Teste da Folha pra descobrir sua "ideologia". Não acho que direita e esquerda tenham, jamais, feito sentido como divisões do espectro ideológico (continua sendo uma boa distinção de outra coisa); mas hoje em dia ficou totalmente inviável. Vamos ao teste.
Das dez perguntas, só consigo responder (isto é, sentir que alguma alternativa realmente é melhor) quatro. Quando o tema é armas ou sindicato, estou à direita. Drogas e migração, esquerda. O resto vou na alternativa que menos me ofende, mas em geral nenhuma das duas é boa. Resultado final: centro-esquerda.
Isso mostra como o liberalismo ou libertarianismo (escolha o que preferir) não é de direita, embora uma parte dos libertários tenha vindo da "cultura da direita". Tampouco é de esquerda, embora outra parte tenha vindo da esquerda. É realmente uma outra maneira de ver os problemas sociais e políticos que não é parasitária de nenhuma das "ideologias" correntes, e aliás as supera.
Em sua versão mais magra, o libertarianismo é apenas uma proposta de diminuição radical ou eliminação do Estado; em geral informada pelo entendimento do processo de mercado e das severas limitações de informação e de incentivos que acompanham toda tentativa estatal de solucionar problemas sociais. E isso é compatível com filosofias e visões de mundo radicalmente diferentes, até opostas, entre si. Numa versão mais gorda, o libertarianismo inclui uma filosofia (sentido amplo) e um código de valores de apreço pela responsabilidade individual, pela aspiração humana à grandeza e pela construção da felicidade neste mundo. Isso se distingue do coletivismo altruísta associado à esquerda e do conservadorismo auto-sacrificial associado à direita.
Pense bem: qual a ligação intelectual entre ser contra a imigração e achar que acreditar em Deus faz a pessoa ser melhor? Alguma ligação possível sem dúvida existe O que há, e isso existe sem dúvida, é uma correlação demográfica, sociológica, dessas opiniões. Sabendo que uma pessoa é contra a homossexualidade, infiro - com uma boa dose de certeza - que ela defende a posse de armas.
São grupos que se desgostam; e é por isso que existem. Sua razão de existir é justamente vencer o adversário; ou melhor, vê-lo perder. Isso não é produto da mídia, da sociedade burguesa ou da mentalidade revolucionária; é dinâmica da natureza humana. Organizar-se em grupos, torná-los parte da identidade pessoal, e se opor aos grupos rivais.
O real ódio da direita brasileira não é o PT, mas os petistas. E vice-versa. Coxinhas e petralhas; direita e esquerda é isso e apenas isso; as questões intelectuais decorrem dessa briga. Os grupos de mídia sabem disso, e incentivam esse tipo de oposição porque ela acirra os ânimos e aumenta o ibope. Mas do ponto de vista político e da transformação social de que precisamos a "guerra cultural" é estéril.
Em certo sentido, essa guerra representa um ganho. Antes tínhamos uma hegemonia cultural; a complacência preguiçosa num monólogo unânime. A tal "ascensão conservadora" aos menos chacoalha as coisas; aponta para a possibilidade de mudanças; mas não é, ela própria, positiva. Ela reforça uma dinâmica cultural que vive de conflitos e de alimentar inimizades, sem falar em toda a histeria, falta de educação e de senso de ridículo que tem virado sua marca registrada. A esquerda tem o mérito de ser a opção dominante, default, e por isso apresenta-se de forma bem mais respeitável. Se voltamos no tempo, para quando a esquerda estava a crescer e galgar sua posição partindo de uma minoria, encontramos a mesma tosquice (real) da atual direita.
O libertarianismo, como qualquer grupo, também acaba entrando nesse jogo, seja tentando tornar-se parte da direita ou da esquerda para provocar o outro lado, ou criando uma cultura interna própria para quem sabe um dia virar um player relevante no cenário. Isso é inevitável, mas dá para evitar que essa busca por uma identidade distinta vire sua razão de ser. E a estratégia de todo mundo que discordar do que diz um liberal será a de jogá-lo no grupo cultural contrário, não tanto para mudar a forma como ele é visto, mas para mudar a forma como ele se vê.
Direita e esquerda são tão reais como Corinthians e Palmeiras, e cumprem o mesmo propósito; uma continuação da tribo adolescente. Para promover as mudanças que cremos serem importantes para a vida humana, são inócuas. A não ser, talvez, que se queira uma revolução armada.
terça-feira, 15 de outubro de 2013
A Outra História de João e Paulo
Postado por
Joel Pinheiro
João nasceu. Na maternidade pública, do ventre de sua mãe
para as mãos do displicente médico. Foi uma alegria para ela, talvez o primeiro
alento desde que chegara do interior da Bahia; e trazia também alguma
preocupação. O marido, inicialmente tão amoroso, tinha começado a beber e
abandonara o lar antes do nascimento. Mesmo assim, o bebê era a coisa mais fofa
das tias e dos tios, que também tinham migrado para São Paulo alguns anos antes.
Foi levado pra casa, para seu berço de compensado no mesmo quarto da mãe.
No mesmo dia, em uma dessas coincidências que só Deus
explica, nascia Paulinho. Do belo hospital, o melhor que o seguro cobria, saía
Paulo Ferreira, que nasceu para brilhar. Será artista, intelectual, talvez
estadista; os pais planejaram tudo. Chegou em casa, um quarto azul, um lindo
berço de madeira, motivos do folclore brasileiro, as tias apertando as bochechas
– que fofo! Isso nunca muda.
