magnitudes brasileiras, o montante não é muito grande. Alguns
críticos de mente menos caridosa especulam que parte desse investimento ainda
voltará ao Brasil como caixa-2 do PT ou ajudará a seus membros de várias maneiras.
A causa do barulho
O Brasil já importou médicos cubanos antes. Não gerou
tamanha comoção. Seria só uma questão de escala? Penso que, para além dela, há
também o fato de que desta vez a importação foi trombeteada pelo governo
federal, que estava quase pedindo a polêmica que ela geraria. Por quê? Foi a
análise de André Forastieri que matou a charada para mim: trata-se é uma manobra para
melhorar a imagem do governo federal e do PT, no Brasil como um todo e mais
especificamente em São Paulo. São Paulo, que tem uma das melhores saúdes do
Brasil (por consequência de ser um
dos estados mais ricos), é o segundo estado que mais receberá médicos cubanos
nessa primeira fase. Ano que vem temos eleição para governador, e Alexandre
Padilha, nosso ministro da saúde – político sem brilho algum –,
será candidato em São Paulo.
A moral da história é que Fidel e Dilma são espertos. E os
povos por eles governados, tolos. O auê estéril criado pelos conselhos de
medicina, fruto dos interesses corporativos e do ranço antimercado que imperam
no pensamento público brasileiro (não nas ações privadas), foi previsto e agora
despertado pela estratégia eleitoral do PT. A raiva evidente de muito do
antipetismo é, aliás, forte sustentáculo eleitoral deste. Como aderir às ideias
de uma classe média raivosa que só pensa em si?
No Caribe, o lindo sistema criado por Fidel Castro adia um
pouco sua morte por inanição. Isso não acabará com a necessidade de se abrir ao
bom e velho mercado (como já está fazendo), mas ajuda a manter as aparências dos méritos do sistema.
Se tudo der certo para ele, a transição para o capitalismo democrático será gradual,
e a experiência de Cuba entrará para a memória histórica coletiva como um sucesso
moderado, ainda que um cubano de “classe média” viva como um favelado carioca e
um médico formado tenha que vender cano na rua para se sustentar.
Como efeitos colaterais dessa tramoia em dimensões estatais,
nossos doentes pobres receberão algum tratamento, e os cubanos ficarão um pouco
menos pobres. No todo, a equação é detestável e nos faz antever dias piores que
virão. Para além disso, o pequeno golpe no poder de cartel do CFM é bem-vindo. De
resto, assistimos como governantes arruínam a vida dos povos que supostamente representam,
sem que nada possamos fazer.
A única conclusão a que este liberal consegue
chegar é que a política definitivamente não é uma boa maneira de se resolver os
problemas humanos. Partidos que buscam aumentar os tentáculos dela - como o PT - não deveriam jamais receber nosso apoio. Mas agora que já fizeram o que queriam fazer, é contraproducente protestar justo contra um dos efeitos colaterais positivos que sua manobra produz.