terça-feira, 31 de julho de 2012

O dilema de Abraão visto de dentro

De todas as passagens bíblicas, uma das que mais apresenta dificuldades é a ordem de Deus para que Abraão sacrifique seu filho. Abraão, perfeitamente obediente a Deus, leva Isaac ao monte, levanta sua faca e, na hora H, um anjo o impede e explica que Deus estava apenas testando sua fé. O fim da história é perfeito e fácil: Deus não queria o sacrifício humano, e o episódio todo teve um papel de teste (teste para o próprio Abraão conhecer a si mesmo e para provar sua fé aos demais homens; não, obviamente, para Deus, que tudo sabe) e também pedagógico.

Ocorre que, entre a ordem de Deus e o aparecimento do anjo, houve um período em que Abraão não sabia que se tratava de um teste, e mesmo assim o acatou. E essa decisão de Abraão é louvada em todas as correntes monoteístas que dele derivam. A disposição de matar o próprio filho, para obedecer a uma ordem divina, é vista como virtuosa. Deus, portanto, não quereria o sacrifício humano, mas quereria fiéis dispostos a assassinar um inocente se Ele assim o mandasse?

Outro problema é de ordem epistemológica. Suponha que você, pai de família temente a Deus, ouça uma voz que alega proveniência divina (se é o próprio Deus ou um anjo que fala por ele, não importa). A princípio, pode se tratar de três coisas: você pode estar alucinando; pode ser que a voz venha de um ente espiritual e seja de fato divina; e pode ser que a voz seja de um ente espiritual maléfico, demoníaco.

Como saber a proveniência da voz? Um critério é: se a voz ou a aparição pedir ou demandar algo que seja imoral, então ela não é de Deus (este critério é um dos utilizados pela Igreja católica para avaliar revelações privadas). Ora, pedir para se assassinar uma criança é bastante imoral. Portanto, pelos elementos que Abraão tinha para julgar sua situação, ele tinha melhores motivos para julgar que se tratava de uma alucinação ou de um demônio do que acreditar que o pedido vinha de Deus. A decisão correta seria rejeitar a ordem dada.

Ele seguiu a ordem, levou o filho ao monte, chegou a levantar a faca e, felizmente, a ordem viera mesmo de Deus, ele foi impedido e ponto final. Mas e se fosse um demônio ou uma alucinação? Então ele teria conseguido matar o próprio filho; ficaria ali, ensaguentado, assistindo o cadáver pegar fogo, e esse seria o fim. O homem que julgava seguir a vontade de Deus não passaria de um esquizofrênico que acabara de cometer uma barbaridade indizível, ou de um agente de Satanás num ritual horripilante.

Como salvar, ou justificar, esse que é visto como o grande ato de virtude de Abraão? Notem que o fato da ordem ter, de fato, vindo de Deus, não resolve o problema. Pois de seu ponto de vista, Abraão não tinha como saber que ela vinha de Deus. Muito pelo contrário, os elementos de que ele dispunha apontavam mais para o demônio do que para Deus. Se um homem recebesse o mesmo chamado de Abraão hoje em dia e o acatasse, seu ato seria considerado, pela Igreja e por qualquer pessoa com um mínimo de sanidade, um pecado.

Tampouco poderemos justificar o ato de Abraão apelando para alguma convicção interna de que o chamado vinha de Deus. Pois a convicção interna, seja ela qual for (seja um sentimento profundo de paz, ou uma certeza inquebrantável, ou mesmo visões esplendorosas), é apenas uma variação da experiência subjetiva humana, podendo ser produzida igualmente por Deus, pelo demônio ou por alguma alucinação.

Como, então, salvaremos o ato de nosso pai na Fé?

Parece-me que o único modo de fazê-lo é reconhecendo que Abraão - e sua tribo de pastores nômades - era uma homem tão rude e tão selvagem que, subjetivamente, não era culpável por não julgar sua situação de acordo com os critérios mais racionais e propriamente humanos pelos quais qualquer homem minimamente civilizado tem a obrigação de julgar. Do ponto de vista dele, que era um ponto de vista objetivamente muito precário e indesejável, a questão moral de respeito à pessoa humana e os problemas epistemológicos da revelação privada simplesmente não se colocavam. Tratava-se apenas da escolha de entregar ou não tudo a Deus. Que a força maior (que lhe dera um filho no passado) talvez não fosse Deus nem lhe passava pela cabeça; era uma força maior à qual ele estava submetido. Que um filho, ou seja, outro ser humano, não deva ser tratado como uma propriedade da qual o dono tem todo o direito de "abrir mão", como se fosse um televisor ou um terreno, também não lhe ocorria. O filho era seu bem mais precioso, e fora dado por Deus. Ele tinha a fé necessária para abrir mão até desse bem pelo amor/obediência a Deus? Estava disposto a entregar o bem recebido para ficar com a fonte do bem (sim, sim, aqui já é uma interpretação abstrata e filosófica que também não devia passar por sua cabeça)? Seu amor a Deus tinha transcendido o amor pelo benefício que recebera de Deus?

Nesse sentido, a ação de Abraão foi realmente virtuosa, mas só porque seu nível mental (cultural; no que diz respeito a sua natureza, Abraão era provavelmente um homem muito inteligente) era tão baixo que ele não tinha como considerar os elementos que faziam com que sua ação fosse, objetivamente falando, imoral. Ele não tinha capacidade para o bem real neste caso; sua ação refletia o melhor de que ele era capaz dadas as circunstâncias. E sendo Abraão moralmente inocente - e mais, virtuoso - ao aceitar a ordem de Deus, o fato de Deus ter emitido tal ordem não viola a bondade divina (que seria violada se Deus comandasse um pecado).

Assim, conclui-se que virtude e vício dependem das circunstâncias em que cada um se encontra; o que é vicioso em um caso pode ser virtuoso em outro, sem que, no entanto, caia-se no relativismo. A ordem objetiva da moral é mantida, reconhecendo-se apenas que a capacidade humana para se adequar a ela pode variar.

O episódio também mostra, a meu ver, como Deus faz uso inclusive das imperfeições humanas para levar adiante sua obra redentora. Fosse Abraão homem civilizado, a história não poderia ter sido assim; sua virtude teria sido pecado [edição: na verdade, acho mais exato colocá-lo de outra maneira: "a escolha que, no caso de Abraão, foi virtuosa, para um homem de hoje em dia seria pecaminosa ou, no mínimo, errônea"].

domingo, 29 de julho de 2012

Confessionário no Parque Buenos Aires


I

Porque só tenho vinte e quatro anos,
boa parte deles desvivida às cegas,
impressiona-me este parque, os pombos
de andar nobre e pescoços cintilantes

e também a aparência de felizes
dessas famílias, cachorros, crianças.
Vim aqui hoje para andar um pouco,
sabendo bem que ao invés de exercícios

eu ficaria sentada num banco,
longe do sol. Mas vim sem maquiagem,
vim com os cachos molhados, sem vaidade,
e não sei bem o que isso justifica.

Basta dizer que empreendi tal viagem
dos confins do meu quarto à rua aberta
(e antes do meio-dia, ó que coragem!)
para buscar no mundo o que a desdita

(a doença interior) me intercepta.
É preciso por vezes ver a vida
limpa de lágrimas, de abstrações,
chocar os olhos com as coisas ridículas

mas que são afinal a solução
para os problemas que a mente inexplica.
Porque só tenho vinte e quatro anos,
medo de quase tudo e muita fome,

andar a esmo às vezes é bendita
resolução, como a que tive hoje.
Trouxe comigo “O Mundo Como Ideia”,
li de passagem uns dois ou três poemas,

mas senti logo água vazar dos olhos,
como se com saudades do poeta
que eu nunca conheci, que eu nem vi morto
como o viu meu amigo Diego Ivo.

Se bem que, se tivesse tido a chance
de ir ao “escandaloso funeral”,
também não tinha ido, pois me espantam
as coisas findas, esse afã final

que por algum motivo ataca a tudo.
Talvez para entendê-lo e suportá-lo
me falte a força ainda, o ter vivido.
Porque só tenho vinte e quatro anos

e nunca tive o amigo Tolentino.


II

Nunca te vi, Bruno, sequer de longe,
numa palestra, ou conferência, ou festa,
nunca te vi como os que viram e contam
hoje da tua fala franca, aberta.

E, incrível que pareça, não é tanto
o poeta que tu foste o que eu queria
ter tido por perto uma vez que fosse,
antes o homem, o ser humano, o guia,

um avô talvez, um amigo, um complemento
apaziguante das ideias fixas
que me preenchem horas de sofrimento.
Digo que um complemento porque fito

esses poemas teus que em mim refletem
(no mal em mim), mas também têm um alento,
coisa de quem viveu e tomou tento
da vida mesma, não somente em versos,

vida domada à força pela crina,
e emendando as réstias de mistério
que escapam por quaisquer vagas cortinas
compôs cristais inteiros. São remédios,

são como antídotos aos tempos tísicos
em que vivemos novo mal-do-século,
porém sem já saber como imprimi-lo
em poesia que valha um milésimo

de quanto há condensado nos teus versos.
(Por onde anda a luz de Tolentino?
Resta nos livros, mas será só isso?
Se eu sei senti-lo, não será que vive?)


III


Por fim, no epílogo ao confessionário
que armei entre árvores, gentes e pombos,
eis um adendo ainda necessário:
esse poema meu não é pilhérico,

mas como a rima ele mesmo escolheu,
dedico esses versos finais ao Érico,
poeta grande que ao Bruno alegrou
com a esperança de um viço tão jovem.

Pensemos nos poetas do futuro
(seguramente assim Bruno pensou)
quando ao redor demorarem a dar frutos
as plantas ressequidas que ora soam.

