segunda-feira, 17 de outubro de 2011

Rafinha Bastos no Altar da Piada

Há uma velha piada americana que era contada apenas entre os humoristas profissionais, chamada The Aristocrats. Uma família chega num estúdio caça-talentos para fazer um teste. O avaliador pede que comecem, e o que a família faz é uma seqüência das práticas mais detestáveis e obscenas, todas descritas explicitamente por quem conta a piada. Ao fim do show, estupefato, o avaliador pergunta qual é o nome do grupo, ao que eles respondem: “The Aristocrats”. A piada em si é sem graça; e sem dúvida o que nos anos 50 (ou seja lá quando a piada surgiu) era considerado off-limits até para platéias adultas, sendo portanto um vínculo meio secreto dos profissionais do humor, hoje é assunto de aula de sexo no pré-primário. Mas a graça dela vem do fato de se fazer piada com o proibido; o violar de todas as barreiras do pudor, e mais, do respeito e da dignidade humana.

Uma versão moderna da The Aristocrats (há um filme de uns anos atrás sobre ela, com vários humoristas atuais, mas eles em geral não arriscam muito. Alguns, por exemplo, contam versões particularmente obscenas da piada ao lado do filhinho bebê, o que tem um quê de transgressão, de violar a inocência. Claro, a transgressão real seria contar a piada ao lado de um filho pequeno mas já capaz de entender as palavras) mudaria um pouco seu foco: manteria o sexo no que ele tem de degradante unindo-o ao machismo, racismo, preconceito contra deficientes e outras coisas do tipo. Nada é sagrado no altar do humor. E nas formas mais ácidas, a graça está no próprio fato da ofensa gratuita.

No Brasil, quem tem levado o humor mais fundo em toda sua ofensividade é Rafinha Bastos, que era o assunto da vez antes da morte do Steve Jobs. Engana-se quem pensa que ele é didireita. Certamente não é de esquerda, mas ao mesmo tempo não tem lá muita veneração pelo Cristianismo que é associado ao conservadorismo. Também não deve ser (embora aqui haja espaço para dúvida) um grande defensor da causa liberal, da propriedade privada e do livre mercado. Ele é, na melhor das hipóteses, um apólogo do homem em seu “estado de natureza”, que quer mulher, churrasco e cerveja e está pouco se lixando pra causas sociais, minorias vitimizadas e os sentimentos dos outros.

É desonesta a crítica da nossa “boa gente” ao humor do Rafinha Bastos. Dizem que seu principal problema é não ser engraçado. Nada disso; estão fugindo da raia. O principal problema é, obviamente, ele ser ofensivo e brincar com temas e valores que são, para nossa intelectualidade, sagrados. Me abstenho de julgar a qualidade de seu humor enquanto humor: a piada das mulheres feias que deviam agradecer o estupro, ouvida descolada do contexto, é certamente sem graça; mas ler num site (ou mesmo ver no youtube) é muito diferente de estar presente num stand-up, que vai passo a passo te levando a gargalhadas por motivos absurdos que só fazem sentido dentro daquela experiência. O comentário sobre a Wanessa Camargo é engraçado precisamente por ser tão inapropriado, de um mau gosto tão abismal, que choca que uma mente pense e manifeste casualmente esse tipo de comentário em rede nacional. Enfim, bom ou ruim, sem dúvida é humor.

Voltando ao ponto: é óbvio que a rejeição a Rafinha Bastos não é pela sua falta de graça, mas porque ele faz troça com objetos sagrados. Ele entrou no modo metralhadora giratória. Insulta e ofende, com todo o mau gosto próprio do humor, quem quer que seja, e está se isolando cada vez mais. E isso mostra como por trás do humor, mesmo do mais “liberado”, quase sempre há interesses e valores. Quando ele se desprende verdadeiramente das amarras ideológicas que o guiavam, todo mundo quer é distância. Mesmo que não se goste do que Rafinha Bastos faz, há que se reconhecer o valor que ele encarna; ou melhor, o anti-valor: um humor tão tóxico e corrosivo que, por sua própria natureza, nada pode controlá-lo ou silenciá-lo. Para quem não vê com tão bons olhos a cultura oficial contemporânea, o espetáculo é, ainda por cima, uma lufada de ar fresco.

O que é o humor? É o mostrar algo como digno de riso, isto é, ridículo. E isso é a força mais destrutiva a tudo que diz respeito ao homem. Se rimos de algo, esse algo não é pra ser levado a sério. No campo das idéias e dos valores, significa desconsiderá-los, colocar-se qualitativamente acima deles e relegar-lhes ao desprezo. Isso é considerado imoral de vários lados, e obviamente o é, quando o valor do qual se puxa o tapete é bom e digno de ser defendido. Mas dizer que é imoral é diferente de dizer que não é humor, ou mesmo bom humor (isto é, engraçado).

