Vovô morreu calmo, era noite e dormia
Em paz com a vida e de bem com os seus
Flutuou sem medo e sem agonia
Do sono dos justos ao colo de Deus
Meu tio em seu carro, acidente de estrada
Morreu maldizendo a Deus e o mundo
A carne era dor nas chamas assada
A alma lançada no abismo profundo
Seria obra-prima do acaso ou em parte
Discreta justiça do último instante?
Meu tio blasfemava asfixiado de morte
Vovô cochilava sereno ao volante
segunda-feira, 29 de julho de 2013
Existe amor na blogosfera?
Postado por
Joel Pinheiro
Todo conservador
Conserva a dor.
A dor do pobre.
A dor do negro.
A dor do índio.
A dor da mulher.
A dor do palestino.
Chega de conservar dor!
Agora eu quero ver
Todo mundo ser
Conservamor
Conserva a dor.
A dor do pobre.
A dor do negro.
A dor do índio.
A dor da mulher.
A dor do palestino.
Chega de conservar dor!
Agora eu quero ver
Todo mundo ser
Conservamor
quarta-feira, 24 de julho de 2013
Uma Defesa Cética da Homeopatia
Postado por
Joel Pinheiro
Não acredito em homeopatia; mas que funciona, funciona. |
Volta e meia algum grupo de céticos ou de defensores da ortodoxia médica organiza um "suicídio coletivo" por overdose de homeopatia. O suicídio falha e todo mundo festeja a refutação de mais uma pseudociência. Alguns querem-na banida das farmácias e dos consultórios.
Médicos homeopáticos não se deixam intimidar; afinal, pelo mecanismo proposto pela homeopatia, uma overdose não deve mesmo ter efeito algum. (E uma infradose, menor do que a proposta pelo médico? Seria ela perigosa?). Ainda assim, os céticos provavelmente têm razão: os vidrinhos de homeopatia líquida contêm água ou álcool; as pílulas, açúcar. E é isso.
Toda a teoria homeopática é anterior à medicina moderna. Foi formulada antes que se soubesse que micro-organismos causam doenças. A teoria de que a diluição do princípio ativo potencializa seu efeito carece de qualquer base. Depois que se provou que as substâncias não são infinitamente diluíveis, e que a partir de certo ponto o esperado é que não sobre nem uma molécula do princípio ativo num frasco, foram boladas teses ainda mais inverossímeis, como a da memória da água, que também carecem de fundamentação.
Toda a teoria homeopática é anterior à medicina moderna. Foi formulada antes que se soubesse que micro-organismos causam doenças. A teoria de que a diluição do princípio ativo potencializa seu efeito carece de qualquer base. Depois que se provou que as substâncias não são infinitamente diluíveis, e que a partir de certo ponto o esperado é que não sobre nem uma molécula do princípio ativo num frasco, foram boladas teses ainda mais inverossímeis, como a da memória da água, que também carecem de fundamentação.
Nada disso deterá o crente; pois, dirá, apesar das dificuldades teóricas, o negócio funciona. Funciona? O teste da experiência casual é falho; se aceitamo-lo no caso da homeopatia, por que não no caso da sangria, prática terapêutica consagrada por milênios de experiência, e que na verdade piorava a saúde do paciente? (Curiosamente, o sucesso empírico inicial da homeopatia se deveu exatamente ao fato de que, nos hospitais homeopáticos, não se aplicavam tratamentos nocivos como a sangria). A experiência não rigorosa, informal, do dia a dia, não é nada confiável para aferir a eficácia de tratamentos médicos. Além disso, apesar da resistência dos homeopatas em testar seus métodos, os resultados de testes empíricos rigorosos apontam que sua taxa de sucesso não supera a de tratamentos com placebo.
É possível que esses estudos estejam errados, assim como boa parte da física, química e biologia modernas, e a homeopatia realmente funcionar pelos motivos alegados por homeopatas? É. Mas até que isso seja provado, é mais razoável crer que o remédio homeopático seja inerte mesmo, e que não passe de placebo. A questão é que pode ser um excelente placebo.