Eu mesma não sei se serei poeta,
só sei dessa alegria que me inventa
mil e um motivos para refazer
e desfazer até engendrar num verso

a coisa implícita que me impregnou.
Vai que lá em frente essa coisa mesmíssima
atenta um outro, coitado, que, só,
será tão só quanto eu nesta manhã

antes do parque, da herança do Bruno.
Havemos que alentar nosso futuro;
se boca pouca foi o que nos sobrou,
façamos dela a pequenina herança,

quem sabe dela não nasça outro Bruno
(já vimos que em 2000 escreve um Érico!),
e ainda de quebra vai-se-nos a angústia
ludibriada n’alguns tortos versos.

segunda-feira, 23 de julho de 2012

Filipe Faria, o Naturalismo Ético e o Conservadorismo Biológico

Filipe Faria me respondeu, estabelecendo este diálogo entre um liberal brasileiro e um conservador português. Nada a ver com a discussão, mas sinto falta de uma maior integração na internet de língua portuguesa. Um brasileiro circula por sites - e se comunica basicamente com - brasileiros. Imagino que uma situação similar se dê entre os portugueses (e as demais nações que falam o português, por onde andam? Conto nos dedos os acessos vindos da Angola para nós). Quem sabe esta conversa seja o sintoma de uma melhora na integração entre os lusófonos, que um dia será igual à da internet de língua inglesa.

Voltando ao debate: parece-me que Faria sequer tocou no ponto central, que é a impossibilidade de derivar qualquer juízo normativo de afirmações positivas sobre os costumes ou a biologia humanos. O exemplo emblemático da minha tese, trazido pelo próprio Faria, é o do nepotismo.

Como ele diz, os homens são naturalmente nepotistas. Para esta discussão, definamos o nepotismo como uma preferência pelos próprios familiares. Ora, tal preferência é, em alguns casos, perfeitamente aceitável, virtuosa e quase obrigatória (imagine um pai que seja completamente neutro e imparcial entre levar ao cinema o próprio filho ou qualquer outra criança do planeta). Em outros casos, contudo, o nepotismo é uma grave falha moral, como no caso de um político que dá cargos a parentes. Em ambos esses casos, o nepotismo é natural, fruto de uma tendência arraigada na natureza humana, nos genes. O que faz dele bom em um caso e mau no outro não pode ser, portanto, seu caráter natural, que ambos os casos partilham. Logo, não é o fato de algo ser natural que determina se um ato é bom.

Em casos como o nepotismo na administração pública, o virtuoso é exatamente contrariar a natureza biológica. De fato, os países mais civilizados e desenvolvidos do mundo são aqueles que conseguiram, entre outras coisas, varrer do costume nacional esse nepotismo político. A cultura política desses povos (em que corruptelas comuns na vida política brasileira são simplesmente impensáveis) reflete um longo processo de aprimoramento moral, que tem como um de seus pressupostos a convicção de que é possível elevar-se para além da mera tendência biológica; convicção comprovada pela prática.


Enfim, o desafio para o naturalismo ético continua de pé, e sinceramente é improvável que Filipe Faria ou qualquer outro consiga vencê-lo (não estou contando vantagem; afinal, quem apontou a falácia naturalista não fui eu!). 


Ele se prendeu demais a uma opinião de passagem minha, referindo-me com ceticismo a supostas diferenças de inteligência e capacidade entre as raças humanas, como se isso me tornasse partidário do mais ingênuo igualitarismo, que precisa acreditar dogmaticamente que todos os indivíduos são iguais em tudo. Nada mais longe da verdade; não tenho nenhuma dúvida de que as capacidades individuais variam; e apesar de não crer que existam provas sobre diferenças entre as raças, também não nego a possibilidade. O que penso é que essas diferenças de capacidade são apenas parte da história. Como são raríssimos os que atingem plenamente seu potencial, é perfeitamente possível que pessoas com capacidade inferior atinjam melhores resultados do que outras com maior capacidade. Além disso, o que constitui capacidade menor ou até entrave em um campo da ação pode ser benéfico em outro.


Mudemos um pouco de problema. Faria aproveitou seu texto para comentar o que, na opinião dele, está errado com esse monstro tão querido a que chamamos "direita", e em cujo altar eu também, afinal, sacrifico minhas pombinhas. Detesto o termo, assim como "esquerda", por mascarar sob si um conjunto muito heterogêneo de crenças e valores sem unidade real. Além disso, a rivalidade histórica entre os dois lados cria uma rejeição sentimental automática de um para o outro, o que ocasiona muitas discussões e inimizades espúrias. Todavia, como não dá para travar uma guerra constante contra o uso contemporâneo das palavras (é preciso focar os esforços!), reconheço que minhas posições são classificadas no grupo da direita. Vejamos, então, o diagnóstico que Faria faz do fracasso político desse grupo.
Há igualmente algo de relevante a dizer do ponto de vista político. Joel Pinheiro diz que já participou brevemente no “O Insurgente”, pelo que é razoável especular que não se considera de esquerda. Contudo, se fosse de esquerda, o seu discurso tinha sido exactamente igual. Mesmo a parte onde se opõe à engenharia social seria corroborada pela esquerda (que nunca define o que faz como “engenharia social”).
Isto explica como a direita foi totalmente aniquilada pelo pensamento de esquerda (nomeadamente da new left). A vitória do pensamento igualitário de esquerda foi tão pronunciado que mesmo a direita não consegue fugir desse paradigma. Sem surpresas, por ter de jogar dentro das regras que a esquerda definiu e impôs, por ter de argumentar dentro de uma moldura (framework) igualitária, a direita está sempre a perder campo político porque não tem a força da coerência e persuasão; e perde de tal forma que se transforma em esquerda; tal como é possível de aferir pelo texto do Joel Pinheiro.
Não fica totalmente claro o que Faria quer dizer com "igualitarismo". Se for a tese de que todos os indivíduos são estritamente iguais em suas capacidades, não a defendo (nem o fiz em meu texto anterior), e nem, parece-me, a direita em geral. Agora, se por "igualitarismo" ele se refere à proposta de que os homens sejam todos iguais em seus direitos perante uns aos outros, e que sejam tratados e respeitados pelo ordenamento jurídico segundo sua igualdade fundamental, então sua rejeição não é à "esquerda", mas à razão humana enquanto tal.

O que falta à direita não é uma rendição automática a qualquer vício que calhe de ser natural ou comum a um povo, e muito menos aos tribalismos e ao domínio dos superiores sobre inferiores, como se fosse tudo inevitável. Isso é o que sobra; isso é o que tem matado toda oposição aos projetos de esquerda, sejam eles comunistas, socialistas ou intervencionistas. A que me refiro? À falta de um ideal.

Não se pode substituir algo por nada. A esquerda pode estar completamente equivocada, e seu pretenso ideal ser algo detestável (quando se entende o que ele significa na prática), mas ao menos ela tem um. A direita conservadora carece até mesmo disso. Ela sabe do que ela não gosta: do socialismo. Mas também não tem nenhuma aspiração a oferecer. Por isso mesmo é, verdadeiramente, reacionária; ou seja, funciona em reação a mudanças com um objetivo claro (e mascara sua falta de propostas chamando a seus adversários de utópicos, idealistas, teóricos, partidários da razão abstrata, etc.), sem propor nada. "Nossos antepassados faziam assim; nossa tradição ordena que seja assim; nossos genes determinam que seja assim. Paremos de mirar um céu inatingível; baixemos nossa visão a nossos próprios pés. Enquanto ficarmos parados, continuaremos vivos."

Existem diversas formas de conservadorismo. O puramente cultural e o religioso têm seus aspectos negativos (embora eu critique a ambos, eles ao menos visam preservar coisas boas, ainda que sem o espírito animador que as faz boas e que nos faz aderir ao bem), mas o conservadorismo biológico é o pior de todos. Seu olhar nostálgico não se volta para a Idade Média ou para o século XIX, e sim para o tribalismo da Idade das Trevas ou, ainda, para o mundo pré-cristão (qual foi o impacto político do cristianismo, afinal, senão a elevação de todos os indivíduos humanos à mesma igualdade fundamental, acima de diferenças culturais e biológicas?). O que dizer de um ideário que lamenta a instituição do Estado imparcial e impessoal, do império da lei sobre o capricho do soberano? O que ele nos ofereceria como alternativa, dado seu louvor (ou, ao menos, derrotismo) ao nepotismo, ao tribalismo e às demais tendências espontâneas da biologia humana? Onde podemos observar esses "ideais" de forma mais pura, menos poluídos por influências igualitárias ou de esquerda como a filosofia, o cristianismo ou o pensamento político ocidental de S. Tomás para frente? Creio que um bom mostruário são os hutus e tutsis.

Para se contrapor a esse tipo de conservadorismo biológico, que acaba defendendo o tribalismo e quaisquer relações de conflito ou violência existentes, não é preciso ser socialista, de esquerda, e nem defender a intervenção estatal na vida humana; basta crer que a razão humana, e não os instintos, deve ser o guia último de nossas vidas.

A direita, pelo que quero dizer a defesa do capitalismo ou livre mercado, ao contrário da esquerda (que tem abandonado suas velhas bandeiras por percebê-las impraticáveis), tem o embasamento teórico coerente necessário para defender seus ideais. Os valores da criatividade humana, da benevolência e da iniciativa e mérito individuais podem ser concretizados e vividos no mundo real. Eles dependem, entre outras coisas, do reconhecimento dos direitos individuais inalienáveis e iguais a todos, que a tradição ocidental, a única verdadeiramente anti-conservadora, foi capaz de instituir.

sexta-feira, 20 de julho de 2012

O Idioma Metafísico


I.

Chegará o dia em que o brasileiro, por um prodígio de expressividade, será capaz de referir-se da maneira mais abstrata, inespecífica e categórica possível a todo e qualquer objeto – concreto ou não, real ou irreal – a que porventura enderece sua atenção. O brasileiro, sobretudo o de classe média, em seu zelo ontologicamente democrático, só quer saber dessa “coisa” aí, de fazer aquele “negócio” ali e de “resolver uma bronca” alhures. Que a “coisa” possa ser uma chave de fenda, que o “negócio” a ser feito possa ser o conserto de um móvel, que a “bronca” a ser resolvida possa ser a necessidade de criar meios pelos quais obter o dinheiro com que comprar, digamos, móveis e chaves de fenda – são fatos, esses, concretos e específicos demais para que o brasileiro, com sua língua parodicamente metafísica, que só lida com a realidade última (aquela é em que tudo é “ser”, “coisa” ou “negócio” – ou jabuticaba, vá saber), com eles se preocupe e lhes conceda um lugar tímido que seja em seu idioma corrente.

