sexta-feira, 7 de dezembro de 2012

Sobre o Surto Moralista que Ameaça nosso Humor

Uma piada pode ser brutalmente ofensiva; pode desancar gente que não o merece; pode afirmar os preconceitos mais nefastos, ser moralmente podre, escrota mesmo. E, ainda assim, ser engraçada.

Moralidade e graça são coisas muito diferentes. Nós, que vivemos em uma sociedade crescentemente moralista, acabamos confundindo as coisas. Nosso moralismo é diferente do moralismo da primeira metade do século passado. Naquela época, o tabu era o sexo; comediantes profissionais contavam uns aos outros, longe do público, as piadas mais sujas como The Aristocrats. Eu não sei o que os humoristas atuais cochicham uns para os outros nos camarins, mas observo como nós, não-humoristas, contamos baixinho, envergonhados e com um milhão de ressalvas piadas sobre raça, estupro ou deficiência. O novo moralismo apareceu muito rápido; no início dos anos 90, tanto aqui como nos EUA, coisas impensáveis para nossa década. Vide a piada mais engraçada do Debi & Loide.



Parte da graça está estupidez, ao mesmo tempo demencial e perversa, do Loide; mas a outra parte está na situação simplesmente patética do menininho cego com seu canarinho morto; pretty bird, pretty bird (e se não fosse para rirmos disso, a cena não voltaria para o menino; ficaria só na conversa do Debi e Loide). Não tenho talento para analisar a graça, mas de alguma maneira ver claramente o estado de indefensibilidade e autoilusão de uma pessoa é engraçado.

Minha principal ferramenta de análise neste post, falha como ela é, é a análise da minha própria subjetividade, e o único teste possível é saber se essa análise "soa" verdadeira aos leitores; isto é, se ela bate com as percepções e análises de cada um. Alternativamente, usarei também a definição sucinta e com alguma base de pesquisa proposta por Peter McGraw: o humor ocorre quando uma mesma situação cumpre dois critérios simultaneamente: 1) é uma situação de violação - isto é, trata-se de algo que viole algum aspecto de como o mundo deveria ser; 2) essa situação é benigna, ou seja, não apresenta uma ameaça ao espectador. Essa definição bate com a minha experiência subjetiva, então parece ser boa; mas ainda resta saber se ela funciona para toda e qualquer instância de humor. A formulação não é muito distante da tese da Ayn Rand sobre o humor: o humor é a negação da relevância ou da importância metafísica de algo feito por meio de uma incongruência ou contradição, isto é, violando a expectativa do ouvinte sobre a realidade.

Tendo esses guias básicos em mente, olho para a reação crescente ao humor brasileiro, que tem longa tradição de não se importar muito para os padrões vigentes de moralidade. Citei acima o Debi & Loide, e para o Brasil poderia citar Os Trapalhões. Digam-me se este quadro seria possível hoje em dia:


Dois negos pobres e malandros enchendo a lata, chega o garçom, preocupado com uma pindura, e os chama de "Engenheiros, bacharéis...". Todo o personagem Mussum brincava com esses traços comuns da percepção social do negro, como aliás também era o caso de Grande Otelo, e dos sambas humorísticos: nega do cabelo duro... Humoristas brancos como Mazzaropi brincavam com a imagem do caipira.

O estupro também é tema antigo no repertório humorístico nacional, incorporado até mesmo em ditado popular: "se o estupro é iminente, relaxa e aproveita". A brincadeira aí é com o suposto desejo devasso de toda mulher.

Mariana Hamellini diz, lá pelos 3:20 min, que a graça em se ver uma pessoa cair na calçada está no fato de haver, ali, uma quebra. Mas ela mesma mina um pouco essa explicação: "você ri dela porque ela não morreu; e porque não é você."

"Quem é filho da puta? Eu? Não, vocês." - 7:25 - Danilo Gentilli falando da piada da Preta Gil, saída fácil pros comediantes.

E quando chega o acadêmico de Humanas, lá vem o desinteresse - Idelber Avelar - 9:10

piadas de preconceito - mais fáceis? Depende do preconceito, depende da obviedade e do nível de consciência que as pessoas têm do estereótipo.

piada de gordo - longa tradição

15:01 - piada que é contra "a autoridade" é melhor?

"toda piada tem um alvo" - Gentilli

piada com homem - a piada do "aperta a teta" era com o homem

22:20 - a piada, fora do contexto de piada ("mulher feia deveria ser estuprada"), se dita como um expressão séria, seria horrível. Mas como piada não é. A piada pega um elemento de uma realidade complexa e se foca nele: a mulher feia que, por ficar privada de sexo por muito tempo, fica desesperada (e aqui não importa a realidade, mas a percepção acerca da realidade. Freira é recalcada e desejosa de sexo? Provavelmente não; mas tem muita piada nesse sentido). E, nesse contexto, o estuprador lhe faz um favor.

23:00 - honestidade: riu com a piada, mas a evitaria para evitar a polêmica ou mesmo por considerá-la imoral.

Cop-out: condenar a piada por não ser boa como humor; mas fica óbvio que o problema do cara não é esse: o problema é o tema e o caráter "antirrevolucionário", "não transformadora" da piada.

28:43 - bela saída. Gentilli sabe ir além e brincar com a coisa.

29:45 - o guarda não é massacrado pela opinião "transformadora" de hoje em dia?? Esse próprio discurso pode ser tão ofensivo quanto os outros.

A indignação vem do quê?

Hábito muito ruim de documentários politizados: colocar respostas logo em seguida à fala daqueles de quem se discorda.

"Não chamar o negro de macaco é decência básica humana" - Idelber, 36:40. nem toda piada é decente.

Justiça traz problemas de limite à liberdade legal, mas não é o problema de base. O problema é a atitude básica da indignação moral constante, que reflete uma mudança no padrão de conduta: o importante não é ser uma pessoa boa, mas ter as opiniões corretas sobre uma série de assuntos. Isso leva, por um lado, ao à patrulha moralista (sobre tudo de si mesmo: "não posso rir disso; estarei traindo a causa; tenho o dever de protestar publicamente") que, por sua vez, leva à mais preguiçosa autossatisfação moral ("estou fazendo a minha parte, sou bom"). Como eu vejo as coisas, todas as lutas e todas as causas. Quanto mais moralista a pessoa, menos capaz de humor ela é; e portanto menos capaz de olhar para os próprios defeitos; para seus reais defeitos, e não para aquilo que pega bem quando se faz piada a respeito (aliás, esse tema rende: como vivemos numa sociedade de raiz cristã, a postura socialmente aceitável ainda é a da humildade: "sou um homem cheio de defeitos" - só que essa ostentação da humildade acaba virando uma mostra de orgulho ainda maior do que a afirmação acrítica da própria perfeição moral). Pega muito bem dizer que a melhor piada é aquela que critica o próprio piadista, mas será que é verdade? Ou é apenas uma resposta confortável para se fugir do desafio do humor? Se o humorista for negro, ele pode/deve contar piada de preto? E não é possível que uma piada sobre si mesmo também seja imoral (ao desancar alguma característica boa do humorista)?
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