Crescia o Joãozinho em sua casa de reboco, tijolos
aparentes, na encosta do morro. Jogava futebol na rua, empinava pipa. A mãe
voltava para casa tarde. Era trabalhadora, honesta, empregada doméstica. O chão
emocional estável do pequeno. Um dia, tendo que acompanhar a mãe na casa da
patroa, o menino perguntou:
- Mãe, por que nossa casa não é bonita como essa?
- Porque a gente é pobre, meu filho. E os Ferreira são
ricos. Gente estudada. Não é casa pra gente pobre. Estuda, meu filho, prum dia
você comprar a sua! – disse a mãe. – E comprar de volta o sítio da sua vó pra
mãe ficar velha em paz.
Joãozinho não achou justo. Nem injusto. Pensou apenas que a
vida era assim; que a mãe merecia seu descanso, e que caberia a ele tornar
aquilo realidade.
– Só não esquece
nunca – completou a mãe – que com você junto da mãe eu não preciso de casa
nenhuma.
Paulo Ferreira, o Paulinho, era um bom aluno. Tinha quadra,
piscina, capoeira aos sábados e aulinhas de e inglês e mandarim. Era educado, sabia
separar o lixo, comia verduras no almoço – espinafre pra ficar fortinho. Tinha
um Wii e chamava os amiguinhos pra jogar Mario (papai e mamãe não conseguiram
determinar tudo; o peão e as bolas de gude ficaram esquecidos na estante) e
comer pão de sete grãos com requeijão da fazenda. Como era gostoso! Bom tempo
esse de ser criança! Às vezes João, o filho da empregada, vinha passar o dia.
Não sabia como se comportar com esse menino estranho, mas ao menos tinha sua
vitória garantida no videogame. Certa vez, seu pai, que chegava às seis, trouxe
um boneco para ele brincar.
- Pô, pai, eu queria outro!
- Papai volta amanhã na loja de brinquedos e traz outro, tá
bom? – suplicou o pai. Não eram milionários, mas ele não queria jogar no colo do
filho tão novo essa história de dinheiro, trabalho e todas as preocupações que
aquele sistema impunha. A infância não devia ser mercantilizada.
Paulinho achou justo: ninguém é melhor que o papai! É só eu
querer, e ele faz acontecer. E de fato, ele fazia.
A mãe do João lavava, passava, limpava, passeava os cãezinhos.
Fazia comida, pegava às sete e saia às oito, do centro da cidade, pra tomar o
trem. Uma noite, chegou em casa e deu beijo no Joãozinho, que perguntou:
- Mãe, porque você cuida da casa dos outros, e não vem
ninguém cuidar da nossa?
- Filho, meu anjo, com o dinheiro que eu ganho mal dá pra
cuidar da nossa casa. Empregada não é coisa pra gente simples como a gente.
Estuda, meu filho, prum dia você chegar lá! - respondeu a mãe.
Apesar do sofrimento, ela não se arrependia. A vida ali era
melhor do que no chão rachado da caatinga de onde saíra, onde os sete irmãos
passavam muita fome durante a estiagem, só com farinha pra comer; e calango. Lá
não tinha nada; só mato e seca. O filho não teria chance nenhuma. Agora tinham
luz, TV, roupa, comida, móveis, escola; e o sentido de oportunidade. Ainda
assim, ansiava em voltar à paz da roça da qual seu coração nunca saíra. Ali, com
menos dor, seria o paraíso.
João não achou justo. E nem injusto. Era como as coisas eram;
e reconheceu o quanto sua mãe se sacrificava para, naquelas condições, dar-lhe
o melhor que podia. Quantas indignidades ouvia calada, até curvada, aceitando
tudo de todos e sem guardar rancor, só para o bem do menino. Algo muito forte a
movia por dentro, e nada que viesse de fora iria pará-la. Ninguém é melhor que
a mamãe! E, de fato, ninguém era.
Às cinco era hora do lanchinho, hora de subir do parquinho,
hora do Paulinho parar de brincar. Bisnaguinha integral, leite achocolato belga,
gelatto de jabuticaba e suquinho de
buriti. Mordidas após mordida, vendo desenho na TV Cultura antes do Jornal.
Depois, foi fazer lição de matemática, aritmética básica do ensino fundamental.
- Mamãe, vem me ajudar?
- Filhote, agora não posso. Pede outra hora tá? – e sentou
no sofá pra ver seriado. O pai, ao computador, também não podia.
Paulinho achou injusto: ninguém tinha o direito de lhe
deixar sozinho. E se os pais não iriam ensinar, então ele também não ia querer
aprender.
João e Paulo, nascidos no mesmo dia, na mesma cidade, viviam
em mundos completamente diferentes. Quando a Nalva, mãe de João, mudou de emprego,
Paulo logo esqueceu o nome e o rosto daquele visitante ocasional.
João tinha só uma certeza na vida: a de que o mundo não girava
ao seu redor e não ligava para ele. Aprendeu desde cedo que moleque de pé no
chão não tem o que os outros meninos têm; mas queria ter, e sabia que não ia
ser fácil. Que o trabalho é duro, a vida
é dura, as vacas magras, as águas turvas. Mas o mundo tinha também seus dias de
sol, de futebol, de música, de sucesso, que faziam o resto valer a pena.
Sabia que estudar era a saída, mesmo quando na escola não
tinha professor pra ensinar. Tentou ler em casa, era difícil se concentrar. Mesmo
com todas as dificuldades, algo permanecia. Em meio a professores ausentes ou que
haviam desistido perante a apatia daqueles jovens, um se destacava: o Gilberto,
que dava geografia e filosofia. João não se interessava tanto assim pelas
teorias do professor – um papo de mais-valia, de exclusão social, de
necessidade de revolução –, mas o Gilberto era a única pessoa ali que
genuinamente ligava para ele. Dentre
todos os funcionários batendo ponto (ou nem isso), era o único que estava ali,
demonstrando interesse pelo jovem pobre na frente na classe, ajudando-o em suas
dificuldades, emprestando-lhe livros – alguns de ficção ele gostou bastante – e,
mais do que isso, sendo um amigo mais velho para conversar sobre tudo fora do
horário da aula: dificuldades da vida, problemas da sociedade, mulheres,
filosofia, sonhos. Sempre pagava uma cerveja para tomar junto de seu amigo e
pupilo de colegial – que a mãe e o MEC não ficassem sabendo! –, o único, dentre
tantos jovens já desinteressados, que demonstrava o desejo de saber mais.