Desde que o brasileiro tido por bem educado habituou-se a uma fala inteiramente desarticulada, na qual orações subordinadas rareiam, na qual estruturas sindéticas reiterativas (“...e...e...e...”) assumem a primazia na sustentação de uma coesão lógica precária, na qual os tempos verbais já não obedecem ao tempo da oração mas à intenção emotiva do sujeito falante, desde então algo de muito grave se anunciava. Pois, entre os dados mais menosprezados pela lingüística, está o fato, testemunhado por estudiosos de línguas antigas, de que palavras jamais surgem isoladamente – com o que cada uma desintegra-se quando o “sistema” rui. Ao hábito do desleixo sintático se segue o hábito da penúria semântica.

O homem, onde quer que fale, primeiro se preocupa em dizer “Louvado seja Deus!” ou “Bendita seja esta terra!” antes de definir, como num dicionário mental, o significado isolado de “Deus”, “terra”, “ser” etc. Isso, para não falar dos “sincategoremas”, os termos gramaticais sem referentes concretos e diretos na realidade (preposições, por exemplo). Contra as distinções pedagógicas das gramáticas, historicamente nunca há – ou só de raro em raro, e em pequena escala – deslocamento entre o eixo do desenvolvimento sintático da língua e o eixo de seu desenvolvimento morfo-semântico. O alto nível de abstração ganho com a introdução de artigos no latim medieval, condição lingüística remota da emergência da escolástica – opinião de Karl Vossler, não minha, que jamais perceberia essas coisas –, é exemplo clássico de como uma grande mudança estrutural do idioma se fez acompanhar de uma maior objetividade dos nomes: pois que, ao mesmo tempo, os substantivos, quase que se reduzindo aos de caso acusativo, passavam a gozar de maior precisão analítica e rigor em sua disposição nas orações, elementos mais propícios a padronizações técnicas; como, de fato, ocorreu na universidade medieval. Desnecessário dizer que hoje é tarefa banal distinguir “um objeto” de “o objeto”, mas pensem no ganho tremendo que isso (não só isso, claro) representou para a disseminação da filosofia através de textos há cerca de mil anos.


II.

Digo isso apenas para lembrar que a barbárie de nosso idioma não nos deixa impunes. Vivemos a época do emprego de um idioma parodicamente metafísico – uma espécie de esperanto semi-animal – por um povo abertamente dinheirista e carreirista. Mas não só isso. Ainda não a encontrei, mas acredito haja uma conexão sutil, até mais ou menos datável na história, por mais distantes que possam parecer, entre a língua da patuléia, mesmo da patuléia mais bem posicionada na sociedade, e a língua em uso entre a nossa intelectualidade atual, se assim podemos chamá-la. Não, contudo, apenas aquela intelectualidade entre muros de universidade, obtusamente esquerdista ou o que seja, mas também entre a turma mais jovem, e de referências outras, que em breve começará a ocupar seu lugar. Mas exemplifico. Se há um princípio estilístico básico e universalmente reconhecido, pois já diz respeito até a necessidades gnoseológicas elementares à operação de qualquer distinção, é o princípio de que não se deve trocar um vocábulo preciso por outro mais impreciso (quando se o faz, é porque o poder conotativo do vocábulo mais geral guarda maior precisão do ponto de vista da intenção do autor). Se a “camélia” de Castro Alves fosse não a “camélia pálida”, mas tão-somente uma “muito alva”, é evidente que a sua “formosa mulher”, aquela que “banharam de luz as alvoradas”, não seria tão formosa assim...

Pois bem: a consciência desse princípio elementar anda mais baixa que nunca em nossa “cultura” – à exceção de uns poucos bons poetas – e no “debate público” brasileiro. Tomei para ler, dias atrás, um estudo de história e filosofia publicado há pouco*. O autor é capaz, por exemplo, de, ao pretender tratar de determinados conceitos de outros autores, dizer que irá “elaborá-los”, com o que atravessa inadvertidamente todo o campo semântico que vai de “abordar” a “elaborar” – quase que a distância entre pegar o bonde andando e pô-lo para andar. Uma tal falha nesse texto – de cujo tipo há, nele, incontáveis – passa, aliás, quase que às escondidas quando comparada a outros modismos já bem disseminados no Brasil e ali presentes. Outro exemplo: foge-se da mesóclise e do bom uso da próclise como o diabo da cruz. Deus do céu, mesóclise, para os que não a amam, há sempre como evitá-la optando por construções alternativas; o mesmo para a ênclise inconveniente. Não é, contudo, o caso aqui. O autor se permite iniciar orações com sinistros e malsonantes “Deveria-se ir à raiz das coisas” e “abordaria-se dois pólos” ou, ainda, escrever coisas como “em que tem-se” e um inexplicável “se converjam”.

Quando inadequações como essas – ou erros brutos – chegam a textos de conteúdo filosófico, é porque todo bom senso musical da língua já foi pras picas. Ora, escrevemos “fazê-lo-ia” e não “fazeria-o” pelo mesmo motivo pelo qual, sei lá, no português quinhentista deixamos de escrever “mandam-lo” para escrever “mandam-no”: são fenômenos naturais de harmonização sonora do idioma – às vezes até de fisiologia da elocução –, e não caprichos. O problema mais hediondo está, aliás, no vernáculo acadêmico. Nesse sentido, o livro recém-publicado do sociólogo Luís de Gusmão, O fetichismo do conceito – Limites do conhecimento teórico na investigação social (Topbooks, 2012), volume que tem tudo para ser a zebra editorial do ano (quando foi que saiu o último livro de ciências sociais realmente importante no Brasil?), cumpre papel saneador. Embora aspecto marginal seu – mas que conta com um capítulo brilhante a respeito: “Um elogio do conhecimento de senso comum” –, o livro traz uma crítica técnica e precisa, sustentada em exemplos concretos, da construção de jargões universitários como muleta que se usa para dar ares científicos à pesquisa social (Bourdieu, numa expressão cheia de graça, é descrito como “consultor epistemológico de investigadores sociais em crise de identidade”). Muleta essa que não cura o coxo, mas o adoenta. O inferno, aí, é o “fetichismo do conceito” aliado ao semi-analfabetismo. É o que qualquer pessoa que tenha freqüentado uma universidade brasileira conhece bem.


III.

Entre a língua rastaqüera das chamadas “classes falantes” e o hermetismo oco do texto universitário (claro: guardadas as exceções), há o lugar nenhum, culturalmente condicionante dos dois problemas anteriores, dessa coisa amorfa, desse lixão imaginativo que temos a benevolência de chamar de literatura brasileira contemporânea, esse império da narrativa subjetiva em primeira pessoa no qual não assoma com nitidez voz ou pessoa alguma. É difícil precisar quando a “coisa” começou a degringolar, mas suspeito que foi quando se começou a levar a sério livros como os de João Gilberto Noll, cujo primeiro, de 1980, foi de pronto laureado com um Prêmio Jabuti. Mesmo Raduan Nassar já era presságio de pouco auspício, e não tardaria que viéssemos dos “transgressores da geração 90” a estes “20 melhores jovens autores brasileiros”. Assim, pouco a pouco, o elogio do vago, do incerto; o prazer no tão-só pretensamente imaginativo; o gosto pela elisão lógica, pelas construções frasais taquigráficas, de pontuação aborrecidamente abundante e orações nanicas; a preferência por narrativas passadas num cenário urbano abstrato, inverossímil e fraco mesmo quando localizado geograficamente, porque feito de palavras sem substância; assim, pouco a pouco, foi-se criando o ambiente cultural em que a palavra perde toda sua carga de objetividade, a ponto tal que entram em circulação termos absurdos e cuja absurdidade poucos se dão ao trabalho de notar – por exemplo, “homofobia”, que até etimologicamente é sem pé nem cabeça (palavras como "xenofobia" têm radical tirado a línguas clássicas, mas "homo", aqui, é uma abreviação de homossexual...).

É talvez o caso de lembrar a constatação de Ângelo Monteiro: “Não queremos a salvação e queremos nos salvar”, verdade também constatável em outro nível, o dos que querem distinguir a ousia aristotélica do ens tomista, mas não querem antes saber distinguir um complemento nominal de um adjunto adnominal. Ângelo Monteiro, em seu manifesto fabular contra a “lavação da burra” nacional, chega quase a dizer que a "transcendência" do brasileiro consiste em sua completa intranscendência – e uma intranscendência lingüística, eu acrescentaria, pela qual trocamos o mundo real por um idioma burlescamente metafísico, no qual tudo, no fim das contas, cabe em duas ou três palavras, em duas ou três estruturas frasais. No qual tudo, enfim, é misteriosamente “a Coisa”.

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* O livro em questão é Crise e Utopia: o dilema de Thomas More (Vide, 2012), de Martim Vasques da Cunha. Cito-o aqui, em nota, e não no curso do texto, para prevenir qualquer impressão de que eu o esteja desmerecendo apenas com base em comentários de teor gramatical. Com toda evidência, não é o livro, em si, que me interessa aqui.