Por trás de um mesmo nome, escondem-se efeitos de intensidades muitos diferentes. Quando um feiticeiro aborígene australiano aponta um osso de lagarto na direção de um outro membro de sua cultura e recita uma fórmula mágica, este morre em poucos dias. Não porque os rituais tenham poderes sobrenaturais ou estejam baseados em crenças verdadeiras, mas porque a mente humana é poderosa, e dependendo do significado que diferentes eventos têm em uma cultura, os efeitos que eles produzem podem ir muito além do que a análise físico-química permite prever.
Nesse sentido, a homeopatia está muito bem colocada para produzir efeitos placebo. A bala de açúcar é o menos relevante; o que importa é tudo o que a rodeia. O contato frequente com um médico que conhece o paciente e se importa com ele, tentando desenvolver um medicamento único; a aparência de um processo científico e tecnológico por trás (em nossa cultura, essa percepção conta muito); um remédio do qual se toma muitas doses e com o qual se deve tomar várias precauções (já encostou nas bolinhas homeopáticas de algum conhecido para ver como ele reage?); por envolver um tiquinho assim de magia e mistério, abre nossa mente para efeitos ainda maiores do que a banalidade que é a ciência convencional. Por fim, é uma terapia que conta com crença generalizada na sociedade, sendo aceita até mesmo por instâncias oficiais do poder. Mesmo quem não crê nela tem aquele pingo de dúvida, resto de insegurança; e se for real...? Para o placebo, essa aceitação subconsciente e a contragosto já basta; talvez seja até melhor.
Assim, digo que a homeopatia é farmacologicamente inócua. Mas funciona. Funciona como placebo, e faz um ótimo trabalho nesse quesito. Por isso, não há por que ser tão contrário à ela. Para todas aquelas doenças que a mente humana sozinha é incapaz de curar, não deve de forma alguma ser usada à exclusão de tratamentos convencionais. Mas em conjunção com eles, ou sozinha para aqueles problemas mal-definidos e pouco conhecidos nos quais a própria mente está diretamente envolvida (seja como causadora involuntária, seja como fator curador), pode ter grande valia. Muitas pessoas, depois de anos infrutíferos na alopatia, passam para a homeopatia e se curam de males como alergias, indisposições, etc. Como placebo, como gatilho de efeitos psicológicos curativos, a homeopatia pode ser superior à alopatia. Não duvido que funcione até para céticos como eu. O efeito placebo ocorre mesmo quando se sabe perfeitamente que se toma um placebo, desde que se acredite que o efeito placebo funciona. Se minhas alergias piorarem, é para lá que eu vou.
Portanto, céticos, procurem algo mais útil para combater! Se, graças a seus esforços, a homeopatia perder seu efeito (como ocorre com muitas crenças tradicionais depois do contato com o homem branco, ou com remédios antigos dentro de nossa própria sociedade), e não tivermos nada para colocar em seu lugar, nossa saúde terá piorado, sem que nosso conhecimento tenha avançado um centímetro sequer. Até o dia em que consigamos produzir em tratamentos reais os mesmos efeitos placebo das medicinas alternativas (aumentando, talvez, o cuidado nos rituais e convenções que os rodeiam?), deixem o pajé, a rezadeira e o homeopata em paz! Cumprem o mesmo papel que o médico alopata, e custam bem menos ao nosso bolso.
sexta-feira, 5 de julho de 2013
Cariocas; e ludovicenses
Postado por
Ronald Robson
Moro há pouco tempo no Rio e,
para mim, que venho de São Luís, cidade que também tem algo de aristocracia
decaída, tudo o que Pedro Sette-Câmara sintetizou neste texto é muito
evidente. Vejo cariocas invocarem a ira dos deuses porque a margarina estava
sem o preço na prateleira do supermercado. Subitamente abandonarem com
violência uma lanchonete porque um garçom lhes apontou a mesa mas não os
conduziu até lá. A recíproca idem: o comerciante carioca não vende – apenas
consente, a contragosto, em sentir-se roubado.
O empresário carioca se acha um mártir do capitalismo: sente cada ato
seu, para que uma moeda lhe caia no bolso, como uma tortura. Aqui o padeiro
nordestino pode ser identificado pela sua boa disposição (até indiscrição) em
atender. E o paulista é aquele cara que sempre ficará para trás na guerra
campal para conseguir pegar um táxi ou entrar em um ônibus – e que às vezes perguntará,
sem que ninguém entenda do que diabos ele fala: “Cadê a fila? Ei, cadê a fila?”