Ao mesmo tempo, começava a trabalhar. Tantas aulas inúteis,
tanto tempo que poderia ser melhor utilizado. Miqueias, dono de um boteco perto
de sua casa precisava de um faz-tudo: descarregar mercadorias, às vezes servir
clientes, atender telefone. Um vizinho, que dava aulas de reforço para alunos
da escola pública, contava com a ajuda de João para corrigir exercícios. Ele
levava jeito para aritmética. Colava propagandas nos postes. Cortava mato. Em
pouco tempo passou a ajudar o Miqueias com o orçamento do bar e da lojinha que
ele tinha algumas ruas abaixo. O que não sabia, procurava aprender; ia pra lan house consultar a internet, ou pedia
algum livro pro Gilberto. Tudo em total desacordo com as leis de trabalho
“infantil” e com as normas da CLT sobre remuneração; felizmente, não havia
fiscal para impedi-lo. João estava sempre pronto a ajudar quem precisasse e
estivesse disposto a pagar.
Paulinho tinha só uma certeza na vida, a de que o mundo era injusto.
Aprendeu desde cedo que para ter tudo o que sempre quis bastava querer; afinal,
todo ser humano, pelo mero fato de existir, merece
ter tudo aquilo de que precisa. Mas nem todos tinham. E isso porque os
privilegiados se apropriavam do trabalho dos pobres para garantir suas mesas
fartas e sua água límpida. Bem sabia que seus pais tinham parte nesse culpa, e
adorava condenar suas hipocrisias.
Sabia que estudar era o caminho, e na sua escola – colégio da
mais pura estirpe construtivista – ele aprendia a ter um olhar crítico
sobre a sociedade. Para passar no vestibular, um bom cursinho,
nada crítico, bastou. Universidade pública é concorrida, mas se não passasse,
ele sabia, podia ir pra particular. Só não sabia bem o que estudar. Queria ser
um indivíduo determinado, igual a tantos que vira em filmes; gente que sabe o
que quer e vai atrás. Além do desgosto para com o mundo, não sabia o que fazer
da vida. Como sempre ouvira falar que era criativo, e como detestava
matemática, física e tudo que demandasse concentração mais intensa, flutuou
naturalmente para as Ciências Sociais. Não era má escolha. Com o tempo
conseguiria um pós-doutorado, seria reconhecido, viajaria pra França; seu pai
ia se orgulhar; e todos o respeitariam.
O tempo foi passando, e João foi se tornando uma pessoa mais
confiante, alguém que se sentia eficaz no mundo. Ainda na adolescência,
contudo, sentiu na pele a hostilidade de um mundo que elegia a força bruta como
critério máximo. Tendo juntado algum dinheiro, João comprou para si um par de
óculos escuros; nada demais, nada de marca, mas ficaram bons nele. Era a
primeira compra que ele fazia com seu próprio dinheiro e cuja finalidade era
apenas ele próprio; não uma necessidade, mas um desejo supérfluo. Voltava para
casa orgulhoso, sentindo ingenuamente que o mundo era, afinal de contas, um bom
lugar para se viver. Mas sua atitude já andava incomodando alguns de seus
colegas, e os óculos foram a gota que faltava para transbordar o copo da inveja.
Os mesmos olhos sem vida que o cercavam na escola o cercaram ali no caminho;
João já sabia qual era a deles. Apanhou muito naquele dia, bateu e chutou também.
Conseguiu fugir dali com a cara inchada, um sorriso sangrento na boca e os
óculos bem seguros na mão.
Só que o triunfo durou pouco. Já perto de casa, reparou no
policial de pé na calçada, observando como quem não quer nada, a espreita de
alguma oportunidade. Vestiu os óculos para esconder as marcas da briga. Saber
quando não chamar a atenção era uma estratégia de sobrevivência, mas nesse dia
não funcionou.
- Opa, espera aí, moleque! Vem cá, vem cá. Que que houve com
a sua cara?
- Tentaram me roubar. Eu fugi.
- E esse óculos bonitão aí? Você não me engana; de onde é
que você tirou dinheiro pra comprar?”
João era esperto o bastante para saber que isso não
terminaria bem. Fez o que sabia fazer: desafiou, olhando nos olhos do policial.
- Trabalhei e juntei. Vai querer roubar também? - Mas este
obstáculo estava além de suas possibilidades. O desafio foi a justificativa que
o policial precisava.
- Tá me chamando de ladrão, seu filho da puta? Fala isso de
novo que eu te fodo; eu sei onde você mora, tá entendendo? Roubar o caralho!
Roubar essa bosta de óculos falsificado! - E num tom mais calmo - Você vai é me dar esse óculos de presente. - Não
era um pedido.
Não foi tirado à força, e sim com um movimento voluntário do
próprio braço, que João cedeu os óculos.
- Pode ir, moleque. Tá liberado. Por hoje!
João chegou em casa tremendo de ódio. Ódio contra o rato que
lhe havia vencido, e ódio contra si mesmo por ter se curvado perante o que há de
mais vil na humanidade. Para quê ser honesto, se os urubus levam a melhor? Para
quê construir e planejar se a força cega tem a palavra final?