segunda-feira, 16 de julho de 2012

Medindo a Felicidade

Há pouco mais de uma semana saiu um artigo no The New York Times (“Conservatives are Happier than Liberals“) que tem dado o que falar. Escrito por Arthur C. Brooks, presidente do American Enterprise Institute, o artigo não deixa dúvidas de que fala de um ponto de vista “conservador”, “de direita”, ou como preferirem. Ainda assim, tenta dar algum tipo de voz ao outro lado. Ele levanta, entre as possíveis causas dos conservadores serem mais felizes, a explicação, dada por pesquisadores à esquerda, de que os conservadores se preocupam menos com a infelicidade alheia e com as injustiças que assolam o mundo. Brooks combate essa interpretação, mas cita-a, deixando claro que sua leitura não é a única existente.
É sintomático de nossa grande mídia que, na tradução do artigo para o Estado de S. Paulo (“Conservadores são mais felizes”) esteja estampada, no topo da página, a chamada: “Uma razão: diferentemente dos liberais, eles não se preocupam com a desgraça alheia e ignoram a injustiça”. Ou seja, o que aparecia como uma opinião da esquerda que o autor citava para combater, na versão brasileira aparece como uma verdade objetiva, neutra, emitida pela realidade enquanto tal. E como a chamada é tudo que muitos dos leitores lerão deste artigo, essa é a mensagem final que a versão brasileira passa: “conservadores, felizes porque alienados”.
Mas o que me interessa não são as falhas da mídia nacional, e nem a tese de Arthur Brooks enquanto tal (a de que os conservadores sejam mais felizes), mas a premissa da qual ela e tantos outros estudos similares dependem: a de que a informação revelada pelas pesquisas de felicidade é confiável e útil.
Essas pesquisas (um exemplo citado por Brooks é esta) baseiam-se no self-report, ou seja, em respostas que entrevistados dão acerca de sua própria felicidade. Deixando de lado a possibilidade de definições radicalmente diferentes do termo “happy” ou “feliz” circularem por aí (e talvez não devêssemos deixá-la de lado assim tão facilmente…), o que a pesquisa está perguntando aos entrevistados é como eles avaliam o próprio bem-estar: se estão/são alegres, otimistas, de bem com a vida, ou tristes, desesperançosos, etc. É uma pergunta que visa conhecer algo do que se passa dentro da pessoa; cuja resposta revela, portanto, um dado subjetivo de quem responde.
O bem-estar subjetivo pode advir de uma série de fatores, nem todos eles bons ou válidos em uma consideração objetiva. Um homem que viva plenamente iludido pode estar plenamente contente em sua ilusão. Um seguidor de algum culto trambiqueiro pode sentir-se feliz e seguro com a ideia de que ele é um iluminado, embora não o seja. Esse tipo de satisfação, parece-me óbvio, embora seja subjetivamente real (o indivíduo está, de fato, feliz), não é desejável e muito menos invejável.
Se a felicidade advinda de diferentes variáveis será usada como critério para argumentos sobre a superioridade dessa ou daquela crença e estilo de vida, ou, ainda mais, para políticas públicas (e Arthur Brooks é defensor ativo de que pesquisas de felicidade tenham impacto político; aliás, o FIB, felicidade interna bruta, tem recebido atenção crescente de sociólogos e políticos), a mera opinião pessoal de cada um acerca de seu bem-estar subjetivo não é lá muito relevante.
Essa observação já deveria dar um choque de humildade nas pretensões que animam artigos como o de Brooks. Afinal, quando se escreve um artigo dizendo que certo grupo é mais feliz (dessa vez foram os conservadores; outras vezes são os solteiros, os que não têm filhos, os pobres, os ricos, os butaneses, etc.), há uma implicação implícita muito clara: eles têm algo a ensinar ao resto do mundo sobre como viver; encarnam algum tipo de ideal a ser emulado. Não é o caso. A plena felicidade (entendida como bem-estar subjetivo ao longo do tempo) é compatível com as situações objetivas menos desejáveis.
Ainda assim, se as perguntas sobre a própria felicidade revelassem diretamente o bem-estar subjetivo das pessoas, elas ao menos nos dariam uma coisa: a possibilidade de comparar as crenças (e outras variáveis) pela capacidade que elas têm de gerar bem-estar subjetivo nos homens. Mesmo isso, contudo, é difícil, por dois motivos que decorrem de uma mesma causa: não temos a observação direta do bem-estar alheio; podemos apenas confiar no que a pessoa responde.
Quais os dois problemas disso? O primeiro é que falar do próprio bem-estar subjetivo é sempre fazer uma comparação; não há uma medida absoluta, em kelvins ou gramas, de bem-estar. Cada indivíduo tem para si algum patamar que chama de “feliz”, ou um ideal mais ou menos alto que persegue, e responde com base nesse critério. Um indivíduo que espera muito da vida, e que julgue que sua satisfação módica é pouco perto do que ele poderia alcançar, pode se considerar infeliz mesmo tendo mais satisfação subjetiva (ou seja, sendo em geral mais alegre e derivando mais prazer e bem-estar de sua vida) do que outro que julgue estar já próximo do nível máximo de bem-estar. “Felicidade”, mesmo quando restrita ao âmbito subjetivo (e supondo parâmetros similares de comparação), pode significar coisas diferentes para pessoas diferentes.
Para além desse problema da comparação de respostas diferentes, temos o problema da sinceridade da resposta. Até que ponto as pessoas estão dispostas a reconhecer, para outros e para si mesmas, que não são felizes? Mesmo em pesquisas anônimas, a mentira é um fato com o qual os estatísticos sempre se deparam, e por isso mesmo tentam desenvolver métodos para reduzir suas taxas. Não tenho provas, mas poderia apostar que temas delicados como a própria felicidade geram maior grau de mentira (e uma mentira praticamente impossível de se desmascarar) e auto-engano.
Se essas características (disparidade de critérios de felicidade e relutância em dizer a verdade) forem igualmente distribuídas por todos os grupos, então não afetarão os resultados; na média, todos se compensam. Mas e se membros de certos grupos tiverem maior tendência a mentir sobre seu bem-estar? E se padrões médios diferentes do que é ser feliz vigorarem entre diferentes grupos? Daí a pesquisa estará viciada desde o princípio, e não revelará nem as diferenças médias de bem-estar subjetivo entre os grupos estudados.
Um dos resultados que Brooks revela é que quem tem crenças “extremas”, para qualquer lado, diz estar mais feliz do que quem tem crenças moderadas. Ora, quem tem crenças mais “extremas” é justamente quem julga ter entendido a realidade em maior profundidade, indo além do senso comum. A pessoa que julga ser membra de uma minoria que realmente detém a verdade sobre o homem, e que vive segundo essa verdade, não sentirá naturalmente uma certa obrigação (para si ou para a comunidade de que faz parte) de dizer que é feliz? Afinal, ela tem tudo, e ela quer convencer o mundo de que ela tem o que os demais procuram. Esse argumento não prova nada; outros processos psicológicos podem estar em jogo. Espero apenas ter mostrado como a possibilidade de mentiras sistemáticas não pode ser descartada a priori, e nem podemos supor que, na média, todos os grupos mintam em nível igual.
Suponhamos, contudo, que todos esses problemas sejam contornados – que, com diversas mensurações e testes, seja possível corrigir estatisticamente os diversos vieses. E suponhamos que os resultados de felicidade em pesquisas de self-reporting sejam usados como subsídios para políticas públicas ou como objeto de artigos que defendam uma certa visão de mundo, como o de Arthur Brooks. Suponhamos, por fim, que o público saiba desse fato.
Sabendo ou supondo que a pesquisa pode ter impacto no mundo real (via política ou mídia), os entrevistados podem tomar a decisão consciente de dizer que são felizes para melhorar a imagem de seu grupo. E portanto quanto mais utilizadas forem essas pesquisas, menos confiáveis serão.
O que se conclui disso tudo? Apenas uma postura fundamental: cautela. Números impressionantes podem revelar muito menos do que gostaríamos que revelassem. A pesquisa em que Arthur Brooks se baseia diz, concretamente, o seguinte: conservadores dizem, em média, ser mais felizes que liberais. Pessoas com crenças extremas dizem ser mais felizes do que os moderados. É possível ir além disso no estudo da felicidade? Possivelmente; mas não com base em dados como esse.

domingo, 15 de julho de 2012

Qual o papel do filósofo moral na sociedade? Seja qual for, um fato inescapável é que aquilo que ele escreve ou diz não será lido ou escutado pela imensa maioria da sociedade em que ele vive. Talvez, no longo prazo, de alguma maneira, suas ideias sejam "filtradas" (e frequentemente adulteradas?) para um público maior, sedimentando-se por fim nas mentes dos homens comuns.

quinta-feira, 12 de julho de 2012

Noturno Sobre Temas Incansáveis


The art of losing is not hard to master;
so many things seem filled with the intent
to be lost that their loss is no disaster...

  Elizabeth Bishop, em poema traduzido por Bruno Tolentino 
em O Mundo Como Ideia



Busco entender, Bruno, à luz desses versos
que tu citaste em paráfrase alheia,
algo da morte. Eu já rezei três terços

tentando clarear minhas ideias,
mas essa noite é maior do que eu,
ela circula pelas minhas veias

junto aos teus versos. Pelo amor de Deus,
Bruno, me diz se as coisas são fadadas
ao destino que as afinal perdeu,

se o que foi perda nascera cilada
como o que esplende é destinado ao brilho;
me diz, Bruno, se a liberdade é dada

integralmente ou num vago caminho,
se o já nascer com natureza é sina
intransponível, ou se vai do estilo

que ir vivendo aos poucos nos ensina.
Eu, por exemplo, nesta madrugada;
penso na voz rouca que me destina

tão sutilmente a me entregar ao nada,
ou ao infinito – como vou saber? –,
mas o exercício mental me embriaga

mais que esclarece. O que meu corpo quer
(dormir, sorver ar puro) é rejeitado
pela proposta maior que é viver

dentro dessa espiral, desse quadrado:
vou lendo os versos que o Bruno escreveu,
esse meu esquisito antepassado,

e dando o tom que essa noite me deu
ao poeminha idiota que, depois,
far-me-á vergonha apenas por ser meu.

Um rol de mortes terríveis, atroz
em sua óbvia futilidade,
me vem à mente e se procuro o algoz,

a mão capaz de mover tudo que arde,
encontro um novelo malsão de culpas
e nenhuma ao final. Então me invade

o tipo de revolta mais estúpida:
por que, meu Deus, além da dor da vida
de quem viveu incapaz de uma súplica,

por que – alguém, por bondoso, me diga! –
depois de terem vivido no inferno
esses coitados que a vida fustiga

ainda têm de ir parar no Inferno,
pois, loucos, se atiraram da janela?
“Todos existem livres. Sempiterno

e onipresente é o brilho dessa Estrela,
o amor do Pai. Aqueles que não veem-na
cegaram-se à vontade, porquanto Ela

não cessa de brilhar jamais.” A pena,
então, me cai dos dedos, choraminga:
“Ó, Pai, não logro a certeza serena

de que, nesse presente mundo, à míngua
de tudo o mais basicamente humano,
basta-nos ter boa vontade – a língua

de Deus fala por todos... Mas o engano
às vezes, tudo indica, fala mais.
Há quem nasça fadado ao desengano,

é o que parece – há um algo que induz
as almas ao abismo sem que elas
tenham lá grandes chances. E, ao invés,

existem as que se salvam quando nelas
qualquer coisa de fora as inverteu,
movendo-as como a chama de uma vela

ilumina ao redor. Quem compreendeu
o drama viu que há sinas discrepantes,
e é assim que eu me pergunto por que eu,

meu Deus, fui ver essa luz causticante
e salvadora, em vez de um outro irmão;
quem quer que fosse, estando diante

do que eu vi, nunca ousaria o ‘Não’.
Se é tudo uma questão de Graça, ó Pai,
ou falta dela, então o Inferno é vão.”