A fila seria uma boa idéia, mas...
A princípio, tive a impressão
terrível de que o carioca é uma versão concentrada da alcovitaria maledicente
que, no geral, é uma marca do brasileiro (o brasileiro jamais será capaz de
considerar um problema político tão a sério quanto considera a vida do vizinho
– o que é muito bom e muito ruim, sob diferentes aspectos). Via pessoas se
tratarem com uma docilidade constrangedora, cheias de ademanes (é a palavra certa) e prestezas, e, ao darem as costas
umas às outras, acusarem-se das maiores baixezas. A primeira impressão é que
seja um caso quase patológico de falsidade. Mas não é falsidade. O carioca
trata muito bem seu interlocutor, caso esteja em uma situação “não mediada” (se
não estiver em causa uma relação comercial, por exemplo); enquanto o faz, o faz
com toda a sinceridade. Com toda a idêntica sinceridade com que em seguida o
chamará de mau caráter, aproveitador e sabe Deus o quê – a mesma, mesmíssima
sinceridade, com que será capaz de num terceiro momento voltar a tratar o mau
caráter em questão como um rei que recebe, com todas as honras, um estrangeiro
em seu paço imperial. O carioca quer tudo mesmo quando não pode quase nada; age
com base nisso. Ele diz e desdiz e não está nem aí. “Afinal, para que
permanecer rígido em uma mesma posição, uma mesma idéia?” – é o que todo
carioca parece dizer. A sua disciplina é de outra ordem. Ainda não sei
exatamente de qual.
A propósito, mas mais a propósito do que disse no primeiro parágrafo, encontro no Dicionário Universal de Citações (verbete
“Rio de Janeiro”) de Paulo Rónai o trecho de Genolino Amado que segue. O estilo
é ruim, mas tem sua verdade:
“Nas cidades
tristes, nevoentas, como Londres, ou mesmo como São Paulo, o esforço do
trabalho está somente em trabalhar. Mas, no Rio, o primeiro e grande esforço
está somente em ir para o serviço, em aceitar a pequenez de um destino
burocrático ou proletário, quando vem dos panoramas, inundando o coração da
gente, a imagem de tantas grandezas, a sensação do mundo em festa.” (Os Inocentes do Leblon)
Um parêntese.
Certa vez um estrangeiro que
viveu no Brasil observou que a pergunta cuja resposta todo brasileiro deve
saber – “Quem descobriu o Brasil?” – não faz o menor sentido para um inglês ou
um italiano. Ninguém descobriu a Europa. A Europa sempre esteve lá e de lá os
europeus vieram. E então passam, os europeus, a discutir o quanto a Europa tem
de Israel, de Grécia, de Roma, de Bizâncio ou de Índia. Vocês conseguem
imaginar um brasileiro discutindo o quanto o Brasil tem de ibérico,
mediterrâneo ou árabe? Há bons livros a respeito – e algumas figuras
excêntricas, como um amigo meu que, vendo Afonso I se materializar no ar, diz, punho
em riste, ser brasileiro há mais de 800 anos –, principalmente quanto aos
elementos indígena e africano; mas esse tipo de especulação definitivamente não
é esporte nacional.
O que é esporte pelo menos
provincial, ao menos em minha província, São Luís, é enobrecer-se pela discussão
de quem descobriu a terrinha; ou qualquer outra discussão similar. Uns tantos
de nós ludovicenses (ludovicense > Ludovicus > Luís XIII – o “rei menino”
que se homenageou com o nome da ilha) separamos todo dia 8 de setembro,
aniversário oficial da cidade, para fazer alguns inimigos. Uns são partidários
de que na data realmente se deve comemorar a fundação de São Luís; ou seja, de
que foi fundada pelos franceses de Daniel de La Touche em 8 de setembro de
1612. Outros são partidários de que a data não é esta; ou seja, de que foi
fundada pelos portugueses de Jerônimo de Albuquerque, em algum momento de 1615 ou 1616, após expulsarem os franceses. Sou do primeiro time, e me
ufano de sê-lo, mas aviso a possíveis adversários que não discutirei isso aqui.