Sua mãe o acolheu, passando delicadamente um pano molhado no
rosto machucado, e reparou a mudança na atitude do filho. Colocou-lhe diante de
si e falou com ele, sem um pingo da doçura que ele tinha aprendido a esperar
dela:
- Eu te amo, meu filho. Você sabe disso. Mas eu te juro, eu
juro, que se alguma vez na vida você roubar, você não pisa nessa casa nunca
mais. Eu prefiro te ver morto, meu filho, do que bandido.
João não acreditava em Deus; nunca lhe parecera importante.
Mas ali, no olhar da mãe, muito mais terrível que o de qualquer gangster ou
policial, ele experimentava uma dose de uma força sagrada. Uma força que por
séculos e séculos, por gerações incontáveis de um povo sem registro, mantivera
alguma ordem em meio a uma miséria tão abjeta que podia transformar homens em
lobos: o temor de Deus. Trair aquele
olhar seria, de fato, pior do que a morte.
João entendia a injustiça do que lhe acontecera. Compreendia
agora, também, que seu caminho não poderia ser aquele. É meu direito buscar e
alcançar as coisas que quero para mim; e não serão ratos comedores de beirada que
vão me desviar.
O tempo foi passando, e Paulo Ferreira se tornou um jovem
estudioso e indignado. Na faculdade, teve uma namorada, mas houve pouca paixão
naqueles cinco anos. Fazia seu curso à noite, tinha as tardes livres e tocava
violão. Não lia tanto quanto dava a entender. Seus dias nem lhe traziam grande
satisfação, e nem contribuíam para construir o futuro brilhante que ele cria
ser direito seu. Os pais, querendo seu melhor, recomendaram: por que não
procura um estágio, para ter seu próprio dinheiro e comprar suas próprias
coisas?
Paulo achou injusto: que sociedade é essa que condiciona o
acesso a bens e serviços ao sucesso mercadológico? É direito de todos ter as
coisas que os outros têm!
Ao invés de estágio remunerado, inscreveu-se numa ONG. Dava
aulas de conscientização social em favelas. Seu pai o apoiou; mas – engraçado –
embora soubesse que a escolha do filho era mais nobre que um estágio comum –
algo que não se pautava pelo lógica egoísta do mercado – não sentiu o orgulho
que achou que sentiria. Ainda assim, no discurso público, a escolha do filho
era ideal; não cansava de elogiá-lo em meio a amigos intelectuais. Sem falar
que, se a coisa fosse pra frente, se o marketing fosse bem feito, galgar
posição em alguma Secretaria seria um passo simples. Segurança, liberdade e
serviço social; quem poderia querer algo melhor?
A ONG ia bem; conseguiu patrocínio de um grande banco. Jovens
ali se reuniam para aprender sobre seus direitos, sobre como a sociedade
injusta tirara o que deveria ser deles. Paulo os incitava a questionar aquele
sistema. O tráfico e o crime eram respostas naturais à violência institucionalizada
do capital e de seu aparato repressor, a polícia. Não, dizia Paulo, não entrem
pelo caminho da violência; ele repete o padrão, não é transformador da
sociedade. “Mas pode transformar a minha
vida”, rebateu Jefferson, um jovem conturbado que tinha encontrado ali um lugar
para conversar e se sentir acolhido. “Por que eu preciso colocar a comunidade
antes de mim?” Paulo não soube responder.
A ONG não era longe de onde João morava, e o Gilberto
convenceu-o a ir um dia, ouvir uma palestra, junto com um grupo da escola. Mais
tarde, contou ao professor seu desconforto: “É legal, tudo muito bonito. Mas
eles ficam falando de mudar a sociedade e nunca vão fazer nada. Eu não entendo
nada de lei e de governo, só sei que nunca me ajudaram. Estou pensando na minha
vida e ajudando os outros com o meu trabalho. Por que eles não fazem o mesmo?
Cadê aula de alguma coisa que serve pra alguma coisa de verdade?” O professor
ainda insistia na importância de pensar nos problemas maiores, nas causas que
faziam a sociedade ser daquele jeito, mas também não tinha como negar que João
estava trilhando seu caminho e, se continuasse assim, melhor para ele. Bem
sabia que os quase quinze anos dando aula não tinham gerado lá muita
transformação. Sentia-se bem ao ver que o pupilo e amigo subia na vida. Sentia
que, para ao menos um, seu trabalho não fora em vão.
E João subia a todo vapor. No dia seguinte, foi falar com
Miqueias. João tinha ideias para expandir o bar, abrir um novo em outra
vizinhança; conhecia bem o negócio e havia provado seu valor. Suas iniciativas
anteriores, como colocar música na frente do bar, tinham dado retorno; já
conhecia melhor as contas do estabelecimento que o próprio dono, e com toda a
confiança que recebera, tinha provado também sua honestidade. Seria tolo não
lhe dar essa chance. A única coisa que João demandava era que, de agora em
diante, fossem sócios. Miqueias topou. E esse nem foi o maior golpe de sorte da
semana.
Com a bolsa da pós, Paulo comprou um iPhone e uma capinha
protetora do Che Guevara. Sua dissertação, apesar de atrasada, era elogiada
pelo orientador. Um amigo que entrara num grande jornal já lhe garantira um
artigo para a coluna de opinião. Estava pavimentando uma lenta estrada rumo a
uma carreira intelectual de sucesso, a uma vida plena, fruto de sua genialidade
fácil. Algum dia num futuro indeterminado, a livre docência e uma coluna
semanal fixa! Voltou para casa cansado de tanto devanear, leu um pouco e foi
dormir, contente, tendo depositado sua tese de doutorado. Dali algumas semanas,
por causa de uma matéria sobre a ONG que saíra no jornal, se encontraria com o
Secretário de Desenvolvimento Social para debater a exclusão na periferia.
