domingo, 23 de outubro de 2011

Correções Políticas

Houve um tempo em que ser de esquerda era ser rebelde. Isso porque o negócio da esquerda era revolucionar todas as estruturas, morais, econômicas, sociais, e portanto que se explodam os sentimentos alheios, pois o que eles, revolucionários, fariam, seria mesmo sujo e feio para os padrões corrompidos da burguesia. Nessa época mais inocente, Darcy Ribeiro podia se gabar de ter espancado e estuprado uma jovem; Polanski dormia com menores e ninguém via problema nenhum. Não que toda a esquerda fosse de estupradores; mas seu espírito era transgressor, e por isso mesmo não ligavam muito pros sentimentos alheios, mesmo porque eles representavam códigos de valores condenáveis.

Só que em sua defesa dos excluídos e sua crescente inclusão de mais grupos (as mulheres, os negros, os estrangeiros, os deficientes, os homossexuais e, daqui a pouco, os frangos da Sadia), e a necessidade de sempre inventar novos crimes cometidos contra cada um deles (por exemplo: uma piada de mulher ao volante), a esquerda se auto-impôs o dever de não ofender, pois ofender é oprimir. Assim nasce o politicamente correto: formas de ação e expressão pré-estabelecidas desenhadas para não ofender e não excluir ninguém. E quanto mais se protege, mais sensíveis ficam os ouvidos. Veja o caso dos homossexuais. Antes era bichas (que podia ser dito sem ser ofensa, como nas músicas do Caetano Veloso). Depois, gays ou homossexuais. Depois, comunidade GLS. Depois, GLBT. Em seguida LGBT (é machismo botar os G antes das L). E agora culminamos na expansão LGBTTTs para dar conta de todas as variantes do T (e o "s" um aceno aos simpatizantes esquecidos do velho GLS; em minúscula porque ainda não deram o passo final). Para não excluir e não ofender ninguém, tem que ser assim. Um mundo mais róseo é possível!

A esquerda se sanitizou, se tornou a coisa menos subversiva imaginável; menos subversiva que bingo da terceira idade. Longe estão os sonhos de armas e sangue e o estupro das burguesinhas; agora é a vez dos livros pré-escolares e das longas conferências sobre raça e gênero. Assim, quando em maio o colunista Marcelo Coelho apontava todo sagaz a estratégia da direita em se vestir com a roupagem subversiva de "politicamente incorreto", ele não percebeu o óbvio: não foi nenhum direitista, grupo que nunca primou pelo humor, que teve a ideia. O manto romântico da subversividade e da transgressão foi entregue de mãos beijadas - não, foi empurrado à força - pela própria esquerda, que impôs às mentes, em prol de um mundo mais limpo, um sistema de pensamento com a mesma abertura para o humor do islamismo salafi. É impossível não ser subversivo.

Marcelo Coelho se esconde atrás da acusação de fascismo (que, ao contrário do que ele diz, não é nada politicamente incorreta; pelo contrário, é das acusações mais aceitas e mais usadas pela esquerda para sujar seus adversários; politicamente corretíssima). Mas não é preciso ser fascista para sentir os ridículos da linguagem inclusiva como uma amarra, e portanto explodir para o lado contrário. E mais: o humor feito com a diferença, se mantido dentro de certos padrões de respeitabilidade (mas ainda guardando parte de sua carga ofensiva), é essencial para a convivência. As relações de raça no Brasil eram mais harmônicas quando todo mundo ria do Mussum e seu amor pela cachaça do que hoje quando, pra se referir ao negão do outro lado da sala, se diz com certo embaraço: "Aquele, hã... de óculos e camisa vermelha".

Ninguém admite ser "politicamente correto"; todo mundo, Marcelo Coelho inclusive, foge desse rótulo. Mas abraçam aquilo que ele rotula, que é falar apenas de maneira a não ofender e não excluir ninguém, matando no processo toda naturalidade e todo humor. Toda vez que você diz "pessoas com necessidades especiais" ao invés de "deficientes", que você se choca com a insensibilidade da expressão "um cego guiando outro cego", você está sendo politicamente correto. Sua fala não mais busca representar a realidade tal como você a percebe, comunicando diretamente seu pensamento, e sim preservar as sensibilidades cada vez mais sensíveis de um número cada vez maior de grupos oprimidos e excluídos.

São coisas muito diferentes usar a linguagem para ofender (que é o que parte do "politicamente incorreto" hoje em dia faz; mas não todos, e não os mais importantes, como Luiz Felipe Pondé que é claramente um dos alvos de Marcelo Coelho no texto - aquele "viram como sou trágico?" não está lá à toa) e usar a linguagem normalmente, com seu sal e sua pimenta, sem se preocupar se alguma vaidade ultra-sensível se sentirá ofendida ou excluída. O primeiro caso pode de fato configurar uma atitude imoral, mas pode ser também uma ofensa dentro dos padrões do humor social, que ri dos vícios associados a certos grupos e não os grupos em si. O segundo é a fala humana natural e saudável, a qual o politicamente correto, que só podia ser criação de acadêmicos, visa re-moldar.

As opções são apenas duas: ou os crimes de linguagem e os sentimentos que eles ferem são algo que deve nos preocupar, e daí o politicamente correto faz todo o sentido; ou a preocupação em não ofender os outros em nossa linguagem normal deve ser, como era antes, algo menor; e daí sim podemos rir de quem tenta fazer da linguagem ferramenta da salvação, ou melhor, da inclusão universal. Em suma: se para você o fato da língua portuguesa privilegiar o masculino for um problema, não venha depois dizer que o politicamente correto é invenção engessante e ridícula de norte-americanos.
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