Independentemente de quem estiver certo (mas eu estou, disso eu sei), o fato é
que o partido lusitano sofre da mesma inclinação que acusa nos “oficialistas”
pró-franceses: querer enobrecer a cidade com uma fundação “mítica”; no caso,
com a ascendência em um nobre que, não bastasse ser francês, era ainda pirata e
huguenote, a trazer consigo capuchinhos que deixariam os melhores relatos
(melhores inclusive literariamente) sobre uma missão no Brasil nos primeiros
séculos; coisa que tornaria São Luís bastante excêntrica frente ao resto da
colonização brasileira. O partido lusitano, por sua vez, enobrece a fundação
por outro meio: atribuindo-a a Jerônimo de Albuquerque, um homem de guerra já
sexagenário, aclimatado à terra, filho de português e de índia, que se casou
pagã e cristãmente com uma nativa e teve dezenas de filhos, experimentado em
diversas guerras de mata cerrada ao longo do litoral nordestino. Uns, então,
querem o exotismo europeu; outros, o exotismo autóctone; mas ambos queremos
algum tipo de extravagância, e São Luís realmente é uma cidade muito
extravagante. Porque a nobreza é extravagante, mais ainda se decadente. E é por
isso que depois de secas todas as garrafas, depois que o Brasil for uma gigantesca São Paulo, continuará sendo uma questão de honra, e bem mais interessante que
decidir o que há de ibérico ou não no brasileiro, determinar se foram os
franceses ou os portugueses que fundaram São Luís.
Fecha parêntese.
O aristocrata decadente que é o
carioca, contudo, infelizmente é um tipo que já rareia entre os mais jovens.
Basta observar o comum de sua fala hoje; entre eles é o português de baile funk
que se dissemina. A tendência natural a realizar uma elevação tonal ao fim de
frases ditas com ênfase (o que dá a impressão de que o carioca quase usa de falsete
ao terminar de dizer algo que lhe indigna) acabou debordando em uma fala ao
mesmo tempo de ritmo lento e melodia de repentista (variações tonais sempre
retornando a um mesmo ponto). É um fenômeno curioso, que eu agora não saberia
descrever de forma muito objetiva, que dirá técnica. Mas é assim que a
insensatez quixotesca de determinadas posturas vai se tornando simplesmente má
educação, deboche e indiferença num português terrível, numa “língua de pau”. Esta é
o produto mais aparente do carioca que deixa de ser aristocraticamente
voluntarioso para ser toscamente queixoso.
Termino apenas lembrando – e esta
é uma observação meio errática, ligada apenas ao fato de que nasci e cresci num
lugar e hoje vivo noutro, ambos com alguma remota marca aristocrática – que a
pessoalidade das relações do carioca não é nada se comparada à necessidade
vital do ludovicense já não digo de driblar a impessoalidade das relações
democráticas, mas de ter boas relações francamente mafiosas. Se os cariocas
tiveram os bajuladores de D. Pedro II, nós ludovicenses tivemos e temos os
bajuladores de Sarney I (nesse quesito a ser substituído por um Flávio Dino ou
outro qualquer – o que é pena, pois também nos levará do voluntarismo à queixa).
E nos é muito mais intragável que a eles que o rei seja, como escreveu Tolstói,
“escravo da História”. História, com a gente, é mesmo com “h” minúsculo e
suscetível de ser atirada ao mar. Somos todos uns reizinhos, mas reizinhos que
efetivamente mandam na história; não
temos satisfação alguma a prestar a essa disciplina de plebeus de cátedra. Por
isso o ludovicense chama o parente sulista para ver o maior prédio em
azulejaria da América Latina ou ver missa em alguma igreja do século XVII, mas não
tem o mínimo pudor em carregar alguns azulejos e relíquias para sua própria
casa. Amamos nossa cidade e por isso
nos achamos no direito de saqueá-la e depredá-la sem piedade.
Mas não conheço nenhum
ludovicense tão folgado quanto o carioca médio. Nenhum.
terça-feira, 2 de julho de 2013
Carta à Sra. Míchkina
Postado por
L.M.
