segunda-feira, 28 de janeiro de 2013

Ver o Circo pegar Fogo

Francisco Razzo

Quando o circo está prestes a pegar fogo, a última pessoa recomendada pra ajudar na tarefa de conter as primeiras chamas é o frentista do posto de gasolina. Botar fogo na Briga do Circo, enquanto se assiste de camarote, é tão niilista quanto a sádica brincadeira em que os garotos amarram o gato e o cachorro pelo rabo só pra ver o pau comer. Em certas situações, como dizia meu falecido avô, se você não vai ajudar, então não atrapalhe. Acredito que a principal tarefa de qualquer ensaio que se pretenda “filosófico”, parafraseando as orientações de William James a respeito do sentido da atividade filosófica, seja a de persistir no “resíduo de problemas não resolvidos”.
Como nós sabemos o que uma pessoa de fato deseja? Ora, visto que ninguém tem acesso direto e imediato ao desejo do outro, então o acesso ao desejo alheio é, necessariamente, mediado por formas de comunicação e comunhão simbólica. Quando pessoas comungam do mesmo desejo é porque partilham da mesma experiência da ausência de algo em comum expresso numa considerável variedade de símbolos. Querer é, em última instância, sempre querer algo. E o que une as pessoas em comunidade, de certa forma, é a capacidade, mediada pela comunicação, de reconhecer no outro a mesma carência, o empenho comum na busca de realizar o sentido da própria existência.
O que o IPCO (Instituto Plinio Corrêa de Oliveira) quer e o que os Ativistas da Causa Gay de Curitiba querem? Certamente, alguma coisa contrária ao desejo um do outro; e, precisamente por esta condição de interesses contraditórios, jamais formarão uma comunidade, no sentido aristotélico do termo, isto é, não no sentido puramente descritivo, mas no de valoração, isto é, o intercâmbio mediado pelo senso de irrestrito de justiça (haplos dikaion) (Cf. ARISTÓTELES, Ética à Nicômaco VIII). Portanto, se o IPCO conseguir alcançar o seu objeto de desejo, isso significa que o grupo de Ativistas da Causa Gay de Curitiba não conseguiu alcançar o seu, e se o grupo de Ativistas da Causa Gay de Curitiba conseguir, consequentemente, significa que o IPCO não conseguiu. Nessa relação não há nada de luta de classes, mas o mais puro conflito pessoal de valores consubstancializados na forma e ação de um determinado grupo, seja ele piegas aos olhos alheios ou não.
A partir desta perspectiva, pode-se compreender melhor em que medida cada um dos membros desses grupos representam, de uma forma ou outra, o embate dos valores políticos que transitam no tecido da atual sociedade pluralista, na qual, como avaliou Alasdair MacIntyre, a “grande diversidade de julgamentos sobre tipos particulares de assuntos” subjaz em “um conjunto de concepções conflitantes de justiça, concepções supreendentemente em desacordo umas com as outras, de vários modos”, sendo que um dos fatores “mais surpreendentes nas ordens políticas modernas é que elas não possuem foros institucionalizados nos quais as discordâncias fundamentais possam ser sistematicamente exploradas e mapeadas, e muito menos fazem qualquer tentativa de resolvê-las”; pelo contrário, pois “o próprio fato da discordância frequentemente não é reconhecido, sendo escamoteado por uma retórica do consenso”, o que só “serve”, em última análise, “para impedir que o debate se estenda aos princípios fundamentais que informam as crenças de fundo”. (MACINTYRE, 2008, Justiça de Quem? Qual Racionalidade, p. 12-13).
O IPCO é um grupo de cristãos; contudo, evidentemente, não fala em nome de todos os cristãos. Cada um dos seus membros representa, por ser cristão, alguns valores gerais ou “crenças de fundo” comuns a todos os que que professam o credo cristão, certamente, deveriam partilhar. Por outro lado, os Ativistas da Causa Gay de Curitiba é um grupo procedente do cenário da Militância pelos Direitos dos Homossexuais, entretanto também não falam em nome de todos aqueles que militam pela causa Gay, apesar de partilhar de alguns valores gerais ou “crenças de fundo”, os quais todo membro da Militância Gay deve ou deveria professar. Dessas “crenças de fundo” emergem “os princípios fundamentais” que dão base para as efetivas concepções conflitantes de “família”, “pessoa”, “sociedade”, “justiça” etc. Esse é o núcleo do problema, e o resto - se eles cantam, marcham, fazem a dança da chuva, pintam a cara, sambam, são feios, bregas etc - é apenas uma acidental questão de gosto.
