quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

Retornemos à província


O regionalismo literário é fenômeno típico do subdesenvolvimento intelectual. Nas literaturas inglesa, francesa e alemã, não existe regionalismo como o encontramos no Brasil, e não existe porque, como poderia dizer – vamos imaginar – um russo, a região é mundo; quiçá, o mundo. Serei o último a negar o valor de obras-primas de nossa literatura “regionalista” como Fogo Morto; falo apenas do acanhamento com que exorcizamos de nossa mentalidade um cacoete crítico datado, posto que regionalismo é mais um conceito inadequado criado pela crítica – seja com saúde e vigor de idéias, pelo Gilberto Freyre de Região e Tradição, ou com decrepitude estética, como ainda hoje encontramos em manuais escolares a reverberar Antonio Candido – e menos uma força ingente de nossa criação literária; por certo, colaborou para tanto a desarticulação histórica dos diferentes tipos de desenvolvimento entre as regiões do país, notadamente nordeste e sudeste.

Algo do que digo talvez aluda ao já tão praguejado e hoje exumado cadáver do “provincianismo” brasileiro e a incapacidade de sua cultura erguer-se ao plano da universalidade. Contudo, não penso nisso, e se pensasse seria justamente para defender a província contra o vício do universalismo cosmético de quem, desconhecendo-a, quer cruzar seus limites e emigrar para as alturas excelsas da cultural universal, seja lá o que isso for e onde porventura esteja (às vezes na Inglaterra, não raro na Alemanha, quase sempre na França...).

O que digo é só exórdio ao tema de nosso antiprovincianismo corrente, cujo erro está em desconhecer que só está apto a produzir algo que fale a todos os homens de todas as épocas o indivíduo que olhou com clareza atroz o que se passa ao seu redor e amou ou odiou, com todo o empenho do seu ser, a sua particularíssima situação concreta. (No cômputo final se verá que sempre se trata de amor: o conhecimento efetivo de algo pressupõe, em algum nível, um tipo de identificação com o objeto, ao qual só se pode chamar adequadamente de amoroso.) Em um momento como o atual da cultura brasileira, em que paira no ar um esforço difuso e espontâneo de reeducação – todo estudante hoje diz “Há um monte de coisas erradas, não é bem por aí, portanto...”, e as diferenças entre os vários espécimes estão no diagnóstico das “coisas erradas” e nos prognósticos e programas do “portanto...” –; mas, como dizia, num momento como este importa muito que atinemos ao lugar onde estamos. O que falo nada tem que ver com patriotismo ou com politicagem, mas com a sintonização das antenas da raça e com atenção e apreço, por exemplo, àqueles que antes de nós se dedicaram a compreender a situação existencial do ser humano nascido e vivido num lugar chamado Brasil.

A impopularidade atual, ou mesmo desconhecimento puro e simples, de sérias tentativas de resposta à indagação pelo local onde estamos diz muito. Deixamos de lado caminhos abertos por obras como Interpretação da Realidade Brasileira, de João Camilo de Oliveira Torres, Fenomenologia do Brasileiro, de Vilém Flusser, A língua nacional, de João Ribeiro – e, por falar em língua, imagino, sinal dos tempos, que parecerão ou muito triviais ou muito excepcionais as lições do Ensaio de estilística da língua portuguesa, de Gladstone Chaves de Melo, àqueles que andam a escrever com cariz de gramática universal inglesa traduzida para o coitado português.

Em parte, isso se deve a uma componente histórica de nosso antiprovincianismo: a dissociação entre os fatos de nossa cultura e a visão cultural que temos deles. Esse é o motivo de não desenvolvermos, em que pese termos pelo menos seis bons ou grandes filósofos, uma tradição filosófica sólida no Brasil. Exceção, daquelas que legitimam a regra, deve ser feita à obra do lógico Newton Carneiro da Costa, criador da lógica paraconsistente (ou LP, para os íntimos, entre os quais infelizmente não me incluo), que encontrou lugar não só em muitas universidades estrangeiras como também em algumas nacionais, a exemplo da UFPR e da Unicamp. Mas, vejam, apreciamos muito fenomenologia e Heidegger, mas quase não levamos em conta o que Vicente Ferreira da Silva, em ensaios como Dialética das Consciências, tem a dizer a respeito. Amamos Immanuel Kant, mas não integramos a sério em nossos debates a seu respeito o que Miguel Reale, mais que todos, tem a dizer com livros como Experiência e Cultura. Apreciamos Wittgenstein e estudos de análise da linguagem, mas pouca bola damos ao Vilém Flusser de Língua e Realidade. Os exemplos poderiam se multiplicar à náusea.