O que vai abaixo
não é exatamente uma mensagem que escrevi a alguém: em meu último post foi
assim, mas dessa vez eu aproveitei a deixa de uma troca de mensagens para organizar
em texto algumas ideias esparsas, já tendo em vista outros leitores além da
interlocutora original, a distinta Sra. Míchkina. Mantenho o formato
de carta porque ele facilita a exposição. E também porque
o texto é orientado por questões levantadas pela Sra. M.
Os leitores me
perdoem a insistência nos mesmos temas. Acontece que tudo isso – literatura, poesia,
contemporaneidade – é, usando uma imagem brega, o papel de parede do meu mundo.
São as coisas sobre as quais eu penso por necessidade pessoal. Todos têm
direito a sua cota de ideias fixas.
***
I
Começando pelo
tópico fácil, M.: sim, eu deletei meu blog de poemas. O motivo é o mesmo
que tem me feito controlar minha participação na internet: combater a pressa, o
imediatismo (“combater” não no mundo – o que seria ridículo –, mas na minha
própria vida). A internet funciona por esse mecanismo do feedback instantâneo:
você produz algo (um texto, um comentário, um poema), solta na rede e
imediatamente começa a receber feedbacks. Isso é muito positivo em algumas
áreas, como o jornalismo informativo e o debate blogueiro, mas para as artes é
desastroso. A não ser que seu interesse seja produzir experimentos
sócio-artísticos, desses que contam com a participação ativa do leitor/ouvinte/espectador.
Digo que é
desastroso porque o artista, aos poucos, vai se submetendo à velocidade do
processo de recepção virtual. Você não passa anos trabalhando num poema ao qual
a internet não dedicará mais do que 24h. Sei que há exceções, mas tenho a
impressão de que a qualidade da leitura que as pessoas em geral fazem na
internet é bastante baixa; lê-se com pouca atenção, com pouca paciência. O
escritor “de internet” está fadado a dissolver-se nessa lógica, a integrar-se a ela; quem tem maus leitores fatalmente escreverá mal, ou pior do que
escreveria em mais estimulantes circunstâncias.
Se tivesse de dizer em uma linha, diria que a principal consequência
da atual cultura da informação para a cultura como um todo é a perda da
densidade – densidade que qualifica o intelecto daquele tipo em extinção, o
erudito. Não é que o intelectual contemporâneo seja, utilizando a expressão do
Gustavo Nogy, um “especialista em nada”; talvez ele até seja demasiado
especialista, como aqueles professores da Filosofia USP que desde a graduação estudam
o conceito X dentro da obra do filósofo Y. Mas a “cultura total” do antigo
erudito (aliás nem tão antigo assim) é algo de que, no Brasil, nessa última
geração, se apareceu algum exemplar foi totalmente a despeito do meio. E o
problema é que as áreas do conhecimento humano são bem mais interdependentes do
que querem nossos libertários que não leem literatura nem sabem usar crase.
Longa e velha discussão, pois é.
Mas, voltando ao
ponto: temos que parar de escrever “para a internet” – nós, cuja
responsabilidade é não deixar a literatura brasileira desparecer completamente,
nós que, salvo pessimismo meu, somos uma geração de atravessadores, destinados
a traficar a maior quantidade possível de bens culturais lá da porção saudável
das letras do país e fazê-los chegar até essa ilhota misteriosa que é o futuro,
onde, ao que tudo indica, o terreno estará mais firme do que hoje para a
produção de obras duradouras. Nossa geração teve uma vida cômoda demais para
ser protagonista. Mas, voltando ao ponto: é necessário participar da vida
virtual, pois ela nos dá a medida do que é o mundo contemporâneo e é nosso
correio e ponto de encontro. Porém, aquilo que nós queremos – se é que queremos
– comunicar às próximas gerações deve ser preparado com muito cuidado e muita
calma, à margem do turbilhão da internet, posto que não somos gênios (somos
atravessadores) e nosso trabalho é sobretudo braçal (apenas os gênios podem
contar com a fecundidade da preguiça e do acaso).
Poemas devem ser
escritos e reescritos demoradamente, até serem o melhor que podem ser.
Romances, contos, teatro – idem. Nada de correr para mostrar seu primeiro
rascunho aos amiguinhos e ganhar likes no
Face.
Passei as duas
últimas semanas com essas frases martelando na minha cabeça. Há meses não
escrevo um poema que preste. Por vezes cheguei perto, mas a pressa foi
abortiva. So long, blog de poemas.