Imagine quem dissesse: “O humor não é ateu. O humor, quando é bom, é católico.” Ou vice-versa. Tanto as pretensões de valor e de verdade do ateísmo quanto as da religião (e não nos esqueçamos das pretensões de honestidade e sensatez do agnosticismo) são derrubadas pelo humor. O humor é um ácido que corrói qualquer objeto. Essa é sua lógica. E o que você considera engraçado revela, em parte, o que você considera, em algum nível de seu ser (mais emocional do que racional) verdadeiro e / ou bom. Tudo pode ser encarado de forma corrosiva, pois tudo o que é humano tem, em alguma medida, pés de barro. Reclama-se do humor ofensivo? Mas o humor é engraçado porque ofende, isto é, por que torna algo risível (ok, nem todo; mas com certeza os tipos mais engraçados são assim). E ninguém gosta de ser alvo de risada, que significa dizer que se é irrelevante, que não merece ser levado a sério. Uma grã-fina escorregando numa casca de banana é engraçado porque este evento desmistifica a imagem dela e mostra o quão patético e clueless é o ser por detrás da imagem de superioridade. Existe humor com religião, com sexo, com raça, com nacionalidade, com política de esquerda e direita.

O humor pode ser contido, pode se limitar, pode servir apenas como um wake-up call do tipo “não se leve tão a sério”, e daí é saudável rir de si mesmo ou do próprio grupo. Mas ele não pára por aí; vai mais longe. Enquanto sobrar alguma algum fio de dignidade, há objeto para o humor destruir; e ele é capaz de destruí-lo. Podemos dizer que o humor moderado tem como objeto a falsa aparência de virtude, de dignidade, de bondade. Mas o humor puro chega a profanar a própria virtude, a própria dignidade, a própria bondade, ao fazer delas coisas ridículas. Por isso a escritora americana Ayn Rand considerava o Dom Quixote um dos três romances mais imorais já escritos: porque, segundo ela, ele não ri das falsas pretensões; ele desmerece os valores em si.

Nos EUA o humor corrosivo tem muita corrência, mas não conheço um caso de alguém que o leve até suas últimas conseqüências. Talvez seja impossível. Vejamos South Park e Family Guy. South Park é mais imediatamente corrosivo e ácido; mas por isso mesmo é presa fácil das ideologias contrárias ao status quo. E então ele acaba defendendo a “contra-cultura” convencional de ateísmo, libertinagem, esquerdismo político. Ele tem uma agenda muito clara. Family Guy, que é mais nonsense, no final das contas também tem, e se mostra cada vez mais a serviço dos valores da cultura liberal e secularista americana. Lá é mais difícil o humor puro porque a cultura é dividida: diferentemente do resto do Ocidente, lá existe uma guerra cultural, que mexe fundo com as paixões. É muito difícil ser imparcial. E por uma série de questões intrínsecas ao conservatism, o humor mais ácido, mais sem coração, é quase que monopólio dos liberals. Pelo menos é assim que eu interpreto a situação americana.

Já no Brasil o discurso público e a cultura são unos: o establishment da esquerda moderada domina tudo, com alguma permissão aqui e ali para a esquerda imoderada proferir suas utopias e suas revoltas indignadas, tidas como belos ideais mais inalcançáveis neste mundo decaído. Sendo assim, a revolta contra esse estado de coisas sempre será tido como direitismo, mesmo que não o seja. Ao mesmo tempo, o grosso da população existe em algum ponto intermediário entre o reacionarismo de taxista e de fundo religioso e o fisiologismo do homem natural, que é a quase ausência de valores ou princípios. Por isso é mais fácil encarnar o niilismo desvinculado de qualquer agenda.

Todo mundo aceita fazer humor com aquilo que não considera sagrado. Se algum tipo de humor só te dá raiva, ali está algo que você considera sagrado. Para um católico, o sagrado é antes de tudo algo superior ao homem, mas acaba se estendendo também ao homem, já que este é imagem de Deus. Assim, fazer piada dos vícios humanos é perfeitamente aceitável para um católico; já fazer piada das virtudes humanas, da natureza humana enquanto tal, é muito próximo de uma blasfêmia. Talvez para uma sensibilidade calvinista, enraizada na doutrina da depravação total do homem) a coisa seja diferente: pois daí a natureza humana é justamente o depravado, o sujo. Seja como for, ambos concordariam, por exemplo, que com Jesus Cristo não se brinca; e mesmo a piada mais benevolente e graciosa seria recebida com muita cautela e não mais do que um sorriso desconfortável. Uma piada pra valer seria rechaçada com ódio. Pois Cristo, para o cristão, é o que há de mais sagrado. Muita gente em nossa sociedade gosta de fingir que não considera nada sagrado; que somos mais liberados, mais easy-going, e portanto menos propensos a se escandalizar do que os beatos e carolas de nosso passado. Mas Rafinha Bastos o está a desmentir.

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