quinta-feira, 14 de junho de 2012

Tomás de Aquino: ninguém nunca quer o mal, Agostinho viajou na batatinha


**TRECHO DA MINHA (ASSIM ESPERO) DISSERTAÇÃO DE MESTRADO**

3.4.3.3 Problema: o mal enquanto tal
Do que foi exposto até aqui, fica claro que o mal nunca é uma finalidade direta da ação humana. O argumento, sinteticamente, é esse: nossas inclinações racionais primeiras visam a um bem. Toda ação humana tem um fim dado por alguma inclinação racional primeira. Portanto, toda ação humana visa a um bem. Logo, nenhuma visa ao mal enquanto tal.
Tomás é bastante consistente nesse ponto, repetindo-o ao longo de toda sua obra. “A vontade é o apetite racional. Todo apetite é apenas de algo bom” [1]. Considerando apenas o primeiro princípio prático, já havia-se concluído que todo agente busca o bem considerado formalmente; agora conclui-se que, para além da consideração puramente formal do bem (cuja busca seria compatível com perseguir algo mal em si mesmo, sob a ilusão de que tal coisa má era boa), há sempre um bem concreto que atrai o agente. Ou seja, mesmo no pior dos pecados haverá algum bem que o agente procura, e esse bem é de fato bom para o agente e digno de busca pelo ser humano, embora esteja sendo buscado numa ocasião, ou de maneira, inadequadas.
O mal em si não movimenta a vontade. Ele só pode ocorrer, portanto, “à parte da vontade do agente”, seja de maneira totalmente involuntária (como quando o agente pensa beber mel mas bebe veneno de gato) ou como um efeito colateral previsível mas que não foi o suficiente para desviar o agente do bem que ele buscava com aquela ação específica [2]. Mesmo um ato plenamente autodestrutivo como o suicídio é feito por motivos bons, inteligíveis a qualquer animal racional; Tomás cita a perspectiva de uma vida infeliz, a vergonha do pecado, o medo do estupro e mesmo o medo de que, se não morrer, consentir-se-á a algum pecado (perdendo portanto a vida eterna) [3]. Nenhum desses, é preciso deixar claro, justifica o suicídio aos olhos de Tomás. Eles apenas mostram como mesmo uma ação destrutiva da felicidade do indivíduo é feita em vista de algum princípio prático; e, portanto, em vista de algum componente da mesma felicidade que se destrói no ato. Mesmo nesse caso, o mal não é desejado enquanto tal.

3.4.3.3.1 As peras de Agostinho
Essa posição contrapõe-se a uma forte tradição de pensamento filosófico cristão que chegara até Tomás e com a qual ele frequentemente dialoga: o pensamento de Agostinho, segundo o qual a liberdade da vontade e a corrupção da natureza humana são tais que o homem é capaz de, e de fato busca se não for ajudado pela graça divina, o mal enquanto tal. Embora fuja ao escopo deste trabalho comparar a fundo as diferenças entre o pensamento de Tomás e o de Agostinho (e ainda menos entre este e a tradição agostiniana com a qual Tomás tinha contato), é instrutivo apontar um caso peculiar que sublinha exemplarmente essa diferença.
Na obra de Agostinho, entre as muitas passagens que se dedicam a expor e explorar a maldade do pecado e da condição humana, uma se sobressai na história do pensamento como singularmente eloquente: o relato de um aparente pequeno delito da juventude, o furto de algumas peras junto a amigos, que na verdade ocultou a mais profunda maldade na alma de Agostinho. Suas palavras não poderiam ser mais claras quanto ao que ele desejara:

“Carregamos uma grande quantidade de peras, não para comer, mas para jogá-las aos porcos mal as tendo provado. Isso nos aprouve ainda mais porque era proibido. Assim era meu coração, ó Deus, assim era meu coração – do qual vós vos apiedaste mesmo naquele poço sem fundo. Observe, deixe meu coração confessar a vós o que ele procurava, naquela prodigalidade gratuita, sem nada que me induzisse ao mal que não o próprio mal. Era torpe, e eu o amei. Amei perecer, amei minha própria falta; não aquilo pelo que eu a cometia, mas a falta em si.” [4]