Há coisas que se o dom da perda esvai
– diz lá a Bishop, apud Tolentino –
é porque existe um dom da perda. Mais

ainda, o perder é bem seu destino.
Isso se aplica à vida? Os suicidas
perdem-se em nome de um desatino

atinado, glosando o que as feridas
da perda ofereceram como mote?
Pergunto se essa força que os instiga

coincide com seu fado, com sua sorte,
ou qualquer desses termos sorrateiros
que denominam o que precede a morte.

Há a força propulsora, o derradeiro
pendor, algo assim como um dom da perda?
Existem dons? Se sim, o desespero

do suicida que a loucura verga
para além da janela não é só dele.
Donde, não é tão livre como prega

a grã filosofia em que se espelhe
nosso mundo mental; o determina
(ao suicida) algo que, em vez, lhe acolhe,

faz-lhe beber do leite da má sina.
Não sei se estou conseguindo explicar
(ainda mais tentando-o em terça rima)

o que essa madrugada – a insônia, o ar
dessa noite maligna – me incutiu.
Tem a ver com liberdade, com causar-

mos realmente o que nos sucedeu.
Sei quanto o livre-arbítrio é ideia cara,
mas sei também que a mim a Graça encheu

do que eu não merecia – a minha cara
de espanto, gratidão e de temor
é testemunha. Essa dádiva rara

por que não dá-se a todos, pleno amor?

quarta-feira, 11 de julho de 2012

A Complacência do Naturalismo

Encontrei, meio que por acaso, seguindo links do Facebook, este texto ("Usos e Abusos da Falácia Naturalista") de Filipe Faria para o blog O Insurgente, do qual eu mesmo participei, muito brevemente, em algum momento da minha vida.

Não resisti iniciar esta discussão porque trata de um tema que muito me interessa: a chamada "falácia naturalista", cuja primeira expressão clara foi feita por David Hume. Os partidários da tese da "falácia naturalista" dizem, basicamente, que de uma afirmação positiva (que tenta descrever como a realidade é) não se segue necessariamente nenhum juízo normativo (que tenta prescrever como a realidade deve ser). Isso se opõe a um certo naturalismo ético, que diz que, se a realidade, ou a natureza, ou a natureza humana, é de determinada maneira, então esse fato tem poder normativo; ele prescreve como as coisas devem ser. Ou seja: se algo é naturalmente assim, então ele deve ser assim. Os partidários da falácia naturalista dizem, em essência, que o naturalismo é falacioso. Eu sou um desses partidários.

Filipe Faria, ao contrário, se autodenomina naturalista. Em outras palavras, para ele a realidade tem sim, pelo mero fato de  ser como é, um caráter normativo para o ser humano. Se o homem é naturalmente de uma forma, seria ingênuo, utópico e perigoso propor ou sonhar que ele seja de outra forma. Ou aceitamos a própria natureza humana como ela é ou entramos numa luta contra a realidade; estaremos exigindo do homem mais do que ele pode ser.

Segundo Faria, os partidários da falácia naturalista "dizem que não podemos cair na ideia de que lá porque algo é naturalmente assim, tal significa que tenha de ser aceite como regra." Ou seja, sua definição é a mesma que a minha. E embora ele aceite limitadamente a validade da tese, ainda assim diz que, ao adotarem essa posição, os partidários da falácia naturalista efetuam "uma forma de negação dos factos para dar lugar ao sonho, à utopia confortante e, em última instância, à engenharia social".

A menção à engenharia social já aponta que ele tende a identificar posições éticas a propostas de políticas públicas. Assim, se alguém não aceita que o natural deva ser aceito como norma de conduta, então essa pessoa provavelmente defenderá medidas governamentais que não levem em conta a natureza humana ou - pior ainda - que visem a alterar a natureza humana.

O primeiro ponto a se notar é que é preciso distinguir entre natureza humana e atos humanos. Na imensa maioria dos seres, seus atos, isto é, aquilo que fazem ou aquilo que ocorre com eles, é determinado por sua natureza. No caso do homem, contudo, por mais que tenhamos tendências naturais, instintos e pulsões que não estão sob nosso comando, é quase sempre possível agir à revelia deles. Para nós, homens, o natural, aquilo que se verifica na maioria dos casos, não é de forma alguma determinante. Nossa natureza não escolhe por nós.

Faria cita alguma evidência do nepotismo nas ações humanas; e é bem possível que seja verdade que os homens tendam a favorecer seus familiares. Qual a conclusão que um naturalista, como ele, tira desse fato? Que devemos louvar e aceitar o nepotismo (pensemos apenas no nepotismo que todos consideram ser condenável, como o favorecimento de parentes com cargos públicos) como um dado imutável da natureza? Ora, mas é possível ao homem não ser nepotista. Na política brasileira (e na portuguesa?) o nepotismo é endêmico e notório, mas duvido que se encontre graus comparáveis de nepotismo na política neo-zelandesa ou sueca. E se aceitarmos o nepotismo como fato imutável de nossa condição, daí é que ele não irá embora nunca; pelo contrário, só piorará.

Escolhas individuais produzem culturas diferentes, que por sua vez criam incentivos diferentes para a conduta individual. O motorista suíço, regrado, quado se muda para o Rio de Janeiro, em poucos meses já se aclimata ao trânsito local... O mesmo loiro de olhos azuis, com seus genes germânicos perfeitos, está lá furando farol vermelho e xingando pedestre da mesma forma que o taxista negro do Botafogo. Genes, por mais que possam determinar tendências reais (não podemos negar a priori a possibilidade do fato, por mais que possamos e devamos dizer que ainda não se chegou a nenhum tipo de resultado definitivo nessa direção), não são destino.

Aliás, é gritante a ingenuidade com que Faria aceita resultados altamente polêmicos sobre o comportamento humano, baseado em alguns estudos estatísticos. Sua aceitação da validade da medição de QI e até, aparentemente, de teses racistas, torna seu naturalismo ainda mais preocupante; pois o que ele procura naturalizar, normatizar, é justamente o que há de menos nobre no grosso da humanidade.

É claro que a cultura humana tem bases biológicas. Faria acerta ao apontar a tola separação entre biologia e cultura como um caso da velha e falsa dicotomia corpo-alma. Mas apontar a falsidade da dicotomia é muito diferente de dizer que o corpo determina a alma. Povos com genética idêntica podem ser muito diferentes: Coréia do Sul e do Norte; Alemanha ocidental e oriental; norte e sul da Bélgica; Inglaterra, Escócia e País de Gales; etc. A base biológica nos dá, como Faria aponta, alguns limites; e mesmo esses limites, conforme a tecnologia avança, se mostram cada vez menos restritivos. É possível que, algum dia, dar 50 piruetas no ar seja um ato plenamente factível por qualquer idoso. Portanto nem mesmo os aparentes limites de hoje em dia devem bloquear as mentes dos inovadores, descobridores e empreendedores cujas inteligências trabalham para melhorar nossa vida.

Embora Faria se oponha a algo que eu também considero mau, a engenharia social, ele o faz por motivos espúrios. Não é porque a natureza humana é de tal maneira que não devemos tentar mudar a conduta dos indivíduos. Aceitar isso é aceitar o racismo, o nepotismo, a ignorância, o ressentimento e tudo o que há de pior no homem comum como imutável e até mesmo como "bom".

O real motivo para se opor a propostas de engenharia social é porque ela viola os direitos (ou a dignidade) mais fundamentais dos indivíduos por ela afetados. Não é que ser oportunista ou nepotista seja algo bom; é que uma proposta política que não leve em conta o oportunismo ou nepotismo dos cidadãos será desastrada e não atingirá seus fins. E uma proposta que, sob a bandeira de extirpar o oportunismo e o nepotismo, promova grandes limitações à nossa liberdade e privacidade, gerará uma sociedade pior de se viver do que aquela que é assolada por esses vícios privados.

Outro dia um casal de mendigos brasileiros achou e devolveu 20 mil Reais. Tanto a cultura nacional quanto o instinto de sobrevivência (talvez até mesmo os genes? O brasileiro, afinal, não tem a mesma "pureza" racial dos portugueses; se bem que lá em Portugal também houve uma boa dose de mistura) diziam ao casal: "fiquem com o dinheiro". Não ficaram; fizeram a coisa certa. O naturalismo perdeu essa batalha. E a falácia naturalista foi mais uma vez revelada: não é porque as coisas costumam ser assim que elas devam ser assim. 

Ideais elevados, que vão além da mera normalidade estatística, não são, de forma alguma, sonho ou utopia; são uma possibilidade real a todos que estiverem dispostos a vivê-la. E essa possibilidade, ela sim, é que destrói um sonho mau e confortante que lateja em nossas mentes e que por vezes encontra o respaldo intelectual do naturalismo: "seus vícios e seus defeitos não são culpa sua. Não há nada que você possa fazer". Há.

sexta-feira, 6 de julho de 2012

Respostas a Olavo - Filosofia, Virtudes, Palavras

Obrigações acadêmicas me fizeram adiar este texto. Mas já que a resposta do filósofo Olavo de Carvalho a um texto anterior meu suscita diversas questões que julgo muito relevantes de se discutir, volto ao debate depois deste intervalo. Admito que fiquei em dúvida se deveria respondê-lo ou não, porque em muitos pontos não existe uma discordância clara. Deixo claro que, em diversas seções, escrevo sobre assuntos tratados pelo Olavo, dando talvez até um outro ponto de vista ou abordando a questão de maneira diferente, sem necessariamente contestar o que ele disse.

Acabei me convencendo, no entanto, de que existem em jogo visões diferentes sobre o que é a filosofia e qual seu papel, e por isso publico aqui minha tréplica neste debate, deixando a cargo do Olavo responder ou não a mais este artigo.

Da mesma forma como ele me acusa de tê-lo lido mal (coisa que, ao menos em um ponto, de fato fiz: realmente pareceu-me que ele defendera a superioridade filosófica das escolas de catedral sobre as universidades medievais), diversas opiniões que ele atribui a meu texto não estão lá. Meu foco, contudo, não será apontar esses erros de leitura; me interessam mais as questões discutidas enquanto tais. 

