terça-feira, 14 de maio de 2013

Empregada doméstica: herança da escravidão?

Toda a força da defesa da PEC das domésticas (que não será meu assunto aqui) vem de dois fatores. O primeiro é a inconsistência fatal da maior parte de seus opositores: dizem que a CLT, embora uma importante conquista trabalhista para diversas classes, é inaplicável às domésticas. A falha desses está em não ver que toda legislação trabalhista, seja em que caso for, é sempre nociva e ruim, e não foi a responsável pelo aumento da remuneração do trabalho (o que aumenta a remuneração do trabalho é o aumento da produtividade do trabalho, que decorre do aumento do capital físico e humano). A CLT pode ser ainda pior no caso das empregadas, pois o trabalho delas é muito mais fluido, flexível e baseado em confiança pessoal do que o industrial, mas é ruim e indefensável mesmo para os operários no chão da fábrica.

O segundo é uma simples frase: "resquício da escravidão". Debate encerrado.

Quem quer perpetuar algo que herdamos da escravidão é, no fundo, um escravocrata, não é? Se sonham, como apontou o prolixo jurista (desculpem o pleonasmo) Lenio Luiz Streck, com a velha ordem senhoril, da  casa de fazenda, das porcelanas e da toalha de renda, ordem que dependia da escravidão de milhões de negros, como levar a sério seus argumentos?

O problema desse raciocínio, ou melhor, dessa associação de ideias, é que ela é falsa. Não há relação necessária alguma entre serviço doméstico e escravidão. E portanto o opróbrio moral que com justiça paira sobre esta não pode ser estendido àquele. Deixem-me expor o porquê.

Escravidão diz respeito à estrutura formal da relação. É a relação em que um homem é propriedade de outro. Isto é, não pode escolher acerca de sua própria vida; deve obedecer e, se não o fizer, será punido fisicamente. Essa estrutura é compatível com incontáveis configurações acidentais, empíricas. O escravo pode ser o serviçal doméstico de seu senhor. Pode ser um trabalhador anônimo no canavial. Pode ser um professor particular de filosofia (como era Epiteto, um dos expoentes do estoicismo, e escravo). Pode ser uma amante que goza de muitas regalias. Pode ser um capataz cruel, um pau mandado para manter a ordem. Pode ser um operário numa linha de montagem.

Todas essas funções e tipos de relação psicológica podem ser desempenhadas por escravos. E também por pessoas livres, que lá estão por livre e espontânea vontade (dadas as circunstâncias em que se encontram; toda escolha humana se dá em um contexto) e que de lá podem sair. Aliás, o movimento das pernas é um bom indicador de se há ou não há escravidão. Na escravidão, o senhor tem que manter todo um sistema de segurança para impedir que os escravos fujam. No trabalho livre, mesmo em condições que consideramos pobres (uma fábrica na China, por exemplo), os trabalhadores farão de tudo para não perder o emprego.

A relação que os escravos domésticos tinham com seus senhores se assemelha à de empregadas com seus patrões? Sim. Assim como a relação do tutor escravo com seu senhor-pupilo da Antiguidade se assemelha à relação do tutor/professor particular livre com seu aluno pagante. Há diferenças, contudo. O escravo doméstico tinha que tolerar qualquer coisa; a empregada doméstica pode largar - e muitas vezes larga - o trabalho se encontrar condições melhores em outro lugar.

Há diversos contextos em que relações similares à das criadas com patrões emergiram sem escravidão. Na Inglaterra, por exemplo, uma cultura da criadagem surgiu sem que a nação jamais tivesse usado escravos em seu solo. O mesmo provavelmente ocorrerá em todas as sociedades com desigualdades econômicas muito grandes. Os mais pobres querem um emprego que exija pouca qualificação, e os mais ricos querem se livrar do tédio e do fardo dos afazeres domésticos. Os ganhos dessa divisão de tarefas são evidentes para as duas partes.

Com o aumento da produtividade do trabalho ao longo do século XX, o preço do trabalho aumentou muito, e a demanda por ele, em consequência, diminuiu. Além disso, talvez as leis trabalhistas mantenham no desemprego gente que poderia considerar trabalhar como criado doméstico. Seja como for, enquanto durou (na verdade ainda existe, mesmo na Europa, mas só nas casas muito ricas), o trabalho doméstico foi uma boa opção de ascensão econômica para muita gente.

Por termos uma cultura mais pessoalista que a inglesa, a relação de criados domésticos e patrões é ainda mais forte aqui. Conheço não poucos casos de empregadas e babás que acabam virando quase parte da família. Em um caso, virando de fato, sendo madrinha de netos do patrão original, tendo entre os próprios filhos afilhados dele e novos agregados e trabalhadores da família. Há muita beleza nessas relações de décadas, marcadas pela fidelidade e pelo sentido de gratidão de ambas as partes. De uma forma um pouco mais igualitária ela também se reflete nas casas de classe média, que é onde a maioria das empregadas trabalha: alguma amizade, ou ao menos uma convivência informal não raro se desenvolve nessas casas.

Não que isso tenha que ser eternizado. Como já disse, conforme a produtividade do trabalho aumenta, ter uma empregada torna-se cada vez mais caro (coisa que já vem acontecendo em São Paulo há anos; não se acha com facilidade - como se achava nos anos 90 - a retirante nordestina disposta a trabalhar o dia inteiro por um salário baixíssimo). A instituição está fadada a terminar; ela aliás contribui para seu próprio fim, ao melhorar as condições de vida de uma classe. Muitas filhas de empregada não se tornam, elas próprias, empregadas, tendo crescido com muito mais oportunidades que suas mães.

Assim, não há porque temer a acusação de que o serviço doméstico é fruto da escravidão. Não é. E tudo o que há de bom nele, e que em parte havia mesmo durante a escravidão (vide a literatura brasileira e americana sobre as relações dos escravos domésticos com a família), não depende da infraestrutura injusta sobre a qual se erguia então. Como também não dependem a porcelana azul, a casa de fazenda e a toalha de renda.
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