A questão nuclear reside no fato de que toda atividade política se caracteriza essencialmente pelas pessoas que se autocompreendem partícipes de um universo de valores e almejam que esse universo se realize na experiência de uma vida significativa. Quanto mais conscientes a respeito da natureza desses valores, menos fundamentalistas e dogmáticas os agentes políticos serão. O que não significa que, do grau de consciência de reconhecimento desses valores, serão mais ou menos violentos ou que dissimularão serem as vítimas a fim de conseguir o que desejam. Uma coisa é o fim, outra coisa, completamente diferente, é o meio. Fundamentalismo e dogmatismo, neste caso, revelam o grau de estupidez diante da compreensão dessas “crenças de fundo”, enquanto que a violência (ou o vitimismo) revela o grau em que a estupidez se encarna na história por meio da atividade política. Ser ou não violento é só uma complexa opção estratégica (assim como também pode ser estratégico idealizar que, por ser a vítima, e em razão disso, é legítimo partir pra pedradas, insultos etc), isto é, o modo pelo qual a estupidez toma forma e entra mundo. Não obstante, um movimento político pode ser consciente ou inconscientemente violento por meio da imposição de um perverso processo de aniquilamento do estatuto de humanidade no outro. Um processo perverso de “purificação e destruição”, como demonstra Jacques Sémelin em seu livro (Purificar e Destruir – Usos políticos dos massacres e dos genocídios) que trata, precisamente, da lógica desse processo:
Os agentes que sabem utilizar essa ferramenta do imaginário têm, em todo caso, uma arma poderosa que lhes permite pensar em conquista do poder. O primeiro ponto dessa retórica imaginária consiste em transformar a angústia coletiva, que mais ou menos se propagou na população, em um sentimento de medo intenso, com relação a um inimigo, do qual eles vão expor toda periculosidade. De fato, a angústia e o medo não tem a mesma natureza. A característica da angústia é a de ser difusa ou mesmo inapreensível, enquanto o as causas do medo são mais denomináveis e, assim, identificáveis. O que se tenta é, de certa forma, ‘coagular’ essa angústia sobre um ‘inimigo’, ao qual se dá uma ‘figura’ concreta e do qual se denuncia a malignidade, no interior mesmo da sociedade. Os discursos mais extremados apresentam essas figuras do inimigo como necessariamente assustadoras ou mesmo diabólicas. [...] Essa tentativa de canalização da angústia sobre um inimigo bem identificável já é uma maneira de responder ao traumatismo da população: explica-se de onde vem a ameaça. A partir dessa ‘transmutação’ da angústia embrionária em medo concentrado por intermédio de uma ‘figura’ hostil desenvolve-se o ódio contra esse ‘outro’ pernicioso. O ódio não é, neste caso, o ingrediente de base, que definiria previamente as relações ‘naturais’ entre os grupos. É, antes, uma paixão construída, produzida, ao mesmo tempo, por uma ação voluntária dos seus partidários extremosos e por circunstâncias favorecendo sua propagação. No final, a saída lógica e temível dessa dinâmica – da angústia e do medo – recai, inevitavelmente, no surgimento, em uma determinada sociedade, do desejo de destruir o que lhe foi designado como causa do medo. É evidente que se trata ainda de um ‘desejo’: permanecemos no registro do imaginário. Mas é um imaginário de morte. (SÉMELIN, 2005, Purificar e Destruir. Os imaginários da destruição social. p. 39. Grifos e itálicos são meus)
A questão é: se os membros do IPCO saíram às ruas manifestando um desejo, certamente não foi o desejo de ser agredidos; não obstante eles efetivamente foram agredidos, ofendidos, ridicularizados, impedidos de manifestarem suas convicções, isto é, violentados. Podem, segundo a hipotética análise provisória, até ter usado isso como “estratégia” para alcançar seus interesses – eu pessoalmente duvido, já que não tenho bola de cristal capaz de acessar a mente alheia e os dados empíricos, aos quais tive acesso, não mostraram nada parecido que justifique essa interpretação –, mas o objeto efetivo do que almejavam não era exatamente esse. O evento não foi em busca de um meio (a suposta estratégia da vitimização), mas exclusivamente almejava um fim (contra a aborto, contra a PL 122). Concordemos ou não com os fins e, sobretudo, com os meios.