II
Agora, sobre seu
desejo de se tornar escritora: eu penso, M., que antes de mais nada o que um
escritor precisa é ter o que dizer. O
escritor não é tanto aquele que diz “tenho vontade de escrever livros” quanto
aquele para quem há a gritante necessidade de comunicar tal coisa. Nunca tentei escrever prosa de ficção, mas minha
experiência com escrita de modo geral me diz que uma ideia bem cultivada encontra
como que naturalmente sua forma perfeita. Mas é claro que isso só funciona
quando você já tem ao menos o domínio básico das regras do gênero no qual se
propõe escrever. Se você não sabe como funciona a métrica em poesia, não espere
“intuir” um belo alexandrino (um, talvez; mas um conjunto de catorze ou vinte e
oito belos e harmônicos alexandrinos...). Porém, uma vez tendo afinado o seu
instrumento (sabendo escrever uma prosa limpa e maleável, ou redondilhas
certinhas, dependendo de em qual recipiente você quer vazar a sua “tal coisa”; com
o acréscimo de que até aqui a festa é aberta a qualquer um, independendo de
real vocação ou mero diletantismo) – uma vez tendo afinado o seu instrumento (créditos da expressão ao Emmanuel Santiago),
resta perguntar-se o que você tem a dizer. É sua atitude diante dessa pergunta
que fará de você escritora ou diletante.
Tenho visto uma
quantidade alarmantemente grande de escritores jovens com algum talento, mas
que não têm o que dizer. Ou ao menos ainda não o conseguiram. São montes de
poemas e histórias sem norte, com um horizonte embaçado ou simplesmente vazio. O escritor
senta diante da página em branco, sobre a qual incide a luz de uma janela
aberta, e logo expele algo como: “A janela aberta na tarde em branco / eu isso
eu aquilo / meus sentimentos”. O que acontece aí? Acontece uma pessoa cuja
vontade de escrever um poema vem antes da consciência do que tem a comunicar. Quem nunca protagonizou tal cena atire
a primeira pedra!
Sylvia Plath, em
seu romance autobiográfico, The Bell Jar,
brinca com isso engenhosamente. É um romance sobre sua juventude, quando ela
era uma aspirante a escritora; nele, a personagem aspirante a escritora escreve
uma história sobre uma jovem aspirante a escritora. A personagem está sentada
no jardim com uma máquina de escrever, e o parágrafo de abertura do que ela
escreve diz: “Fulana estava sentada no jardim com uma máquina de escrever”.
Isso é a imagem
do diletantismo, ou do fetiche pela arte literária. Sylvia Plath é um bom
exemplo de escritora de talento que foi consumida pelo fetiche. Desde muito
cedo ela quis ser escritora, onde
isso correspondia não tanto ao trabalho de quem tenta mapear o mundo com palavras,
mas sobretudo a certos traços de personalidade supostamente comuns a quem
escreve; escrever seria menos uma atividade com fins para além de si mesma do que um modo de ser e viver. É
bastante natural que até certo momento tudo que se tenha seja uma inclinação
vaga à expressão por meio de palavras, e Plath tinha isso genuinamente, o germe
da literatura, mas ela acabou desperdiçando sua vocação (e, pior, sua vida) no
culto a esse ídolo fajuto que é o Escritor Com Problemas Psicológicos. Mas
antes fosse esse seu único ídolo. Quando estava feliz, Plath cultuava o
Escritor de Salões Literários. Há uma passagem em seu diário em que ela exclama
(cito livremente, de memória; só por muito dinheiro eu abriria de novo o diário
da Sylvia Plath): “Eu nasci para isso! Para presidir reuniões literárias e ser
a mulher escritora de um escritor!” Que lindo, Plath... Trocando a vida real
por estereótipos livrescos, não é de se estranhar que seu casamento com o
(também poeta) Ted Hughes tenha virado uma guerra de egos que terminou com você
inalando gás, sua feather-headed fool.
De fato,
conhecer as trajetórias pessoais e artísticas dos escritores nos ensina muito.
