terça-feira, 10 de janeiro de 2012

A leitura caoticista das obras de Lúcio Cardoso e Dostoiévski

Texto anexado em forma de apêndice à monografia final escrita para uma matéria do Mestrado sobre a recepção da literatura russa no Ocidente.
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Nenhum russo está mais presente no Diário Completo de Lúcio Cardoso do que Dostoiévski, tanto na forma de menções explícitas quanto em, por assim dizer, espírito. Ainda que se ignore a predileção de Lúcio pelo autor de Crime e Castigo, a relação entre ambos, para quem conhece as ideias e atmosferas dostoievskianas, salta aos olhos.

            Em entrevista a Fausto Cunha, o próprio Lúcio discute a apropriação de Dostoiévski pelos escritores de sua geração, incluindo, naturalmente, ele mesmo:

“Esse homem subterrâneo, esse atormentado e de alma nua que tanto nos
horripila às vezes, é exatamente o continuador dos romances clássicos que o
século passado nos transmitiu: a época nova, inaugurada com os intermináveis
monólogos de Dostoiévski, prosseguiu através da voz precursora de alguns
filósofos até arrebentar nessa figura de hoje, que tantos escritores de
talento procuram observar e conduzir às suas peças de teatro, aos seus
romances e novelas.” (Cardoso, 1997: 761)[1]

            Se há semelhanças entre as visões de mundo desses dois autores – ambos são cristãos, ambos tendem a enfatizar o aspecto trágico da existência, ambos atribuem significativa importância ao mal no processo de depuração espiritual das almas –, é possível observar, como contrapartida natural, certa semelhança entre a recepção de suas obras.

O método literário que Dostoiévski consagrou consiste em dar voz a seus antagonistas e levar seus discursos a extremos que, por si, demonstrem onde são equivocados ou perniciosos (o exemplo mais bruto desta técnica se realiza em Notas do Subsolo). Isto, porém, nem sempre é compreendido pelo leitor, e muitas vezes se entende literalmente, como se fosse a própria voz do escritor, aquilo que ele está tentando refutar. Não é à toa a gigantesca popularidade alcançada por um autor como Dostoiévski, cujas ideias pessoais, aquelas expostas em alguns de seus propositalmente ignorados textos jornalísticos, pouco apelo teriam junto ao grande público, sobretudo contemporaneamente. Mas a força das vozes por ele criadas, tão entre si diversas quanto sedutoras, tornam Dostoiévski em autor de cabeceira dos mais contraditórios grupos, de espiritualistas a niilistas. E aquilo que teria sido sua própria opinião (peço licença para utilizar palavra tão hostilizada pela crítica literária adepta da “morte do autor”), sua aversão às mentalidades revolucionárias, seu viés tradicionalista, sua ortodoxia inexorável – dão lugar, na apreciação de alguns públicos, ao mero “caos” que está longe de ser a substância de sua obra. E este “caos” pode ser valorado positiva ou negativamente; o que aqui se chama de “leitura caoticista” é mera a incapacidade de se reconhecerem tanto intenções artísticas quanto ideológicas por trás de obras como a de Dostoiévski, marcadas pelo turbilhão e pela histeria.

            Lúcio Cardoso, dono de um “talento cruel” como o do russo, costuma sofrer a mesma incompreensão. São, de fato, dois autores cuja tragicidade literária confunde o leitor simplista, para quem o título da novela de Lúcio, A Luz no Subsolo, só pode soar paradoxal. Autores incapazes de criar seres humanos ficcionais menos reais – isto é, menos complexos, menos enviesados – do que si mesmos e do que percebem ao seu redor, são ambos excluídos do rol de homens sóbrios e bem resolvidos, como se o puro e simples caoticismo fosse sua grande bandeira; porque projetam sua luz num plano frisado pela experiência do trágico, são acusados de homens sem luz. O que é, não apenas impreciso, mas de fato equivocado.

            Sabendo que não há um só modo de empreender essa leitura (em minha compreensão) equivocada, vejamos, a breve título de exemplo, o que diz Nelson Ricardo dos Reis em sua análise comparativa das obras dos dois escritores:

Nas literaturas de Dostoiévski e Lúcio Cardoso, o pecado, o mal, o inferno e o demônio têm uma conotação positiva. Esses elementos representam a transgressão, que, na concepção religiosa desses dois autores, é uma forma de se chegar ao sagrado.[2]