Institucionalmente, aliás, o problema se agrava. É detalhe, mas detalhe significativo: o primeiro mestre em “Pensamento Brasileiro” formado nestas plagas surgiu, por assim dizer, outro dia – Ricardo Vélez-Rodríguez na PUC-Rio, em 1974! Também o primeiro a tanto, doutorou-se ele em “Pensamento Luso-Brasileiro” na Universidade Gama Filho em 1984, mas ambos, aquele mestrado e este doutorado, foram, segundo conta o professor neste artigo, fechados por “perseguição da CAPES”. Não é de estranhar, assim, que tenhamos chegado aonde chegamos e como chegamos, e não poderei considerar de todo equivocado o marxista que chamar à minha geração e à anterior de “alienadas”. Alienamo-nos de nós mesmos porque quisemos. Fugimos do provincianismo e chegamos – perdoem a comparação indevida – a uma situação cultural ainda mais vaga e frouxa que a daquela do Império, com a versão nacional do “ecletismo” de Victor Cousin, e pior: com saudade dos jegues.

Retornemos, portanto, à província. É o que nos aconselha Tolstoi: “Canta a tua aldeia e serás universal”.

segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

Conservadorismo Religioso Não se Salva - Uma Resposta a Nivaldo Cordeiro

Meu artigo comentando o artigo de João Mellão Neto foi por sua vez comentado por José Nivaldo Cordeiro em artigo (Direita, volver!) para o Mídia Sem Máscara. Temos ali um conservadorismo diferente daquele advogado por Mellão Neto e, antes dele, por André Lara Resende. Um conservadorismo religioso e primariamente moral, aparentemente distante da versão laica e puramente política dos outros dois autores. Os problemas, contudo, permanecem, e mesmo o recurso aos Evangelhos é incapaz de salvar o posicionamento de Nivaldo.

Em primeiro lugar, vejamos as críticas que ele faz a meu texto:

O autor comete o duplo equívoco de identificar a direita apenas com o conservadorismo, esquecendo dos liberais direitistas, e de associar os conservadores com o apego a formas sociais injustas já superados. São inimigos do cristianismo e não perdem tempo para difamar a religião de Cristo.
Sou inocente das duas partes do "duplo equívoco". 1) Fui bem explícito em dizer que "direita" engloba tanto conservadores quanto liberais (e, a bem da verdade, outras criaturas da noite, como tradicionalistas, monarquistas, etc.); por esse motivo, o termo é pouco útil, pouco informativo. 2) Não disse que os conservadores têm apego a formas sociais injustas. Disse, apoiado no texto de Mellão Neto (que ecoou Lara Resende e, até que se prove o contrário, Burke), que os conservadores têm apego a formas sociais estabelecidas, sejam elas quais forem; eles têm a tradição como um valor em si, independente dela ser boa ou má, justa ou injusta. Não os acusei de forma alguma de difamar a religião de Cristo; disse que, seguindo os critérios de conservadorismo apresentados, um judeu conservador do século I difamaria a religião de Cristo. Um conservador de hoje em dia obviamente louva essa religião, mais uma evidência do vazio moral que está no cerne desse pensamento. No que diz respeito à política, eu mesmo concordo com várias das bandeiras do conservador atual (defesa do direito de propriedade, responsabilização do criminoso individual e não da sociedade, etc.); sou o primeiro a dizer que eles defendem também formas sociais justas. Só que essa defesa se dá por motivos errados, e aí está o problema. Sigamos o texto de Nivaldo.

Segundo ele, a essência do conservadorismo está em defender "o núcleo permanente da moral cristã".  Ou seja, trata-se antes de tudo de uma postura moral, e não de uma doutrina política. Só que no que se funda essa defesa da moral cristã? "Na tradição e nas Escrituras". Note-se de partida, portanto, que é uma posição baseada na fé, sem qualquer apelo, portanto, a um japonês ou árabe que não partilhe dessas mesmas tradições e dessa mesma fé.