Não me proponho a fazer uma resposta completa ao artigo dele, mesmo porque ele trata de uma série de temas diferentes - ainda que de alguma forma ligados - e eu não discordo de muitas das opiniões apresentadas. Vou organizar meu texto com base em temas gerais que ele cobriu, comentando o que me parece relevante. Assim como ele aproveitou a ocasião para desenvolver diversos temas interessantes mas não diretamente relevantes à discussão, eu também tomarei a liberdade de fazer comentários e tecer algumas considerações livres. Tendo em mente que minhas opiniões interessam muito menos ao público leitor do que as do Olavo, tentarei mantê-las curtas.


Sobre a filosofia medieval e como ela ilustra nossa polêmica

Em primeiro lugar, nossa concordância: nas universidades medievais fez-se filosofia muito superior a qualquer filosofia que tenha sido feita nas escolas de catedral dos séculos X-XII.

Como Olavo diz, a universidade medieval não formava gentis-homens; aliás, não efetuava, ela própria, nenhum tipo de formação moral dos estudantes. Apesar disso, afirma ele, alguns poucos indivíduos que ensinaram na universidade (cuja formação moral ocorrera em outros contextos, como a vida religiosa - isto é, a vida em uma ordem religiosa de monges ou frades) tiveram notável produção filosófica. Meu receio e minha possível discordância (pois que, como já afirmei, não tenho opinião formada na questão), é que, talvez, grande filosofia tenha sido produzida nas universidades justamente pelo motivo de elas terem abandonado a ideia de formar gentis-homens. Enquanto o foco e o ideal for o gentil-homem, o clérigo ou o administrador público de formação ampla e de modos refinados, não se fará filosofia superior. Na interpretação do período histórico em questão, estou com Jaeger: "Its contribution [da educação dada nas escolas de catedral] to rational thought was minimal, in fact retarding, since it was based on personal authority and discouraged skeptical, critical thinking."

Quero também deixar um questionamento a algo que Olavo toma como verdade evidente: de que os alunos das ECs provocariam "inveja aos anjos". Ora, isso foi dito por quem? E até que ponto é expressão confiável da realidade? Pelo que Jaeger diz, as ECs eram escolas para a elite medieval, e o que elas nos legaram foram os modos da aristocracia europeia. Nem me passa pela cabeça dizer que tais modos seja maus em si; mas que é muito fácil para mentes deslumbradas confundir elegância exterior dos modos com virtude, e um saber diletante, generalista no mau sentido, com sabedoria, certamente é. E assim como hoje vemos muitos "anjos" nas páginas das revistas que falam sobre as elites ou nos encômios sobre ilustres advogados, diplomatas, literatos e políticos, não se pode imaginar que o mesmo engano ocorresse no século XI? Não tenho como afirmar nada aqui, tal o meu desconhecimento do tema. Apenas aponto o óbvio: alguém ter admirado a suposta virtude de uma classe não prova ter sido essa virtude real.

Deixemos de lado as ECs para falar de algo que me sinto mais a vontade para dar contribuição: a escolástica e a universidade na qual ela majoritariamente ocorreu.

Olavo encara a escolástica como o florescimento de uma cultura cujas bases foram lançadas pela educação das ECs e do monaquismo (embora os dois fossem coisas muito diferentes, e até opostas, como se vê na atitude de um S. Anselmo para o mundo secular, do qual ele acreditava que pouquíssimos seriam salvos). Os poucos grandes escolásticos, segundo ele, estavam na universidade mas não eram da universidade; tiveram formação religiosa e moral por outras fontes e eram homens de grandes virtudes. E de fato, os quatro nomes que ele seleciona como os grandes do escolasticismo foram santos. (E santos de vida religiosa mendicante, algo que, ao contrário dos gentis-homens da aristocracia e do monaquismo tradicional, era malvisto pela elite estabelecida; lembrem-se da biografia de S. Tomás: quando ele quis virar dominicano ao invés de beneditino, causou um enorme rebuliço na família, que chegou a trancá-lo no castelo).

Não posso deixar de apontar, contudo, o viés de seleção que Olavo revela. Que S. Alberto, S. Tomás, S. Boaventura e Duns Scotus sejam luminares da filosofia escolástica não há dúvida. Contestarei três teses de Olavo a esse respeito: 1) Que os citados eram corpos estranhos no meio universitário. 2) Que eles foram os únicos grandes nomes da escolástica, sem nenhum outro igual em importância. 3) Que fora os luminares da escolástica, o resto dos pensadores do período foi irrelevante: burocratas medíocres que não fizeram nada de valioso.

1) Para não transformar este post em biografia de escolásticos, vou me ater brevemente sobre Tomás de Aquino e Duns Scotus, cujas vidas eu conheço melhor do que as dos outros dois.

Vamos lá: S. Tomás era um corpo estranho à universidade, que tentou de todas as formas expulsá-lo e calá-lo, tão fora de lugar que ele estava? Essa interpretação, a meu ver, não se sustenta. S. Tomás tomou parte, isso sim, num longo processo de disputa interno à universidade: disputa entre o clero secular que antes a dominava e o clero mendicante cuja presença institucional crescia. Essa disputa política era mais ou menos refletida na disputa filosófica entre agostinianos conservadores e aristotélicos inovadores. E era uma disputa interna entre facções que lutavam para ter/manter seu espaço lá dentro. S. Tomás não era um estranho no ninho; era membro de um grupo inicialmente minoritário mas com presença crescente e que levaria a melhor no longo prazo. Mais tarde, algo similar aconteceria com Ockham e, genericamente, o nominalismo; inicialmente condenado e banido, terminou por dominar o sistema universitário. (Outras disputas, paralelas a essa, também existiam: por exemplo, entre franciscanos e dominicanos, as duas ordens mendicantes. Um dos maiores oponentes de S. Tomás foi John Peckham, de Oxford, que não era secular, mas franciscano, e condenou suas teses. Tudo isso era interno ao mundo universitário; não era uma briga entre a universidade e algum elemento externo que vinha negá-la ou combatê-la.)

Para além de tudo isso, havia ainda os bispos locais - esses sim elementos externos - horrorizados com as heresias que circulavam nas universidades, e que volta e meia condenavam diversas proposições. Por sua vez, eram usados pelas facções internas à universidade para condenar este ou aquele ponto de vista rival. Infelizmente, o mundo medieval não estava muito confortável com a ideia de liberdade acadêmica que hoje cultivamos (Bem, talvez hoje em dia ela esteja se enfraquecendo de novo); na verdade, ela estava sendo criada ali, e essa criação não se deu sem muitos conflitos. As cartas de Nicolau de Autrecourt, por exemplo, foram todas queimadas. Tentou-se até mesmo proibir a leitura de Aristóteles; proibição que, como sabemos, foi letra morta.

A carreira de S. Tomás é um pouco fora da curva porque ele foi em dado momento designado por sua ordem a cuidar de um centro de estudos para os dominicanos e também para dar aula em alguns outros lugares, e para isso saiu da universidade de Paris. Mas a sua obra é clara em mostrar que ele estava, antes, levando o que se fazia na universidade para outros contextos. Seus textos são questões disputadas, comentários, sumas; coisas que os acadêmicos faziam. Suas referências são o Aristóteles recém-chegado, Agostinho, os Santos Padres e os comentadores lidos nos meios universitários. Ele foi parte do meio universitário de sua época, participou inclusive dos conflitos inerentes a ele.

Por sua vez, Scotus, ao contrário do que diz Olavo, desde cedo firmou sua reputação e teve muitos seguidores e debatedores, i.e., arraigou-se no meio universitário, seja como doutrina seguida pelos franciscanos ou combatida por outros. Sua expulsão da universidade (à qual voltou alguns meses depois) se deu por motivos políticos externos à universidade (a querela entre rei e papa mencionada por Olavo) e de forma alguma significa que ele fosse contrário ao sistema universitário enquanto tal, ou que este lhe fosse essencialmente hostil. Ele era um homem da universidade, assim como foi S. Tomás e outros.

2) Os quatro citados de fato são dois grandes autores da escolástica. Mas faltaram dois da mesma estatura e importância filosófica: Pedro Abelardo e Guilherme de Ockham. Pedro Abelardo foi, digamos, pré-escolástico, e viveu na transição entre as ECs e a universidade enquanto tal. Mas ele lançou as bases da escolástica e sua influência no pensamento ocidental é enorme. Ockham, por sua vez, é indiscutivelmente um homem da universidade medieval, um verdadeiro escolástico universitário (no bom e no mau sentido; tentem ler um texto dele e vocês verão!) e um divisor de águas da história da filosofia. Incluído Ockham na lista (e é impossível não incluí-lo), cai por terra a tese de que os grandes escolásticos o foram por causa de suas virtudes pessoais; não consta que ele as tivesse; certamente não foi santo.

3) Também é falso dizer que, fora esses grandes nomes (que já não são poucos para um período de 200 anos em instituições que congregavam uma minoria diminuta da população), a universidade medieval só produziu nulidades. Outras figuras menores também tiveram seu brilho e seu valor: Alexandre de Hales mencionado por Olavo, Henrique de Gand (padre secular, ou seja, sem a rígida disciplina religiosa a que Olavo atribui o mérito filosófico dos quatro grandes), Pedro de João Olivi, Roberto Grosseteste, Roger Bacon, Nicolau Oresme, Nicolau de Autrecourt ("o Hume da Idade Média"), Gabriel Biel, e outros tantos. Nenhum deles é um grande luminar do pensamento universal, mas são nomes de respeito e com relativa importância em seu período, e não "técnicos, burocratas, agitadores, doutrinários de dedinho em riste, bedéis e uma infinidade de puxa-sacos". Esses também é claro que houve, como o Guilherme de Saint-Amour citado por Olavo, mas não se tratou de um mar de um lama com umas poucas flores de lótus que despontaram apesar do lodo. Havia ruins, bons, ótimos; muito mais uma gradação de continuidade do que uma oposição entre uns poucos filósofos genuínos e uns arruaceiros burros e malvados.