Tudo seguia bem, até que uma sexta-feira amanheceu cinza…
Paulo acordou. Tomou seu Sucrilhos sozinho, sentado na rede
da sala, olhando o Facebook no laptop.
João acordou. Mordeu um pedaço de pão duro, nem ligou a TV.
Colocou sua apresentação na mochila, e foi para sua moto comprada a prestações
suadas. Usada, mas bela, que ele gostava de coisas bonitas. (Nesses dias ele já
tinha, por força de necessidade, chegado a um entendimento com gente da favela
que tinha como garantir que ele não seria alvo da inveja alheia.) Deu a partida
e partiu na longa jornada rumo ao centro, com fogo ardendo em seu coração. O
fogo que o impelia a ir sempre além.
Na semana anterior, um pequeno milagre ocorrera na
comunidade: a visita de um grupo de investidores procurando negócios locais “com
impacto social” (o que era isso?). Era gente com grana querendo colocá-la ali.
João foi hábil em conversar com os visitantes e marcar a reunião – um boteco
com música e dança não era, a princípio, o tipo de negócio que eles tinham em
mente. Tinha que ser no escritório deles, longe dali; condição de que não
abriam mão. Talvez fosse um teste; e, como em tantos outros, João passaria.
Parou a moto num cruzamento. No mesmo pelo qual passava
Jefferson; enfurecido, magoado, queimando por dentro com um fogo bem diferente,
justificado pelas ideias que aprendera nas últimas semanas. Aproximou-se da
moto com uma arma em mãos:
- Desce da moto, playboy! Vamos, passa o celular! Vai, mano,
rápido!
- Calma, pode levar! Não me machuca! – disse João,
assustado. Era sua velha inimiga, a força bruta e burra, cobrando mais uma
taxa.
Jefferson subiu na moto, portando seu celular. Ele vivia
para esses momentos em que ficava por cima. Duravam pouco, e ele logo caía mais
fundo. Mal sabia que seria seu último momento de glória. A adrenalina
anestesiou todo seu corpo. Viu que um policial se aproximava; quis metralhar
aquele porco por todos os tapas e humilhações sofridas desde pequeno; mas o
policial foi mais rápido e lhe deu dois tiros. Um pegou na barriga e outro no
ombro. Jefferson caiu no chão, predado, abatido, ensanguentado.
O policial se aproximou com arma apontada, chutando o
revólver da mão de Jefferson:
- Acabou, maluco! Acabou! – gritou o policial, enquanto
tirava o celular roubado de seu bolso.
João observou a cena sem reação, estupefato. Fixou o olhar
sobre o pobre coitado se contorcendo em agonia mortal. Intuiu que, se tivesse
dado passos um pouquinho diferentes em sua vida, poderia ter sido ele estirado
no chão. O que o desviara daquele caminho possível? Não sabia. Sentiu alguma
pena: quem sabe o tipo de merda diária que o meliante deve ter tido que aturar
a vida inteira, todo santo dia, para que seu espírito se rendesse à sede de
destruir? Teve poucas chances na vida, e as que teve jogou fora. Era culpado,
mas era também vítima de um sistema que, por algum motivo que João não
compreendia, destruía oportunidades e lutava contra quem tentasse melhorar
honestamente.
Uma alquimia insondável de sorte e escolha havia trazido
João aonde se encontrava agora. Não cabia falar em mérito ou demérito, apenas
em causa e consequência. Ele tinha sua moto e seu celular, e Jefferson não
tinha nada e babava sangue no chão, e isso não era apenas fruto do acaso, e
tinha sido construído ao longo de muitas decisões.
Nisso, transeuntes começavam a se aproximar do corpo. Em
seus últimos momentos, Jefferson desejou
que todos os que se ajuntavam à sua volta fossem tragados para o mesmo ralo que
agora o levava. O comentário popular não era mais caridoso.
- Esse aí vai roubar moto no inferno agora!
- Ladrão!
- Bem feito!
- Vagabundo.
As falas despertaram João de suas elucubrações. Sentiu pena
também daqueles cidadãos. Deviam ter alguma privação muito profunda que
procurava alguma desculpa para se extravasar. Prometeu a si mesmo que essa
doença também não o subjugaria.
Olhou para o policial que acabara de despachar o ladrão.
Tinha sofrido tanto nas mãos da polícia, humilhado por causa de sua cor e de
sua condição. Naquele momento, porém, sentia gratidão pelo homem que o salvara.
Pela primeira vez na vida, enxergou o que aquela farda antes tão odiada deveria representar. Era uma tragédia
que a força se fizesse valer; mas, dessa vez, prevaleceu a força submetida à
ordem, e não ao caos.
Aquela tragédia não impediria seu caminho. Não tinha tempo a
perder. O policial foi compreensivo – que ele comparecesse na delegacia mais
tarde – e João acelerou sua moto rumo ao compromisso que mudaria sua vida.
Alguns raios de sol já atravessavam as nuvens. Apesar de tudo, havia alguma justiça
no mundo.
Longe dali, vendo o caso no Facebook, Paulo achou tudo
injusto. Jefferson não era culpado. Era a vítima. Vítima de uma sociedade
construída sobre a exploração dos pobres pelos ricos, e vítima da violência
gratuita de uma polícia opressora. Quem era aquele tal “empresário” que guiava
a moto? Como ousava sair por aí ostentando um bem que outros não podiam ter? Jefferson
estava apenas pegando o que era seu por direito da única forma que lhe foi
ensinada. Incrível como, mesmo entre os explorados, a cultura capitalista – a
máxima do levar vantagem em tudo – conseguia dar origem a novos exploradores
imbuídos da mentalidade do sistema. Num mundo ideal, homens como João não
existiriam.