Conhecer a história de Sylvia Plath me ajuda a manter meus próprios fetiches no
cabresto (nem sempre consigo, mas estou tentando). Outro diário muito
interessante de se ler é o do Lúcio Cardoso. Eis outro exemplo de vontade
ardente de ser escritor, mas sem a correspondente capacidade de controlar os
próprios demônios. Lúcio Cardoso atirou para todos os lados: conto, novela,
romance, poesia. Foi em tudo medíocre. Seu diário, porém, revela um espírito
profundo e um pensador capaz. Acompanhar as muitas páginas de suas
considerações literárias e filosóficas e as anedotas de suas batalhas pessoais
nos ensina uma grande lição de humildade: mesmo os mais aplicados aspirantes a
literatos podem dar em nada – e com grande frequência é o que acontece. Dizendo
ainda de outro modo: o mundo não estará necessariamente interessado nos ardores
do seu coração, aspirante a escritor. Sim, o diário do escritor fracassado
deveria ser leitura obrigatória a todo aspirante a escritor. (Nota maldosa:
Lúcio Cardoso não respondia as cartas de Clarice Lispector, que na juventude
teve por ele uma paixão não correspondida. Ela, que foi a escritora com “E”
maiúsculo que ele nunca conseguiu ser. Aqui se faz, aqui se paga.)
Mas é claro que
também devemos olhar para os exemplos de sucesso. E é claro que entre estes eu
citarei Dostoiévski. É verdadeiro dizer de Dostoiévski que todos os seus
protagonistas eram partes dele mesmo. Mas não é menos verdadeiro dizer que sua
grandeza estava em saber ser outros, e outros extremamente opostos a si próprio.
A literatura de Dostoiévski põe em prática a ética do amor ao próximo. Como em
sua própria casa, ele recebia em cada um de seus livros os tipos humanos mais
abjetos, dava-lhes de comer e beber, abrigava-os e conversava com eles de igual
para igual. Seus protagonistas eram ele mesmo na medida em que representavam problemas que o moviam. Quando
Dostoiévski começava a escrever um novo romance, era porque estava engasgado
com algum desses problemas, que em sua escrita tomavam a forma de um ou mais
homens (porque no mundo real também eram formas humanas). Dostoiévski não
sentava para escrever sobre Dostoiévski querendo escrever; seu uso de
experiências biográficas não era de fundo narcisista, era, quando muito, uma
das pontas do novelo de suas criações literárias (desejo sorte aos que tentarem
encontrar a outra ponta). O que impelia Dostoiévski à palavra era, primeiro, a
urgência de resolver para si certos problemas e, segundo, a intenção de modificar
os homens ao seu redor. “Ter o que dizer” é isso: é ter uma ideia melhor para o
mundo em que você vive; é saber algo que, do modo como você o dirá, ainda não
está dito. E pode ter certeza de que a cada dia tudo muda tanto que os
problemas humanos, sendo sempre mais ou menos os mesmos, sempre podem ser
revisitados.
Eu tenho grande
confiança no potencial de utilidade de cada indivíduo humano. Não só cada homem
é entre todos um universo único, mas em relação ao ambiente ao seu redor (sua
família, seu grupo de amigos, seu país) esse – como dizer? – dom de originalidade
torna-se ainda mais notável. Isto é, sempre há algo que nós, e muito
especificamente cada um de nós, pode fazer pelo mundo que nos cerca. A cada dia
não há nada de novo sob o sol, e ainda assim quanto não existe de importante, de
imprescindível até, que vem sendo esquecido? Dizer incansavelmente as coisas
importantes, repeti-las ao largo dos tempos, adaptando a mensagem aos olhos e
ouvidos dos espectadores e ouvintes do momento presente – é para isso que no mundo
existem escritores, além de engenheiros e professores de inglês. (Nota: Já me
criticaram por “ficar falando do Bruno Tolentino como se fosse novidade quando
há dez anos o Fulano e o Fulano já diziam tudo isso mimimi.” Pois é, e pode ter
certeza de que, se daqui a dez anos mais gente não tiver se juntado ao coro, o
serviço ainda estará incompleto.)