Segundo os próprios organizadores do evento, a manifestação tinha como principal objetivo defender, segundo suas “crenças de fundo”, a “família”, eu compartilhe ou não dessa concepção de “família”, eu concorde ou não com o “método”: “A Cruzada pela Família, promovida pelo Instituto Plinio Corrêa de Oliveira, está percorrendo o Brasil fazendo uma campanha ordeira e pacífica contra as leis de aborto e contra a agenda do movimento homossexual, como o kit homossexual nas escolas, a lei de homofobia, etc.”. Ou seja, a campanha organizada pelo IPCO, por mais que se acha brega, não é contra um inimigo concreto, uma figura real encarnando a malignidade, mas contra uma possibilidade de lei, isto é, contra uma ideia e uma agenda.
Enquanto que o grupo dos Ativistas da Causa Gay de Curitiba agrediu os membros da passeata, exatamente, com a justificativa de que o IPCO é uma ameaça à sociedade, de que os seus membros efetivamente encarnam a figura hostil. Nesse caso, todos aqueles ativistas formaram um grupo precisamente por se sentirem ameaçados, em outras palavras, vítimas e, além disso, porta-vozes defensores de toda sociedade em perigo. Ao ponto de uma das ativistas pedirem para os motoristas não buzinarem em solidariedade à “Cruzada pela Família”, mas atropelarem. Como as imagensdeixam bem claro, as constantes provocações não esperavam outra reação dos “fascistas da IPCO” senão o contra-ataque violento, o qual, felizmente, não aconteceu. 
Há um outro vídeo circulando no Youtube que mostra, inclusive, uma edição comparando a “cruzada” do pequeno grupo do IPCO com a Marcha de algum pelotão Nazista. A descrição do vídeo demonstra quem se autocompreende como vítima ameaçada que, precisamente por isso, justifica as suas agressões e provocações “com unhas e dentes”:
Na segunda semana de janeiro a cidade foi surpreendida por uma marcha contra a família, que proclamava hinos de ódio (desde quando Ave Maria é hino de ódio?) e preconceito (contra quem? A lei do Aborto?). Nós, curitibanos e curitibanas conscientes e a favor da família, expulsamos estes radicais de extrema direita, que não são bem-vindos em nossa cidade (mas eles não são curitibanos também?). Que façam seu hino de ódio (Pai Nosso) em outro lugar. Curitiba é uma cidade para o amor. E aqui nós defendemos o amor e a alegria com unhas e dentes.
Em um dos comentários é possível notar a dinâmica da imaginação política, isto é, pressupor, num ato puramente imagético, que aquele grupo é, efetivamente, uma ameaça de proporções históricas, tal como é vinculado ao temerário e assombroso imaginário da “Ditadura Militar”, dos “Nazistas” etc.
Aos senhores que conhecem a TFP desde os tempos da ditadura vociferavam contra eles, casais heterossexuais, gays, enfim, e se eles voltarem serão rechaçados de novo pela mesma população (população ou alguns ativistas?) que não tolerará um Brasil fascista. A TFP é uma vergonha, nem a Igreja Católica tolera esses dinossauros proto-nazis, qualquer manifestação que pregue a intolerância e o preconceito ferindo o princípio da dignidade humana e da cidadania será combatida.
Por fim, fica evidente que a ação política deriva dessa exclusiva capacidade humana da autoconsciência pessoal de participação na realidade dos valores e no fundamental reconhecimento de que o outro, ao seu modo, também participa e se realiza como um valor e não como uma ameaça. Os conflitos políticos emergem, justamente, da perda desse reconhecimento ante o permanente “registro do imaginário de morte”. A liberdade da ação política, quando não impõe a si mesma esse limite ou princípio básico de reconhecimento ético, demoniza-se com a realização de suas fantasias, como mostrou Jacques Sémelin em seu livro supracitado.
Para concluir, cito uma passagem de Cioran, sobre essa essência demoníaca da liberdade:
O assassino faz uso ilimitado de sua liberdade, e não pode resistir à ideia de seu poder. Está ao alcance de cada um de nós tirar a vida de outro. Se todos os que matamos em pensamento desaparecessem verdadeiramente, a terra já não teria habitantes. Carregamos em nós um carrasco reticente, um criminoso irrealizado. E aqueles que não têm a audácia de confessar suas inclinações homicidas assassinam em sonho, povoam seus pesadelos de cadáveres. Pois nunca houve um ser que não tivesse desejado – ao menos inconscientemente – a morte de um outro ser. Cada um arrasta atrás de si um cemitério de amigos e inimigos; e pouco importa que esse cemitério seja relegado aos abismos do coração ou à superfície dos desejos. A liberdade concebida em suas inclinações últimas coloca a questão de nossa vida ou a dos outros; ela carrega a dupla possibilidade de nos salvar ou de nos perder. (CIORAN, Précis de Decomposition, p. 76-77).
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