Já tinha o tema para seu artigo de jornal. E começava,
finalmente, a desvendar seu propósito na vida: cortar pela raiz a pretensão
individualista, socialmente engendrada, de ascender para além dos demais,
humilhando assim quem não podia chegar tão alto. A reunião com o secretário
seria esta tarde, e ele pensava em como traduzir esse ideal em políticas reais
que minimizassem a violência que a existência dos maiores representa para os
menores. Que ele pudesse ser o autor de uma sociedade mais conforme sua visão
de mundo lhe enchia de esperança, e ali estava um mecanismo bastante eficaz
para esse fim. Aos poucos, as coisas iam acontecendo em sua vida, e Paulo
começava a receber a consideração que – sempre soube – era sua por direito. Talvez
o mundo não fosse, afinal, tão injusto assim...
domingo, 13 de outubro de 2013
O que brilha no altar é luz de lâmpada
Postado por
L.M.
Interior da Basílica de Nazaré, em Belém-PA |
Durante a idade
das trevas da minha adolescência rebelde (prolongada até demais, segundo o
costume da época), mantive um único elo com a religião e o sagrado: a Virgem
Maria. Não sei se poderia dizer que tinha “devoção” ou “fé”; era um contato,
uma espécie de confiança automática e cega, mas real, tanto que me manteve de
pé em diversos momentos de desespero, impedindo-me de desabar no completo
vazio, embora eu tenha por diversas vezes me aproximado disso. Lembro-me de maldizer
a Igreja e afirmar que a morte era o fim de tudo, mas não recordo um único
período de minha vida em que não rezasse à Virgem Maria. Contraditório, sim, e
inteiramente verossímil.
Eis a origem da
contradição: sou paraense. Ano passado, nessa mesma época, escrevi um texto sobre o Círio de Nazaré, onde descrevia a transformação por que a cidade de
Belém passa durante a quinzena da festa e sua profunda importância cultural
para o povo do Norte. Agora estou aqui de novo, no Pará, no dia do Círio, e o
raciocínio que comecei no texto do ano passado continua a se desenvolver.
Mas comecemos
pelo começo.
*
Um dos meus
passatempos favoritos quando morava aqui era sair para longas caminhadas (isso
ainda era possível dez anos atrás, quando andar pelas ruas não era sinônimo de
ser assaltado), caminhadas que invariavelmente passavam pelo meu local favorito
na cidade: a Basílica de Nossa Senhora de Nazaré. Eu então não me interessava por
religião, ou política, ou qualquer coisa que não fosse “a poesia do mundo”; a
Basílica era um lugar aconchegante, silencioso e que (na expressão que me
lembro de utilizar na época) parecia situar-se em outro tempo. Fora dela, a cidade feia e maltratada; dentro dela,
a beleza, a austeridade e uma curiosa sensação de proteção. Eu não frequentava
bibliotecas: ia para a Basílica ler e rabiscar pseudopoemas, inspirada pelo
ambiente que me remetia para além do meu século.
É exatamente
isso o que um templo religioso precisa transmitir às pessoas: a sensação de que
ali se está fora do tempo, diante de
algo maior do que o ambiente imediato e não condicionado por ele. É de
propósito que falo em sensação e não em convencimento intelectual: a Igreja
visível deve falar aos homens também
pelos sentidos, propondo símbolos que impregnem nosso imaginário e nos
despertem emoções propícias à fé –
como uma obra de arte. Cada igreja, bem como os ritos que se realizam dentro
dela, não deveriam ser menos do que obras de arte: a expressão simbólica do
sagrado, ou ao menos a expressão da sempre insuficiente tentativa humana de
amar publicamente a Deus. Falei algo em torno disso nesse poema.
Sem dúvida,
tomaram parte no meu retorno ao catolicismo aquelas tardes passadas sob o teto
da Basílica de Nazaré e o olhar guardião da Virgem, ainda que eu então não
atentasse à gravidade do que se passava ali. Diferente da maioria das igrejas
mais recentes, a Basílica – com sua arquitetura pensada para torná-la em
símbolo tangível da fé cristã – é um verdadeiro apostolado de pedra dessa fé.
No entanto, nem
só de pedra vivem os corações humanos... Penso no quanto teria sido fácil
jamais ter me afastado da Igreja, se além de me acolherem aquelas belas paredes
eu tivesse sido também intelectual e vivencialmente instruída na fé. Ao invés
disso, tive aquelas aulas medonhas de catecismo que são responsáveis por afastar
9 em cada 10 apóstatas, entre várias outras experiências negativas que por fim
se confundem com a experiência geral de ignorância religiosa do mundo
contemporâneo.
Não tenho
dúvidas de que Nossa Senhora de Nazaré, intimamente conhecida pelos paraenses
como a Rainha da Amazônia, foi enviada por Deus para guardar esse Norte tão
pobre do nosso país. E ela certamente o guarda. Porém hoje, retornando já
adulta a Belém e à Basílica de Nazaré e capaz de entender melhor o que se passa
ao meu redor, vejo com tristeza o quanto os paraenses cada vez mais se
distanciam do sentido real do Círio e da pessoa de Jesus Cristo. As causas
desse distanciamento são um tema que eu não saberia esgotar mesmo se dispusesse
do espaço e do tempo apropriados. Mas não é necessário ser teólogo ou
historiador para enxergar o óbvio: se as pessoas têm cada vez menos em conta o
sagrado e o sobrenatural, é porque também a Igreja as levou a secularizar sua
percepção do mundo. São exemplares, nesse sentido, os casos da Basílica de
Nazaré e do Círio – esses dois espetaculares símbolos cristãos, mas que se vêm apequenando diante da cultura secular, ao invés de combatê-la.