Agora, voltando
a você, M.: acho que é possível ajudar um jovem escritor a partir de certo
ponto – comentando seus escritos, por exemplo. Mas antes disso há um momento
que eu creio seja inevitavelmente solitário, que é aquele em que você se
pergunta onde está no meio de toda essa bagunça. O que há por trás do seu
desejo de escrever? Qual problema causa em você essa alfinetada que impele às
palavras? O que é isso que você tem a nos contar, que está diante dos nossos
olhos, mas não vemos nem ouvimos? Após essas perguntas, todo o resto é trabalho
braçal. E o trabalho não é pouco. Eu desconheço caminho além de ler e escrever,
exaustivamente. De preferência, tendo leitores de confiança que sirvam de
cobaias para suas tentativas – aliás, sem isso é praticamente impossível
avançar.
E tentar, com
todas as suas forças, não sucumbir à internet e aos elogios fáceis que a
sustentam.
segunda-feira, 1 de julho de 2013
A política da imaginação autoritária
Postado por
Francisco Razzo
As recentes manifestações por todo país não são o efeito direto de uma nova consciência política do povo brasileiro. Pelo contrário, revelam o sintoma de uma profunda desordem na experiência da imaginação política da sociedade brasileira como um todo, que não é outra coisa senão a própria crise da consciência do homem público. Nesse sentido, as manifestações devam ser tomadas como fenômenos espontâneos que indicam alguma outra coisa de mais profunda, e não a própria coisa a ser refletida.
A relação entre imaginação e política percorre a história da experiência política, todavia, muitas doutrinas são frutos da produção de um imaginário precário e autoritário: o poder é uma tentação irresistível. Analisemos um exemplo: o transporte coletivo em grandes centros urbanos é extremamente complexo e de péssima qualidade. Isso não é imaginação, mas um fato. Como torná-lo mais eficiente e ao mesmo tempo oferecer aos usuários melhores condições de uso por um preço mais justo? Essa é uma pergunta complexa impossível de ser respondida com fórmulas mágicas. Quem afirma possuir a solução inequívoca demonstra estar longe dos fatos.
É um fato também que as ondas de protestos tiveram início a partir da pretensão de se dar uma resposta mágica e inequívoca ao problema dos transportes formulado acima. A resposta dada pelo Movimento Passe Livre (MPL) enfatiza o nível da imaginação política do grupo. Para o MLP, não interessa a complexidade dos fatos, importa apenas aquilo que foi determinado por um princípio derivado do imaginário dos membros do grupo.
O MPL ganhou notoriedade nos últimos dias por ter deflagrado as ondas de protestos. Assim que os prefeitos voltaram atrás com o reajuste das tarifas, o grupo retirou-se das manifestações. Quando temas típicos da chamada “agenda conservadora” – aborto, corrupção, maioridade penal – começaram dar o tom das manifestações, o movimento voltou atrás tentando recolocar a pauta da tarifa dos transportes. Assim, o vai-e-volta demonstra a total falta de senso de realidade, a incapacidade de lidar com a complexidade dos fenômenos sociais, o fiasco estratégico e o ápice da imaginação autoritária conduzindo os interesses políticos.
Ao perguntarem para os líderes do grupo quanto custaria e quais são as efetivas propostas para implementação da tarifa zero, a resposta é sempre categórica: “Pra gente é uma questão política e não técnica”. Após reunião com a presidente Dilma (dia 24) – que, aliás, neste ponto, acertou ao lembrá-los da impossibilidade de tarifa zero! –, a resposta indica o nível doentio do estado de imaginação do grupo: "Vimos a Presidente completamente despreparada. Eles não sabem nem quanto custaria a tarifa zero". Ora, mas a proposta de tarifa zero é do MPL, seus líderes têm obrigação de saber quanto custa e quais às técnicas.
Por fim, embora confesse ser apartidário, o MPL não esconde seu vínculo profundo com ideologias de extrema-esquerda, cujo objetivo último não é, como todos sabem, os 20 centavos ou a conquista da tarifa zero – essa seria só uma etapa da pauta da esquerda revolucionária –, mas a superação da “lógica da mercadoria” por meio da coletivização dos meios de produção, isto é, em última instância, pôr fim ao capitalismo de mercado, e com isso realizar o velho sonho de acabar com a propriedade privada. Consequentemente, com as liberdades individuais em nome do bem coletivo como a resposta última para realização de um mundo melhor.
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Texto originalmente publicado em Gazeta do Povo em 27 de Junho de 2013.
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