            Deixando de lado o absurdo – meio teológico, meio psicológico – de, para um cristão, o pecado, o mal, o inferno e o demônio terem conotação positiva, tem-se o erro de interpretação literária: dizer que a redenção é possível mesmo para o mais decaído dos homens, como fazem Lúcio Cardoso e Dostoiévski, não implica elogio da decadência moral. Se nas obras desses autores vemos homens em profunda relação com o mal serem salvos (Timóteo, em Crônica da Casa Assassinada; Raskólnikov, em Crime e Castigo – para ficar apenas nos grandes exemplos), é que eles (os autores) acreditavam na salvação e em Deus sobre todas as coisas, principalmente em face do que é mau; já segundo a leitura invertida que críticos como Nelson Reis fazem, tais situações ocorreriam nestas obras porque seus autores criam no mal sobretudo, valorizando-o positivamente. Mas, para um cristão, o mal jamais será condição desejável, tampouco “a transgressão é uma forma de se chegar ao sagrado”. No cristianismo, a única forma de se “chegar ao sagrado”, ou, em melhores termos, de uma alma salvar-se, é arrependendo-se e negando as transgressões cometidas, em nome de Jesus Cristo. A transgressão não é necessária à salvação, ela é aquilo apesar do qual a salvação ocorre.  O mal é inerente à condição humana, e crer no bem (em Deus) mesmo em meio às maiores adversidades (na expressão de Lúcio, ver a luz no subsolo; ou ainda Dostoiévski e sua experiência na Casa dos Mortos) é o caminho da salvação. Que o mal faça parte desse processo, como elemento catalisador, como obstáculo fortificante, não o torna em protagonista nem em algo, por si, desejável. No fundo o desejo de todo cristão é ser como as crianças pastorinhas para quem a Virgem Maria fez suas aparições em Fátima: santificadas na infância, sem necessidade de qualquer queda para aprenderem sua ascensão.

            Crime e Castigo e Crônica da Casa Assassinada têm em comum o fato de neles a luz (enquanto metáfora para redenção espiritual) só aparecer nos trechos finais, sendo que todo o conteúdo precedendo esse lampejar derradeiro se compõe das mais negras tragédias e dos mais dilacerantes sofrimentos – de modo que, por vezes, a mensagem condensada no epílogo (e que seria, pode-se argumentar, o motivo maior da trama, o que realmente interessara ao autor dizer) passa despercebida. É desse modo que Raskólnikov está longe de ser, no imaginário do leitor médio, “um paciente de redenção espiritual”; ele é, antes, o frio assassino da usurária, o mentor do crime lógico, o pai do super-homem nietzschiano. Do mesmo modo, Crônica da Casa Assassinada, que nos presenteia com cenas de incesto, adultério, suicídio e toda sorte de pensamentos desfigurados antes de apontar para qualquer possibilidade de redenção, muito naturalmente é precedido, em sua edição comemorativa pela editora Civilização Brasileira, por resenha crítica em que se afirma a genialidade da obra, “exceto o capítulo final, que empobrece a trama”.

            De fato, para uma vertente dessa leitura que se pode chamar de caoticista, a riqueza de autores como Dostoiévski e Lúcio Cardoso existe em função da abertura de ambos às pulsões destrutivas da natureza humana; donde superá-las, encontrando qualquer ideal que se justifique acima de tais forças desintegradoras, resulta empobrecedor, de pouco interesse mesmo. O próprio título da resenha de Crônica da Casa Assassinada mencionada acima, “Uma gigantesca espiral colorida”, evidencia que aspecto do romance se quer enfatizar. Trata-se de um perfeito exemplo de interpretação que exalta o “caos”, não só não dando atenção, como hostilizando abertamente a tentativa do autor de arrebatar o todo do romance com uma nota agregadora, ao sugerir que se ignore o trecho final do livro.

Podemos destacar ainda, a título de exemplo de leitura caoticista, porém agora determinada por uma interpretação insuficiente mais do que por pendores ideológicos, a apreciação de Melchior de Vogüé acerca da obra de Dostoiévski. Diferente da grande maioria dos críticos caoticistas, Vogüé não se recusa a encontrar unidade em Dostoiévski; ele de fato não consegue encontrar tal unidade senão em algumas poucas obras do russo, e julga que a tendência geral deste é para a dispersão.[3]

Eis o preço pago por dois autores difíceis e no entanto muito conscientes de seus processos, os quais ao longo da vida precisaram acostumar-se à incompreensão alheia, quando não à difamação. Ambos tiveram suas vidas, bem como suas personalidades, moldadas pelos inúmeros ‘nãos’ que receberam e os quais, ao que tudo indica, só fizeram reforçar aquelas características mais peculiares e de mais difícil assimilação por seus interlocutores. Suas obras resultaram então mais complexas, o que não pode ser senão positivo: para dar o que fazer aos críticos ociosos e o que pensar aos meros leitores (entre os quais há de haver ainda os que prefiram ler as obras por inteiro, sem adaptá-las ao que se quer que signifiquem).



[1] Apud Reis (2003). "O pecado como forma de redenção: uma análise da influência da literatura de Dostoiévski sobre a obra de Lúcio Cardoso"
[2] Idem, p. 4.
[3] Para uma refutação consistente do tipo de crítica feita por Vogüé a Dostoiévski, bem como outros exemplos de críticas enfatizando o suposto caráter dispersivo ou caótico das obras do russo, cf. Victor Terras, “Dostoevsky’s detractors”: http://www.utoronto.ca/tsq/DS/06/165.shtml
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