A cada ano que
passa, o Círio firma-se mais como uma idiossincrasia regional, um feriado com
suas particularidades e tradições, que as pessoas repetem um tanto
maquinalmente, sem saberem bem o que fazem ou por quê. (Repito aqui o que disse
no ano passado: com “as pessoas” refiro-me primordialmente à classe média que
não chega a envolver-se na procissão; os romeiros que vão na corda são um caso
mais complexo.) O fato de a festa tomar as ruas e modificar a vida da cidade
por vários dias (além da procissão principal, no segundo domingo de outubro, há
várias outras adjacentes) lança no ar um magnetismo contagiante, motivo pelo
qual não há paraense que não reconheça a experiência do Círio como algo
“mágico, encantatório, sobrenatural”. O que eu gostaria é que não se
empregassem tais adjetivos metaforicamente: o Círio celebra de fato algo sobrenatural e é preciso vivê-lo
com a reverência de que são dignos os grandes mistérios. É preciso, intensamente,
rezar... E não perder de vista que Maria é a Mãe de Jesus, redentor dos homens,
substância da fé cristã, e não alguma genérica “Mãe”, à qual nos apegamos por uma espécie de carência afetiva (ver a partir de 3m30s).
Consola-me saber
que Deus escreve certo por linhas tortas e que em nossos tempos menos é mais, e
é preferível esse contato superficial a contato nenhum com a Virgem e o
cristianismo. O Círio de Nazaré, tendo-se tornado patrimônio cultural do povo
paraense, está arraigado a sua identidade e tem sobre ele uma influência
poderosa. Como comentei anteriormente, há uma parte da população sinceramente
devota e cristã e outra cujo cristianismo é apenas, digamos, cultural, e que
provavelmente já nem teria qualquer relação com a religião se não vivesse em
uma sociedade consagrada à Virgem de Nazaré (vide meu exemplo próprio, que relatei
no início do texto).
O que me dói é
ver quão prodigiosas são as graças que Deus dá aos paraenses, visíveis no
Círio, na Basílica e na fé estranha que insiste em resistir no coração desse
povo – me dói porque é preciso ver também, a cada ano, a cada Missa, tais
prodígios serem tratados com um desrespeito imperdoável! Rezar a Santa Missa ao som de carimbó não vai trazer o povo à Igreja, vai antes fazer com que, no
entendimento desse povo já completamente sem instrução religiosa, a Igreja
identifique-se ao século, perdendo todo o seu peso simbólico e, por fim, toda a
autoridade.
E novamente não me refiro só à ignorância da população pobre, mas à classe média
educada pela televisão, da qual provenho e que, digo de carteirinha, já não faz
a mínima ideia do que há para se fazer em uma Missa a não ser torcer para que
acabe o quanto antes. Porém, tornar a Missa mais “divertida”, disfarçando o
máximo possível seu sentido de Sacrifício, não vai trazer mais ovelhas ao
rebanho. Como diria W.H. Auden, no
one has yet believed or liked a lie. Dizer às pessoas
que o Inferno é uma metáfora é uma imensa crueldade da parte daqueles que
deveriam ser nossos diretores espirituais.
Quem já viu o
Círio de Nazaré pôde testemunhar o quanto esse povo quer se entregar, quer
crer, quer viver a fé, e o faz na medida de suas possibilidades, com uma
sinceridade evidente. Se, ao invés de contribuir com a cultura da
superficialidade e da distração; se, ao invés de privar seu rebanho do peso
real da Revelação cristã, a Igreja o instruísse, o acompanhasse de perto, com o respeito que é sempre incompatível com a condescendência que tapa o sol com a peneira, o povo paraense seria um dos exércitos mais poderosos lutando a batalha de
Cristo. Mesmo com toda a confusão em voga, ele o é; mas poderia ser muito
mais...
A procissão
terminou há algumas horas e a cidade continua imersa na agitação da festa. Neste ano, pela primeira vez, vou embora de Belém com o coração apertado após ter visto o Círio. Há algo de muito errado no ar. Sinto como se tivesse
diante dos olhos um corpo moribundo, do qual muito em breve só restará a casca.
E não sei o que se pode fazer para salvá-lo...
Aparentemente, só
nos resta a oração silenciosa e a súplica individual. E cuidar dos símbolos,
que eles existem para nos orientar nesse mundo. Justamente por isso é que
retornarei a Belém em fevereiro: para casar aqui. Na Basílica de Nazaré. A cada
vida compete um simbolismo pessoal e intransferível: a minha exige que todo
um passado de erros seja entregue no altar da morada que me acolheu quando eu
nem desconfiava precisar dela. Tudo, absolutamente tudo sob os olhos da Virgem
de Nazaré.
segunda-feira, 7 de outubro de 2013
Poesia e Alfabetização
Postado por
Rafael Falcón
Para alfabetizar uma criança, é preciso ter uma visão clara do que é o alfabeto. Alguns métodos recentes propõem alfabetizar por associação direta de palavras e coisas, sem passagem pelas letras e sílabas. Desses, o mais conhecido é o construtivista, que tem sido acusado de deixar o Brasil nos últimos lugares em todos os exames internacionais - o construtivismo é a linha adotada nos Parâmetros Curriculares Nacionais. Uma variação mais moderna, de tom behaviorista, é o método Glenn Doman.
Convém notar que esses métodos são recentes demais, e nenhum deles apresenta provas de que funciona melhor que os anteriores. Ora, está fora de dúvida que lhes cabe o ônus da prova, pois propõem uma inversão completa da alfabetização tradicional e até do bom-senso.