Tomás não tem nenhum comentário às Confissões e, embora citações e referências a Agostinho sejam quase onipresentes em sua obra, raramente se detém sobre ele como seu objeto de estudo. Tampouco há alguma questão ou algum artigo de sua obra que se refira diretamente a essa passagem. Contudo, no De Malo, Tomás se refere a essa passagem. E, condizente com o que foi apresentado sobre seu pensamento até aqui, vê-se forçado a contradizer o texto de Agostinho. Cito a ocorrência integralmente, que se dá em dois momentos no artigo 13 da questão 3, em que se pergunta se é possível a um homem pecar por malícia deliberada.
O primeiro momento em que a passagem de Agostinho ocorre é em um argumento da seção dos argumentos em contrário, que, embora concorde com a posição que Tomás defenderá (a de que é possível pecar por malícia), discorda na hora de definir o que é a malícia.

“Segunda objeção em contrário: Agostinho diz em suas Confissões que quando ele estava roubando frutas, ele amou sua delinquência, isto é, o próprio roubo, e não a fruta em si. Mas amar o próprio mal é pecar por malícia. Portanto, uma pessoa pode pecar por malícia.”

O segundo momento se dá ao fim do artigo, quando Tomás responde a esse argumento, um expediente incomum (o normal é que ele só responda aos argumentos que discordam de sua tese) embora não único:

“Embora os argumentos apresentados na seção cheguem a conclusões verdadeiras, devemos notar, com respeito ao segundo argumento, que quando Agostinho diz que amava sua própria delinquência, e não o fruto que ele roubava, não devemos entender essa afirmação como se a própria delinquência ou a deformidade da falta moral pudessem ser primária e intrinsecamente desejadas. Na verdade, seu desejo primário e intrínseco era ou exibir um comportamento típico a seus pares ou experimentar algo ou fazer algo proibido ou alguma coisa do tipo.” [5]

É uma pena que Tomás não tenha se dedicado mais longamente à passagem das Confissões, pois seus exemplos dos possíveis bens buscados por Agostinho fogem um pouco à listagem normal. Tendo que adequá-los à lista apresentada anteriormente, classificaria os possíveis motivos aventados por Tomás da seguinte maneira: o desejo de impressionar seus pares provavelmente se encaixaria no princípio da amizade ou sociabilidade; o “experimentar algo” (“experientiam habere alicuius”) se encaixa, possivelmente, no princípio prático do conhecimento; a grande incógnita é o “fazer algo proibido”; Tomás pareceria indicar que há um bem intrínseco em se agir de forma autônoma, em afirmar a própria individualidade ou poder. Que o homem seja mais livre que o resto da criação material, e que essa sua autonomia seja um bem metafísico, é afirmado em diversos momentos. Mas a concretização dessa autonomia livre é justamente agir segundo o ordenamento da razão, ou seja, segundo leis, coisa de que as feras são incapazes. Aqui, o bem da autonomia vem justamente de se violar um preceito racional (não roubar, constante do Decálogo), e permanece, portanto, enigmática.
Seja como for, está bem claro que, segundo Tomás, o mal não pode ser desejado enquanto tal; isso vai contra a própria definição do que é o mal humano (aquilo que repele o homem e que, conforme o primeiro princípio, ele busca evitar). Mesmo nos atos mais baixos, há um bem que guia a vontade do agente; ocorre que, naquela instância, a busca daquele bem ignora ou até impede a busca dos demais bens que compõem a felicidade, tornando-se portanto má. O pecado é trocar o bem permanente por um bem transiente. E o pecado por malícia ocorre quando essa troca não advém de uma ignorância ou de uma paixão incontrolável, mas de um “hábito [que] às vezes inclina a vontade, quando o comportamento costumeiro transformou, por assim dizer, a inclinação a tal bem em um hábito ou disposição natural pelo bem transiente, e então a vontade, por seu próprio movimento e independentemente de qualquer emoção, se inclina por si mesma ao bem em questão” [6]. A malícia é antes uma absolutização de um bem parcial do que a busca intrínseca pelo mal; ocorre quando, num ato deliberado da razão, o agente, “para se deleitar no bem desejado [a pessoa] não evita incorrer no mal” [7].


[1] ST I-II, q. 8, a. 1.
[2] SCG III-I, 4.
[3] ST II-II, q. 64, a. 5, ad 3.
[4] Agostinho. Confissões, III, 4.
[5] De Malo, q. 3, a. 13, rsed 1-2.
[6] De Malo, q. 3, a. 13.
[7] Ibid., ad 1.
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