domingo, 20 de janeiro de 2013

A Civilização do Futebol de Rua

Meu avô materno era padeiro e treinador de futebol. Foi amigo do Bellini, zagueiro e capitão do escrete brasileiro nas Copas de 58 e 62. Apesar de sempre ter admirado sua carreira semiprofissional de futebol, eu mesmo, desafortunadamente, nunca levei jeito para o esporte dos bretões. Minha vontade mesmo era ser padeiro. Como perdi no tal jogo da vida – depois de também ter perdido as esperanças no proletário esporte bretão – sem ressentimentos aposentei as chuteiras e me tornei professor de filosofia.
Como todo moleque, gostava de bater bola com os amigos no campinho improvisado na rua, num terreno qualquer, de traves feitas de chinelo de dedo. Eu e mais outros dois amigos éramos péssimos. Meu apelido variava entre “leite-azedo” e “cabide” (magro e branquelo); de um dos amigos, “bolacha-traquinas” (redondo e sorridente).
Hoje tenho certeza de que a expressão café-com-leite tinha muitíssimo a ver comigo. Era quase uma vocação: ser café-com-leite. Na vila onde morava havia uns quinze garotos. O jogo, pra ser competitivo e divertido, tinha de ter pelo menos seis jogadores para cada lado: um no gol e cinco na linha. A questão é: como se monta uma seleção de rua?
O senso de justiça na molecagem é impressionante: a coisa é orgânica e funciona sem precisar da intervenção de pais, estado, governo, ongs, feministas, veganos etc: em cada dia de jogo, dois moleques montam seus respectivos times; noutro dia, outros dois... e assim por diante. Como meu sonho mesmo era ser padeiro, só jogava quando era minha a vez de montar o meu próprio time, ou na ausência de um dos titulares. Não obstante, nesse último caso, eu era sempre um dos últimos a ser escolhido. Me consolava lembrar: "Quero mesmo é ser padeiro".
O senso de justiça funcionava mais ou menos assim: sabíamos (senso comum) que dos quinze amigos, pelo menos dois eram gênios da bola (Marrom e Chulé); quatro jogavam bem (Xoxó, Neguim, Lácio e Buda, o dono da bola); um outro era sempre o goleiro (Pavio); outros quatro sabiam jogar (Mula, Toco, Paulo e Sabão); dois eram medíocres (Chaveiro e Robson) e, por fim, dois rigorosamente estúpidos (eu e o Bolacha). 
A conta é simples: todo mundo quer jogar, mas só há doze vagas. Como não existia “cota-perneta”, ninguém falava em exclusão social. Não havia passeatas em favor das minorias que sofrem o preconceito por serem verdadeiros “bonecos de Olinda” jogando bola. Então a coisa se ajustava de modo a fazer inveja a Rothbard, e era absolutamente inconcebível pensar em evocar a autoridade de algum pai para intervir na disputa por uma vaga. Era a injustiça mais justa de todas. 
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