terça-feira, 4 de junho de 2013

O problema do homeschooling é o schooling

Deixemos claro: defendo que os pais tenham pleno direito de educar seus filhos como preferirem; na escola, em casa, ou onde mais for. Dito isso, há uma coisa que me incomoda na abordagem que mais vejo associada ao ensino domiciliar: a ideia de que ensinar em casa é, ou deveria ser, pai e mãe dando aula para os filhos seguindo o currículo da educação escolar.

Sou só eu que vejo algo de esdrúxulo em pais ensinando equações de mecânica dos gases aos filhos na sala de casa? Não é nada estranho se um dos pais é físico. Mas em todos os outros casos... Imagine uma mãe, que é dona de casa, ou advogada, ou poeta, lendo uma cartilha de física de ensino médio da qual ela não lembra nada,  para então repassar o conteúdo ao filho, enquanto seus conhecimentos dos afazeres domésticos, ou do Direito, ou de literatura, lhe são sonegados. É uma enorme perda de oportunidade, um uso péssimo dos recursos dos pais (no caso, de seu tempo e suas mentes), ter que ensinar ao filho algo completamente distante daquilo que lhes interessa e que eles dominam. O ensino domiciliar precisa fazer bom uso dos diferenciais que o domicílio tem a oferecer; e que se dane a padronização do currículo nacional!

Um filho que não vai à escola tem à sua disposição alternativas de que os escolarizados carecem: pode, por exemplo, aprender com a mãe (ou com o pai) ou com os empregados as tarefas domésticas: lavar, cozinhar, planejar um orçamento. Pode acompanhar seus pais em suas profissões, beneficiando-se da possibilidade de aprender e colocar em prática diversas disciplinas. Nada mais natural, por exemplo, que um filho acompanhe um pai mecânico à oficina e o ajude em diversos trabalhos; ou que acompanhe a mãe ao escritório e formate a apresentação de Power-Point para o dia seguinte, ou que levante fontes para uma pesquisa de material; ou atenda o telefone. Poderia até ser remunerado por isso, e ter desde cedo a experiência gratificante de receber por um trabalho ("earn"; verbo que nos faz falta!). Sim - ó meu Deus! -, estou defendendo o trabalho infanto-juvenil; estou ousando supor que o mundo do trabalho e do comércio seja um campo rico de oportunidades, e não um pesadelo opressor do qual devemos manter nossos filhos alheios e ignorantes.

Essas oportunidades de aprendizado são tão ricas quanto as melhores aulas, embora eu imagine que, em um mercado complexo cujo funcionamento depende, em vários âmbitos, de conhecimento teórico, não as substituam de todo. Mas essas aulas deveriam, elas também, fazer uso do conhecimento e habilidades dos pais. Se seu pai é advogado, então que tal aprender, ao invés de química de coloides, o funcionamento do Estado brasileiro, ter uma noção básica de nosso sistema de leis, do Direito, etc.? Se a mãe é economista, que tal trocar um pouco das aulas sobre poesia arcadista por umas de funcionamento do mercado e da importância do sistema de preços? Se o avô é um astrônomo amador, que ensine mais astronomia e menos sobre a dialética campo-cidade, ou sobre o número imaginário, ou sobre as organelas celulares.

O conhecimento humano é vasto demais, e o universo sobre o qual ele versa, mais ainda, para que tudo possa ser coberto, mesmo em seus rudimentos, em qualquer currículo. É ridículo esperar que pais, em casa, deem um currículo que numa escola seria dado por diversos profissionais de diversas áreas. Só depõe contra nosso sistema escolar que, mesmo jogando com as regras do ensino escolarizado, filhos do ensino domiciliar se saiam melhor.

Um raciocínio similar se aplica às próprias escolas. Quem definiu que saber em detalhes os ciclos energéticos das organelas celulares é mais importante do que saber os rudimentos do funcionamento do mercado? Por que é que nem se toca em temas essenciais para a vida no Brasil como legislação brasileira, composição e funcionamento do Estado, ou mesmo noções básicas de Direito? Por que tanta química orgânica e tão pouca astronomia? Ou arquitetura. Latim. Kant. História medieval. Programação. Escultura. Exegese bíblica e corânica. Teologia. Teatro. Física quântica. Tipografia. Psicologia. Um currículo meu seria muito diferente do currículo padrão que encontramos em todas as escolas. "E por que o seu deve ser imposto a todos??" - É exatamente isso que não quero. Que as escolas tenham total liberdade para bolar os conteúdos e o método de ensiná-los, e que os pais escolham aquelas mais adequadas aos filhos!

Há conteúdos que fornecem ferramental teórico, e há conteúdos específicos (claro, há uma dispersão gradual, e não uma fronteira, entre um e outro). Os ferramentais mais fundamentais: linguagem oral e escrita, matemática, pensamento lógico e crítico, devem integrar qualquer educação. Mas quanto aos conteúdos específicos, há uma gama enorme de possibilidades. Na minha opinião, é uma pena que todos os colégios deem espaço tão grande para minúcias das ciências naturais (especialmente para equações químicas e físicas que são apenas decoradas e nada mais), e tão pouco para outras disciplinas tão ou mais importantes.

Posso estar vendo dificuldades inexistentes. As escolas brasileiras talvez já tenham uma boa liberdade, e acabam sendo pressionadas pelos próprios pais a dar os conteúdos cobrados nos vestibulares. Por mim, vestibular se resolve com um bom cursinho, mas talvez nem todos os pais tenham a mesma despreocupação. Fica a pergunta, então: por que os vestibulares exigem exatamente esse currículo (com a adoção generalizada do ENEM, cujo foco é mais ferramental e interdisciplinar - ou me engano? - talvez isso mude)? Seja como for, devemos acolher e celebrar o ensino domiciliar, ainda que não seja nossa opção (não é a minha), assim como total liberdade curricular para as escolas e até mesmo a desescolarização do aprendizado.

Quanto mais liberdade de escolha, mais competição. Quanto mais competição, melhor a relação qualidade/preço que as escolas têm que oferecer para manter seus alunos; e maior o incentivo para se ser criativo e inovador, melhorando sempre. Para os que temem que um pai ou outro bolasse um currículo pirado que minasse a educação do filho (deixando a criança socializar-se com outras - direito humano básico da criança - o risco de um total isolamento cognitivo já cairia bastante), considerem o seguinte: meu colégio, um dos melhores do Brasil, dedicou meses a ensinar a classe, na aula de geografia, a diferença entre mais-valia absoluta e mais-valia relativa. A piração curricular já está aí, sendo ensinada aos seus filhos. E a falta de competição, de diferentes abordagens (não sei se por entrave legal ou por caretice dos pais), garante a permanência de seu reinado.
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