Ao contrário do que Olavo acusa, nunca parti da premissa de que um filósofo é "fruto natural", espontâneo, de um meio cultural; nem meu texto o diz ou insinua. Apontei apenas que S. Tomás e outros eram pessoas da universidade; faziam parte dela, viviam suas polêmicas internas, discutiam com outros membros e usavam dos termos e formas de expressão correntes internamente. Isso é diferente, por exemplo, da relação já mencionada entre S. Anselmo e a educação aristocrática de seu tempo, ou de Descartes e da escolástica de seu tempo; Descartes recebeu educação jesuítica e escolástica, mas sua obra é uma clara ruptura com ela. S. Tomás não; sua obra é a fina flor da escolástica, superior sim a centenas de outros menos brilhantes do que ele, mas claramente parte daquele meio e daquela cultura intelectual. Superou suas limitações sem deixar de fazer parte dela, ao contrário de Descartes, que superou-as começando algo inteiramente novo. Leia um texto de S. Tomás, compare ao de outro universitário de sua época, e você comprovará: eles estavam participando de um mesmo jeito de se fazer filosofia. E não é de se estranhar que estivessem ligados à mesma instituição. Agora compare as Meditações de Descartes com o que faziam os doutores de filosofia do seu tempo. Aí está a diferença.

É óbvio que nenhum filósofo foi produzido espontaneamente pelo sistema universitário medieval. (Provavelmente minha rejeição à tese de que o filósofo é fruto de seu meio é ainda mais radical do que a do Olavo, que afirma que o filósofo dá expressão intelectual a uma visão de mundo já presente na cultura corrente. Não vejo impossibilidade nenhuma no filósofo expor ideias e visões de mundo contrárias à da cultura corrente, refletindo nada mais do que a sua própria percepção, em nada ou muito pouco antecipada pela cultura que o cerca e os símbolos que ela traz.) Mas esse sistema universitário, com todas as suas muitas falhas - que são bem apontadas por Olavo -, permitiu a formação de filósofos e teólogos de peso; revelou-se melhor para a filosofia do que foram as ECs e mesmo o monaquismo tradicional. Era, contudo, talvez um meio pior para a virtude e para a santidade (ou, ao menos, para a concepção tradicional de virtude e santidade) do que o monaquismo (e do que as escolas de gentis-homens também? Daí tenho as dúvidas já mencionadas sobre a superioridade moral delas...). Estamos de acordo nisso?

No fim das contas, parece que nossa discordância reside neste ponto, que Olavo afirma: "... o estudo da filosofia podia e devia contribuir para a formação moral dos estudantes, como o fizera nas escolas catedrais e monacais, mas também era verdade que a filosofia havia começado a fracassar nesse objetivo desde o momento mesmo em que se constituíra como profissão universitária e meio de ascensão social."

Um fato: a filosofia só decolou de fato na Idade Média quando abriu mão dessas pretensões de formação moral. Isso ninguém pode negar. A grande questão é a causalidade entre essas duas coisas. PODE e/ou DEVE a filosofia contribuir para a formação moral dos estudantes? É isso que estamos discutindo (uma variação do clássico "a virtude pode ser ensinada?"? Mais uma nota de rodapé a Platão?). A mim parece que a causalidade é inversa: é abrindo mão da pretensão de formar moralmente os discípulos que a filosofia pode realmente se desenvolver. E enquanto ela não abrir mão disso, ela dificilmente decolará; formará escolas, grupos de seguidores fieis a um gênio original; mas não filósofos.

Por que tendo a negar a tese de que a filosofia deva ter pretensão de formar moralmente seus praticantes? Porque ao encaixar a filosofia num plano pedagógico de modos e virtudes, você já a está encaixando dentro de certos pressupostos acerca do homem e do mundo. E se a filosofia for realmente servir a esse plano, não poderá, ao menos não a sério, questionar esses pressupostos, e muito menos negá-los. Ora, se tem uma coisa que a filosofia (boa) fez ao longo da história é puxar o tapete de muitas opiniões que se julgavam boas, louváveis e belas. Ela também construiu outras, mas nunca ao ser instrumentalizada para os propósitos de uma certa visão de mundo parcial.

Vivendo no século XI, se você aderisse totalmente aos códigos de valores, aos símbolos e à cultura da época, e quisesse encaixar um estudo da filosofia para melhor se encaixar pessoalmente nesse esquema, sua filosofia seria uma serva dessas concepções, e não poderia nunca desestabilizar essas estruturas, como a incorporação de Aristóteles pelos escolásticos desestabilizou.

Por isso, a filosofia não se presta, ao menos não primariamente e como sua finalidade, à formação ética. A não ser, talvez, em um caso: no da ética que subsume todas as virtudes e todo o bem à verdade, seja ela qual for. Essa, que talvez possamos chamar de uma ética socrática, por uma questão de definição, será sempre compatível com a filosofia, e a filosofia sempre ajudará nessa formação moral. Filosofia é a busca radical da verdade. Ser bom é ter a verdade e agir com base nela, seja ela qual for. Portanto, a filosofia é e sempre será virtuosa e boa, independentemente dos conteúdos particulares a que o filósofo chegue. Mas é claro que qualquer visão ética da existência inclui muito mais do que apenas essa afirmação vazia. Incluía no século XI, no XVI e hoje em dia também. Se você quiser ser um bom defensor dos direitos humanos, um eleitor consciente, um cidadão de bem e multicultural, se quiser se formar para virar comissário da ONU ou secretário do meio-ambiente, e quiser encaixar a filosofia nesse seu plano de formação, pode ter certeza de que será filosofia de quinta categoria. 


O papel das relações e influências políticas na consagração do filósofo

Em nenhum momento desprezei o ensino direto, a relação professor-aluno, e mesmo a capacidade do filósofo de se expressar e magnetizar os ouvintes com sua fala. E embora não tenha nenhum grande conhecimento de sociologia da filosofia, não ignoro que as forças que fazem com que esta ou aquela filosofia seja mais popular vão muito além do conteúdo das filosofias em questão. Não é preciso ter conhecimento científico, rigoroso, dos processos sociais e relacionais que determinam o sucesso e fracasso das filosofias no presente para ter algum conhecimento empírico e opaco deles e guiar-se de acordo; saber ir além da opinião estabelecida e dos símbolos e premissas da cultura, ou até mesmo manipulá-los. E é provável que mesmo estando completamente alheio a esses processos, seja possível fazer filosofia boa e original.

Pedro Abelardo foi um mestre em atrair multidões para suas aulas, mesmo tendo sido proibido de lecionar no espaço acadêmico. Já Scotus, se a sutileza notória de suas distinções é boa indicação, devia ser alguém mais afeito ao texto escrito do que à fala, à persuasão retórica e ao impacto carismático pessoal no ouvinte; e muito menos afeito às intrigas políticas, que acabaram por lhe render alguns meses de exílio.

Acredito, contudo, que por mais que conchavos políticos e manipulações pessoais tenham seu efeito no curto prazo, no longo prazo a qualidade vence. Dos "quatro malignos" citados por Olavo, Wittgenstein e Heidegger vingaram, pelo menos até hoje; já os outros dois... Quantas figuras tão presentes e influentes em seu tempo não perduraram! Os neoplatônicos da Antiguidade; os humanistas platônicos; o rival de Descartes, o padre católico atomista Pierre Gassendi; os libertinos franceses contemporâneos de Montaigne; vários iluministas (como o Barão d'Holbac); o próprio Bergson, nome central no início do século XX, já está meio apagado. O tempo é cruel com as pretensões; poucos resistem ao teste dos séculos, e não me consta que sejam os que, em vida, foram politicamente mais hábeis ou tiveram maior carisma pessoal. É até possível que, por questões políticas, grandes gênios sejam abafados no berço e permaneçam esquecidos, aguardando serem descobertos pela posteridade. Mas dificilmente algum nome consagrado do cânone é uma fraude que só chegou lá por influências extra-filosóficas.

O que é filosofia

O que é a filosofia? É "discussão racional"? Não só, embora esse seja um elemento necessário. É o uso da razão (em sentido amplo: as faculdades naturais de conhecimento humano, sejam elas quais forem) para se conhecer a realidade em seus aspectos mais profundos, mais abrangentes. Ir muito além disso é já imiscuir, à definição de filosofia, certas posições filosóficas particulares.

A prova tem papel central aí. Se você tem uma experiência, uma percepção de algo que julga verdadeiro, mas não tem como convencer uma outra pessoa dessa mesma percepção, como você garante, mesmo que para si mesmo, de que não passa de impressão subjetiva sem valor objetivo? Filosofia sem prova, ou melhor, sem embasamento racional (que frequentemente ficará aquém da demonstração estrita), não é filosofia. Sem o embasamento racional, o sujeito não pode nem saber que sabe. Não estou falando em montar um sistema lógico perfeito (embora grandes filósofos como Descartes e Espinosa tenham tentado fazê-lo e acreditado que só isso é boa filosofia), mas da atitude básica de testar toda afirmação com as ferramentas à nossa disposição, por mais arraigada e óbvia que ela possa parecer mesmo à experiência pessoal, e entender - e aceitar - as consequências de afirmá-la ou negá-la.


Sobre o fazer filosofia, o que é ser um grande filósofo e nossa relação com o passado filosófico
"Sem querer resolver agora a questão de quais merecem ou não entrar nessa classificação, parece-me evidente que ninguém negará um lugar nela aos nomes de Platão, Aristóteles, Sto. Tomás e Leibniz. Enquanto filósofos bem posteriores já viram suas contribuições essenciais esgotadas ou impugnadas pelo avanço do conhecimento (ninguém mais pode ser cartesiano, baconiano ou hobbesiano de carteirinha sem entrar em conflito com o estado atual das ciências), esses quatro, excluídos erros de detalhe que possam ter cometido num ou noutro ponto, continuam dando inspiração a novas descobertas em todos os setores do conhecimento, e parece que não vão parar de fazê-lo tão cedo."

E por acaso é possível ser platônico ou tomista de carteirinha sem entrar em conflito com o que hoje sabemos? Claro que não. De Platão mesmo não sobra nada de pé - mostrem uma tese ou argumento distintamente platônico que podem ser mantidos tais como foram formulados nos dias de hoje (conhecimento como reminiscência? Teoria das Ideias? Inexistência de conhecimento sobre o mundo sensível? Metempsicose?). Ok, ok, alguma coisa continua mais ou menos plausível: nossa divisão da alma [opa! um amigo meu bem me alertou: alma hoje em dia?? Acho que o termo é mais controverso que a coisa, se bem entendida] humana em razão, paixões, apetites; talvez a devamos a Platão, embora hoje possamos fazê-lo com mais precisão. O que não lhe tira o mérito de ser um dos maiores filósofos de todos os tempos, pois tinha exatamente isso: a coragem absoluta em busca da verdade. Infelizmente, seus seguidores (talvez inspirados pelo magnetismo do próprio) fizeram de seus ensinamentos uma semi-religião, e em alguns séculos o neo-platonismo era já algo tão estéril quanto foi a escolástica em sua longa decadência. Houve, contudo, um discípulo de Platão que não o tratou como um mestre espiritual, mas como um filósofo; e sendo ele próprio filósofo (e, portanto, mais amigo da verdade do que de Platão), carregou a tocha da filosofia adiante.