Nivaldo não deixa claro se os Mandamentos aos quais se referem são os Mandamentos antigos, presentes já no Antigo Testamento (sinteticamente, os Dez Mandamentos), ou se são a nova lei dada por Cristo aos discípulos. O plural dá a entender que são os Dez Mandamentos, mas a citação de S. João, embora usada para apontar um fato irrelevante (o fato do termo "permanência" ser repetido inúmeras vezes na passagem, como se contagem de palavras na Bíblia fosse argumento em prol de uma postura moral e agenda política que usem a mesma palavra), é justamente a passagem na qual Cristo "institui" sua nova lei: "amai-vos um aos outros como eu vos amei".

Bom, se o núcleo moral do conservadorismo forem os Dez Mandamentos, então é realmente infeliz que Nivaldo (e, presumo, Kirk?) enxergue o fundamento deles nas Escrituras e na tradição. A origem e o fundamento da ética revelada por Deus na Bíblia é a natureza humana; e a natureza humana é cognoscível pela razão; e quando derivada da razão, chamamo-la de lei natural. Deus revelou os Dez Mandamentos para facilitar a vida do povo rude, para dar-lhes de pronto um motivo fácil ("Deus mandou") para "não matar" ou "honrar pai e mãe", coisas que, mesmo que Deus nunca tivesse falado aos homens, seriam igualmente acessíveis à razão. Trocar a razão humana pela tradição é trocar o fundamento pelo efeito, e por um efeito incerto. Como a própria tradição é falível, e falhou diversas vezes ao longo de nossa história, usá-la como critério moral último (junto das Escrituras, interpretadas, é claro, à luz dessa mesma tradição) é cegar-se aos erros que ela pode conter. Quem toma água do rio longe da fonte, corre maior risco de encontrá-la poluída. E é também a rejeição da razão que faz com que seja um posicionamento sectário, incapaz de persuadir quem não comungue da mesma fé, e portanto inútil no mundo plural em que vivemos. É o custo de se preferir, na política, a tradição à lei natural.

Por outro lado, se o núcleo moral do conservadorismo for a lei de Cristo, que não é estritamente derivada da razão, mas depende também da confiança em Cristo e no amor de Deus por nós, então ele tem que necessariamente abrir mão de qualquer proposta política. A lei dada por Cristo é algo eminentemente pessoal e não diz respeito à esfera dos direitos, indo além dela. Não há nenhuma derivação política, ou mesmo moral imediata do "Amai-vos" (por isso, inclusive, que essa nova lei não abole a lei natural, mas a pressupõe). Com efeito, as tentativas de se instaurar o reinado universal do amor cristão na terra, associadas em geral a comunidades heréticas bem distantes do bom senso (ou, modernamente, aos hippies), nunca são duradouras e nem terminam bem. A lei que se presta ao pensamento político é a lei natural, aquela que nossa razão é capaz de apreender.

A política e a ética estão, e têm que estar, no campo da razão. Não é se curvando à tradição que se resolverá o problema moral e político, mesmo porque, embora eu considere o balanço moral do Ocidente superior aos dos demais povos, nosso passado também carrega suas (muitas) máculas, algumas delas  duradouras. É inútil se esconder atrás do tempo, dos antepassados, ou mesmo da Bíblia.

Ao elogiar o surto de moralismo e escândalo que tomou conta das eleições presidenciais passadas, Nivaldo apenas ilustra a fraqueza de sua própria posição: pois se aquela histeria é exemplo do que, na concepção dele, devemos almejar, se aquele é o tipo de debate político que ele espera do Brasil, então estamos num dilema entre o estatismo amoral e o fundamentalismo furioso. O ideal do conservador religioso está mais para uma turba de fanáticos do que para uma população educada e bem-intencionada.

Sim, a política no Brasil e no mundo é dominada por uma esquerda hegemônica, má e imbecil. Dá algum alento ver o surgimento de uma oposição a ela. Mas enquanto essa oposição se basear num moralismo de fundo religioso ou tradicional, isto é, no conservadorismo (que, não nego, nas condições atuais é menos danoso socialmente do que o progressismo), ela será ineficaz e burra; ineficaz porque burra. Quando tivermos claro que a oposição ao mau na política se dá com valores, e não com nostalgias fracassadas ou histeria religiosa condenatória, e que esses valores têm que vir da razão e não do medo de usá-la, daí sim, quem sabe, construiremos um Brasil melhor, mais rico, mais virtuoso e mais propício - para quem quiser - à vivência da lei de Cristo.