Sem entrar em discussões teóricas muito específicas, pode-se dizer que a língua escrita foi concebida como uma codificação da falada. Essa dependência epistemológica se manifesta nas regras de ortografia (por exemplo, a transformação da nasal n na bilabial m antes de consoantes bilabiais como p e b). Aliás, para compreender um texto temos de ser capazes de sentir seu tom, ou seja, fazemos imaginativamente uma reconstrução sonora da frase escrita. Verba volant, scripta manent; o natural é sentirmos a língua falada como mais viva, mais compreensível, e portanto como uma base mais confiável para a comunicação.
Ora, se vamos admitir que a poesia tenha alguma utilidade na alfabetização, temos que dispensar imediatamente os métodos "intuitivos" ou "visuais" de leitura. Pois a poesia é um gênero de base oral, inequivocamente. É definida por pausas (no fim dos versos ou estrofes), por rimas, por aliterações. A própria palavra verso vem do latim vertere (dar uma volta), da qual derivam palavras como reverter e vórtice, indicando a necessidade de pausar a leitura periodicamente.
Uma característica fundamental do discurso poético é produzir musicalidade dentro das limitações do idioma. Isto é, não existe plena liberdade para o ritmo da poesia. Não é válido alterar as sílabas tônicas de uma palavra, e não existe partitura para instruir o leitor sobre o tom que deve reger cada verso. O poeta precisa contar com o arcabouço linguístico natural. Os efeitos que um grande poeta consegue extrair da sonoridade banal de uma língua têm, portanto, um resultado muito positivo na educação linguística da criança. Ela pode usar os versos como um espelho (speculum) para perceber mais facilmente as regras internas da entonação e da pronúncia. Basta pensar nos benefícios fonéticos de recitar "Vou levando a Ventura e a Desgraça,/Vou levando as vaidades da Vida!" (Olavo Bilac). Bem melhor que "vovô viu a uva".
A poesia também é notável por produzir um efeito encantatório, fruto da harmonia entre imagens, sonoridade e semântica. Nos versos acima, a aliteração de vv e dd imita o som de uma ventania, sugerindo que o tempo (eu-lírico do poema) é semelhante às ventanias, levando embora os segundos e os acontecimentos. Essa harmonia quase mágica entre os elementos linguísticos e o significado das palavras educa a inteligência para buscar, também ela, uma harmonia completa entre seus gestos, seu modo de falar e suas intenções subjetivas. Como mostra Roger Scruton, em Why Beauty Matters?, a sensibilidade estética tem grande parte na diferença entre um medíocre e um homem educado.
Para completar, a poesia oferece às crianças muito do que elas procuram naturalmente nessa fase. Efeitos sonoros atiçam a curiosidade infantil, como no clássico poema de Vinícius de Moraes, que ninguém consegue ler sem um sorriso: "o pato pateta/ pintou o caneco/ surrou a galinha/ bateu no marreco". As pausas ritmadas frequentemente facilitam a leitura. O exercício de decorar poemas e recitá-los responde a um anseio natural das crianças; basta ver como decoram até comerciais de televisão, e como têm prazer em mostrar essas realizações aos adultos.
Chega a ser curioso que alguns levantem contra os poemas a objeção de serem "difíceis". Crianças não sabem o que é "difícil". Para elas, tudo é novo, tudo é difícil, e por isso mesmo tudo é um desafio. Decoram o que ouvem e repetem o que você diz, mesmo que não entendam patavinas. Minha irmãzinha uma vez falou que nossa casa era muito bagunçada, uma "pocilda"; tinha escutado num desenho a palavra pocilga, e repetiu-a quando se viu num contexto semelhante, mesmo sem saber-lhe a definição. É comum reproduzirem palavrões, sem terem ideia do que significam, só pelo efeito chocante. Se aprendem textos comerciais e palavrões, por que não decorar poemas?
Mais ainda: todos os pedagogos tradicionais supunham que crianças devem ser alimentadas, desde a mais tenra idade, com o melhor que nosso idioma já produziu. Por isso o jovem grego decorava Homero, o romano Virgílio; por isso Goethe aos dez anos brincava com a irmã de recitar poesia religiosa germânica. Por isso Manuel Bandeira, criança, sabia trechos d'Os Lusíadas de cor, e chegou a refrescar a memória do velho Machado de Assis uma vez, quando o encontrou num trem. Mas isso, dizemos, era bom para Platão, Cícero, Bandeira; para nossos filhos, melhor O Pintinho Piu-Piu (título inventado, com grande felicidade, por minha mulher, para condensar a péssima literatura infantil que se produz hoje em língua portuguesa). Caviar é para os brancos; aqui na senzala, só pé de porco. E como, pergunto eu, sairemos da senzala cultural nesse ritmo?
Espero, pois, um despertar dos pais brasileiros para a grande utilidade da poesia desde a meninice. Desenvolve a percepção linguística, o senso estético, a harmonia geral de corpo e mente; melhora o vocabulário, é divertida e agradável, confere às crianças um sentimento de evolução pessoal e respeito pelos clássicos. Por que, então, desprezar o tesouro de nossa literatura para alimentar a indústria de autores canônicos do MEC, que aliás são quase sempre semi-analfabetos sem gosto literário e cheios de panfletagem ideológica? Por que nossas crianças devem aprender o português com o lixo subcultural de escritores políticos, quando temos Cecília Meireles, Olavo Bilac, Mário Quintana, Vinícius de Moraes? Fica meu convite e desafio aos restantes pais brasileiros: redescubramos a poesia, por nossos filhos.
Originalmente postado em Homeschooling Brasil.
Originalmente postado em Homeschooling Brasil.
Assinar:
Postagens (Atom)