E Platão inspira novas descobertas? Aí sim, inspira; deve inspirar, tão rica é sua obra. Assim como Hobbes inspira também (pensem em todo estudo da ação humana, ciência econômica, teoria dos jogos; o indivíduo maximizador de utilidade tem, como uma de suas origens, Hobbes). Inspirar novas ideias não significa que é possível ser seguidor "de carteirinha" do filósofo.

E já que estamos falando de ser seguidor "de carteirinha" de algum filósofo, noto que não há nada mais anti-filosófico do que os apologetas contemporâneos de tomismo que querem antes de tudo vender um peixe (que é uma interpretação em geral deficiente de S. Tomás) na ilusão de que a salvação das almas e do mundo moderno dependem disso. Essa percepção clara, aliás, de que apologética de tomismo não é filosofia, devo ao Olavo, que o apontou em algum artigo de anos atrás. Eu, que na época tendia exatamente para esse tipo de falsa filosofia - que é também uma certa fuga de confrontar a realidade em si mesma -, não gostei muito; disse a mim mesmo que não era bem assim. Mas era.

E falando em S. Tomás, ele parece concordar muito mais com a minha forma de ver a filosofia do que com a do Olavo. Ele, por exemplo, trata o argumento de S. Anselmo justamente da maneira que Olavo condena: pega o argumento, avalia se ele prova ou não a existência de Deus; conclui que é falho. Ele foi menos filósofo por isso? De forma alguma. Isso não invalida o interesse de realmente entrar na alma, no pensamento e no mundo mental de S. Anselmo e tudo o mais. Mas me parece que a saída de Tomás é a mais diretamente relevante para a filosofia propriamente dita: será que o argumento prova o que ele visa provar?

(Calma lá! S. Anselmo não visava provar a existência de Deus? Leiam vocês mesmos o prefácio do Proslogion e tirem suas conclusões)

A leitura que Tomás faz de Aristóteles é também bem "pé-no-chão"; seus comentários não revelam grandes conhecimentos de paideia grega ou o que o valha. Aristóteles afirma X; Tomás explica o que X quer dizer, dá algum exemplo; algumas (raras) vezes faz algum reparo ou mesmo discorda; outras vezes (menos raras) dá a interpretação mais compatível possível à sua forma de ver as coisas. Enfim, usa Aristóteles para desenvolver seu próprio pensamento; mas usa Aristóteles, sua obra escrita, e não a cultura grega, ou a "experiência unitária" de Aristóteles, ou as doutrinas não-escritas de Aristóteles. Tampouco mostra qualquer preocupação com símbolos (lembrem-se: ele critica as metáforas didáticas de Platão), com o mundo cultural em que estava imerso, com as catedrais góticas. Elas podem ter-lhe servido de inspiração? Podem. Podem também não ter servido. Pode ser que a relação aparentemente óbvia entre Sumas e catedrais seja uma seleção bem moderna de certos elementos análogos em ambas mas que não chamaram a atenção dos medievais dessa maneira. Há muito de questionável na tentativa de identificar uma estrutura comum entre catedrais e Sumas. Por exemplo, Olavo menciona "a sustentação mútua entre os arcos opostos como teses dialéticas articuladas na sua contradição". Isso é uma característica da catedral, mas da suma? Na maioria das sumas, as objeções, teses opostas às defendidas pelo autor, não ajudam a sustentar nada. Não é como se, do embate entre teses opostas, o autor extraísse uma síntese que integra algo de verdadeiro existente nos dois lados. Em alguns casos particulares isso até poderia ocorrer, mas o normal era que as teses das objeções fossem simplesmente refutadas, e a posição em contrário ficasse plenamente defendida. Não havia sustentação dialética; havia a defesa de uma tese considerada verdadeira contra objeções falsas. E por isso mesmo a Suma Teológica, obra para estudantes, considerava poucas objeções (3-4), enquanto obras como as Questões Disputadas tivessem muitas objeções (10-13); mas o teor das teses defendidas não mudava.

Não deixa, contudo, de ser uma interpretação histórica interessante, embora para quem seja católico e estude a escolástica fique um tanto cansativo e não seja lá muito informativo ver alusões a "sumas de pedra" ou "catedrais escritas" e similares repetidas ad nauseam. No caso do Olavo, por ele fazer a relação inversa do usual, e por fazê-lo em mais profundidade, ela escapa dessa impressão de lugar-comum; mas nem por isso a relação que ele descreve é necessariamente verdadeira. Falta, no mínimo, uma evidência empírica de que, de fato, os pensadores escolásticos foram inspirados pelas catedrais.

Às vezes isso (a relação entre Sumas e catedrais de maneira geral, não a causalidade específica proposta por Olavo, que de fato vai mais fundo que o normal) parece parte de um programa ideológico de idealização da Idade Média (em particular o século XIII) como um período mais puro e mais integral, em que tudo estava em seu lugar, em que tudo fazia sentido, em que cada elemento da cultura se articulava com os demais, em que os homens sabiam seu lugar no cosmos, etc. antes da ruptura e do pecado original da modernidade (que tem vários possíveis culpados: Duns Scotus, Ockham, Francis Bacon, Descartes). Uma mentira para afagar egos autocomplacentes e assegurar-lhes de que, se ao menos tivessem nascido em tempos melhores, daí sim seriam santos / felizes / completos /  reconhecidos / aplaudidos. Mas agora estou fugindo do tema, pois em nenhum momento Olavo faz esse tipo de propaganda ideológica da Idade Média.


Relação do verbal e do não-verbal, do escrito e do oral, com a filosofia

Não desmereço o universo do não-verbal, que é afinal precondição ao conhecimento verbal. (Num momento em que falo de "fuga consumada" da realidade, e que Olavo interpretou como se referindo a tudo o que não é verbal, eu na verdade me referia ao esoterismo e ao tradicionalismo.) Mas também não me convence a tese do Olavo de que o principal está no não-verbal; vide o exemplo do técnico de laboratório que mexe numa máquina complexa.

É óbvio que, para qualquer atividade humana, é preciso uma série de conhecimentos não-verbais. Para falar preciso mexer a boca e as cordas vocais; para escrever, mexer os dedos. O conhecimento de como fazer esses movimentos é não-verbal; disso concluo que a comunicação escrita é, portanto, uma atividade primariamente não-verbal, ou que o não-verbal é o principal dela? Não me interessa entrar em picuinhas sobre o que é o principal, o acessório, etc. A mim basta-me deixar claro: sim, a filosofia usa e precisa necessariamente do não-verbal (o filósofo precisa falar, escrever; e mesmo o ato de pensar exige atos mentais pré-verbais), mas ela é o que é justamente porque não se limita ao não-verbal. Da mesma forma, o técnico de laboratório que só tivesse um conhecimento prático, uma experiência, de como usar a máquina, dificilmente seria um bom cientista. Seria como os pobres monges do início da Idade Média que, dotados ainda de alguma tecnologia romana de medição das horas, não entendiam mais a teoria por trás de seu funcionamento, e portanto aplicavam-na erroneamente a latitudes que exigiriam ajustes que eles não sabiam fazer.

Nunca disse que "a busca da 'realidade' começa da abstração verbal para cima, como se a realidade existisse só nos conceitos e discussões filosóficas". Mas ela deve, para virar filosofia, terminar na abstração verbal, e daí poderá finalmente ser comunicada a outros seres humanos e ao próprio autor, que só terá consciência plena de seu pensamento, e só poderá avaliá-lo de forma objetiva, ao formulá-lo verbalmente. E esse formulação pode se dar em vários níveis.

É possível tratar de questões profundas sem uma linguagem precisa? Claro, e às vezes tudo o que temos é a linguagem simbólica, artística, ou as impressões pessoais em um estado mais bruto. O problema desse nível é que ainda não é possível fazer o principal da filosofia: distinguir o verdadeiro do falso. A linguagem artística pode construir e nos mostrar (o que é muito mais forte do que apenas falar sobre) diferentes visões de mundo, mas não é capaz de avaliá-las. Se eu quero saber como o mundo é, portanto, terei que ir além da arte, do símbolo, e da impressão. Terei sim que entrar no reino dos argumentos.

Isso pode ser feito tanto oralmente quanto por escrito. Mas é muito improvável que o oral seja superior ao escrito nesse caso. Pois o tipo de calma e precisão que o escrito permite não estão ao alcance da fala. Em um texto você pode desenvolver seu pensamento, e seu leitor pode acompanhá-lo, e alguém dois anos depois (talvez você mesmo) pode encontrar uma falha crucial. Conversas filosóficas são, na minha opinião, uma das melhores coisas da vida; também adoro uma boa aula; mas para o desenvolvimento da filosofia, não há dúvida de que os livros contribuíram mais do que as aulas e as conversas, por mais necessárias que elas também sejam.

É possível que um professor desenvolva oralmente em sala uma Suma Teológica, e que nada daquilo seja escrito? É possível. É, porém, muito improvável, pois dificilmente ele não se perderia no meio sem ter algo escrito para se guiar; fora o trabalho de se lembrar e pensar na hora em todos os argumentos e objeções. Mas não dá para negar que seja possível; se algo pode ser escrito, pode igualmente ser falado. Duvido, contudo, que tal coisa jamais tenha acontecido. Talvez Aristóteles, cujas obras que chegaram a nós são anotações de aula, seja um caso desses? Ou ainda mais Sócrates, que se recusava a escrever? Pois vejam: o pensamento dos dois só teve a importância que teve porque alguém se dignou a escrevê-lo ou anotá-lo, eternizando o efêmero.

E quem acha que as doutrinas não-escritas de Platão eram superiores à sua obra filosófica escrita, bem, que mostrem quais eram essas doutrinas e como eles ficaram sabendo delas. (Olavo diz isso? Não sei; sei que é opinião corrente entre alunos seus, inclusive alguns desta casa, que espero ter provocado a se manifestarem...). E mais: mostrem o que foi feito delas ao longo da história, para que mereçam essa consideração exaltada que lhes é concedida.
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