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

Nova Direita, Nascida Velha

Aos poucos o pensamento de direita tem chegado aos meios de comunicação de massa brasileiros, o que eu considero um bom sinal, pois significa que a obrigatoriedade de se ser de esquerda está acabando. É uma pena que a alternativa ao velho socialismo seja algo também velho (de espírito), e que tenta substituir valores ruins pela ausência de valores. Sim, falo do meu novo tema favorito: o conservadorismo.

Dessa vez foi João Mellão Neto, em artigo no Estadão. E ele começa com uma observação muito boa (talvez ela seja óbvia para muitos; eu nunca tinha me dado conta): a direita brasileira aliou-se, quase que por necessidade, aos militares; e ficou desde então associada à tortura, censura, etc. E ele também aponta, acertadamente, que a chamada "direita" é um balaio de gatos que engloba conservadores e liberais, duas coisas bem diferentes. E, mais curiosamente: é possível ser conservador liberal, conservador estatista, conservador democrata (que é o que o Mellão defende), conservador monarquista e até conservador socialista. Tudo depende do que estiver em vigor e for a "tradição" local.

Vejamos no que consiste esse conservadorismo que é uma das identidades da "nova direita".
"Em primeiro lugar, o conservador entende que os pensadores atuais são meros anões nos ombros de gigantes do passado. Eles acreditam enxergar mais longe, mas isso se dá unicamente em função da estatura de seus antecessores. No que tange a ideias, tudo o que existe já foi pensado ou implantado no passado. A única que medrou foi a da democracia liberal..."
E ainda: "Nenhuma ideia é plenamente nova. Tudo já foi pensado e idealizado. E se não foi implantado, é porque se mostrou inviável."

Convido meu leitor agora a um exercício imaginativo. Imagine-se a dialogar com um conservador - na definição dada acima - do século XIX brasileiro. Você, abolicionista entusiasmado, chega a ele com sua ideia revolucionária de acabar com a escravidão. O que responderia o velho conservador? [Perdoem os eventuais anacronismos de linguagem] "Não seja tolo, meu jovem. Não vê que nosso sistema já resiste há mais de trezentos anos? E antes dele, no Velho Mundo, tínhamos o quê? O trabalho servil. E antes dele, mais uma vez a escravidão. Claro está, portanto, que sua ideia de trabalho livre para todos é uma ideia radical, sem a menor noção de como nossa sociedade funciona, de nossas convenções e normas. Certamente alguém já pensou como você antes, e aqui estamos, ainda com a escravidão. O trabalho livre é simplesmente insustentável." Imaginem agora a reação de um judeu conservador do século I frente à novidade ensinada por Cristo...

Nos dias de hoje, o conservador defende a democracia liberal e o Estado intervencionista; em outros tempos, defenderia, com os mesmos argumentos, a monarquia absoluta e a escravidão. Mellão diz que para o conservador o novo não é necessariamente melhor que o velho. Mas a implicação lógica de sua doutrina vai além: tudo foi tentado e só o melhor sobreviveu; portanto, o que existe hoje em dia é melhor do que o que não existe (ou seja, não existe mais); logo, o novo (que não passa da repetição de algo velho e previamente descartado) é necessariamente pior que o velho. Somos anões em ombros de gigantes, e aparentemente incapazes de ver mais longe.

Isso é renegar a própria inteligência e deixar que os antepassados pensem por nós; uma forma de covardia intelectual, de se esconder atrás de uma autoridade supostamente infalível. E é também entregar o jogo completamente aos adversários. Pois a longevidade de uma instituição, embora dê a ela um caráter respeitável, não é prova de que ela é boa ou desejável em si. O socialista revolucionário apresenta um motivo para se ser contra a ordem democrática e liberal; como o conservador o rebate? "Nosso sistema é antigo". Mas pode ser antigo e péssimo, como eram as dinastias dos faraós. E cada mudança que os socialistas consigam impor (sob o nome de "reforma") vira, ela própria, uma instituição estabelecida, a ser preservada. O conservador defende hoje o que a esquerda defendia ontem.

Muito sintomático é que Mellão oponha o conservador ao "radical", outro termo que não denota nenhuma posição concreta. O radical é aquele que é consistente em suas crenças e convicções, levando-as até suas consequências lógicas. Isso pode ser bom ou mau. O oposto do radical, o moderado, é aquele que, por insegurança, cria limites arbitrários a suas propostas, para que elas não fujam muito ao senso comum. Um pouco dessa "insegurança", desse conservadorismo, é saudável no campo da prática; afinal, é possível errar, e o avanço gradual rumo aos objetivos permite correções e desvios prudenciais de rota. Mas isso se aplica aos meios; no reino dos fins, quem não é "radical" é apenas inconsistente, medroso. E o conservadorismo é uma ideologia medrosa: subjuga sua mente ao peso do passado, como forma de fugir da responsabilidade (em verdade inescapável) do pensamento individual.

Idade não é critério de acerto. A tradição acumula muita sabedoria, mas muita burrice também. Para distinguir um do outro, preservando o bom e descartando o ruim, é preciso julgar a própria tradição à luz da razão. O verdadeiro inimigo do conservadorismo não é o socialismo, ou a esquerda (que pode ser conservadora, como são os nossos velhos conservadores - ACM, Sarney, etc. - e como era a elite do partido comunista na União Soviética), mas a razão.

A frase final do artigo não poderia ser mais clara. À sociedade conservadora, que crê numa ordem moral permanente no universo, Mellão opõe a sociedade hedonista. "Mas se, por outro lado, não passar de uma malta de indivíduos ignorantes das normas e convenções, voltados exclusivamente para a imediata satisfação de seus apetites primários, essa sociedade, por melhor que seja o seu governo, desaparecerá." O que sustenta a moral social são simplesmente as normas e convenções; se as abandonarmos, cairemos no hedonismo animalesco. Temos que escolher entre a devoção a normas e convenções (o passado como critério absoluto) ou a esbórnia niilista. O que foi suprimido nessa dicotomia maléfica é justamente a vida da virtude, a vida racional, que não é nem obediência cega, nem desvario alucinado. E é justamente esse valor (que por mais antigo que seja, será sempre jovem) que falta aos parâmetros éticos e políticos dos dias de hoje; não a ideologia de quem já desistiu do mundo, que por mais que compre roupas novas, será sempre velha.

terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

Como Inutilizar a Política, ou O Movimento Conservador

Ao invés de, nas eleições, discutirmos política, economia e questões de Estado, que tal prendermo-nos em questões morais pontuais? Foque num tema (casamento gay, aborto, drogas, suicídio assistido) e exclua todos os outros. Dê atenção demasiada, também, para a vida pessoal do candidato: a campanha deve virar um palco de fofocas maldosas; quem sair menos prejudicado delas, ganha. E assim a irrelevância vira o foco. Gostou da proposta? É o que os conservadores têm feito à perfeição. É que eles confundem salvação da alma com administração pública; um erro comum.

Quando digo que as questões morais pontuais são irrelevantes, não falo do ponto de vista moral. Falo do ponto de vista político. O que importa, por exemplo, se o governo dá respaldo e um pedaço de papel aos casais gays? Isso é consequência, na prática inevitável, de um processo cultural de longa data. Mudar isso requererá algo mais profundo que a vontade de um político e briga eleitoral. E, uma vez aprovado o casamento estatal gay, no que isso prejudica as famílias, igrejas ou quem quer que seja? O mesmo se dá no campo da virtude pessoal: o que importa se um candidato teve ou não uma amante? Que os conservadores se prendam a isso mostra apenas o quão descolados estão do mundo real, contentes em seu conto-de-fadas em que os melhores políticos são os indivíduos mais virtuosos; o que, dada a mesquinhez das massas, em geral significa os mais certinhos. Digo que esses estão, não raro, entre os piores!

Das questões morais em pauta, a única que merece atenção política é, na minha opinião, o aborto, pois ela envolve a violação direta de um direito fundamental alheio. Mesmo ela, contudo, é relativizável, posto que um político (ainda mais do Executivo, que é onde o moralismo tem tomado mais conta) tem poder muito limitado para mudar a lei na direção que for; vide George W. Bush nos EUA (que não proibiu o aborto), e todos os presidentes desde a redemocratização no Brasil (que não o legalizaram). É imoral votar num presidente a favor do aborto? Então quem votou em FHC foi imoral. E se bobear FHC - ateu e de esquerda - era, em 94 e 98, mais a favor do aborto do que Lula, cria da TL (que, apesar de todos os pesares, é contra o aborto).

Por isso é tão desalentador ver o apoio efusivo recebido por Rick Santorum na disputa americana; um candidato cujas únicas credenciais são seus "valores conservadores" e sua vida pessoal. Ele tem todas as opiniões da cartilha sobre questões morais (mais algumas próprias dele, como o combate aos contraceptivos e a reabilitação histórica das Cruzadas); quer também bombardear o Irã e se bobear o resto do Oriente Médio; usa analogias tiradas do Senhor dos Anéis para se referir à guerra do Iraque; vai barrar os imigrantes ilegais. Não sabe nada de economia, repete as fórmulas da vez, jurando que discorda em tudo do Obama. Se eleito, deve colocar em prática a mesma responsabilidade fiscal e o mesmo "livre mercado" de George W. Bush. Ah, - dirá o mui piedoso conservador - contanto que ele mantenha a referência a Deus na cédula do dólar, tá valendo!

A importância dada ao caráter moral é também muito curiosa. A insistência na virtude pessoal do governante é feita por clérigos e intelectuais desde pelo menos a Idade Média (talvez em Roma também?), mas raramente - e em alguns períodos curtos e negros da história europeia - é levada a sério. Os founding fathers americanos eram exemplos de santidade moral? E a imensa maioria dos reis europeus, nosso D. Pedro I incluso? A quantidade de filhos bastardos já os desqualificaria numa corrida presidencial atual. Contra Newt Gingrich, o argumento que pegou não foi seu diletantismo (embora muito inteligente, não tem uma teoria consistente para se guiar; é mais Estado para tudo, junto com uma retórica de livre mercado), mas o fato de ter traído esposas e, acima disso, ter possivelmente proposto a uma delas um casamento aberto. O Papa S. Pio V foi um santo; mas seu reinado foi politicamente ruim para a Igreja. Sua inimiga, a rainha inglesa Elizabeth, teve amantes (e para um monarca a aura de virtude é mais importante que para um líder democrático), e foi uma das maiores monarcas da história do país. Robespierre era mais probo e honesto que Luís XVI. Savonarola, mais puro que os Médici. Quem foi o melhor líder?

A campanha de Santorum, ao apelar, antes de tudo, para "valores", apela para o que há de mais medíocre e moralista no eleitorado americano. Se ele vencer, iupi!, os americanos não precisarão temer o casamento gay e ONGs contrárias ao sexo pré-conjugal ganharão mais dinheiro e/ou apoio. E os EUA continuarão no mesmo caminho do socialismo crescente, da burocratização e controle estatal da vida humana, do déficit insustentável que se reverterá em mais impostos e da inflação da moeda; com todos os efeitos morais que essas situações engendram. Mas nada disso importa, agora que os candidatos republicanos descobriram que seus votos dependem apenas de afagar a consciência do eleitorado conservador com promessas de combate aos males terríveis deste mundo anti-cristão. A preocupação moral exacerbada por parte dos eleitores alimenta o oportunismo cínico dos candidatos, que ao invés de ideias e propostas gritam os slogans e repetem os ditames da sharia da vez.

Politicamente,a estratégia tem sido questionável. Santorum conseguiu, de saída, alienar todos os homossexuais e simpatizantes (em entrevista sua em 2003, ele disse ser a favor dos governos coibirem relações sexuais homossexuais por serem uma "ameaça à família"). Isso é um feito, pois fez com que seus valores sejam não só o motivo pelo qual é apoiado, mas também pelo qual é detestado. É duro afirmá-lo, mas vamos lá: mesmo com uma família unida e feliz é possível ser um total incompetente e ignorante no que diz respeito a governar um país.

Vejam o exemplo alternativo, de Ron Paul: pessoalmente, ele parece ser uma figura exemplar: avô, casado, médico obstetra por muitas décadas, fiel, respeitoso, amável. Nunca ficou alardeando sua família ou seus valores da família por aí. Sua campanha é baseada em ideias: ideias sobre como o governo americano deve ser e agir. A campanha de Obama de 2008 também o foi (a de 2012 dificilmente será; vai ser de contenção de danos e de aposta no pragmatismo do possível, junto com a demonização do republicano rival, trabalho que será muito facilitado se o oponente for Santorum). Nesse sentido, Romney também é superior a Santorum: sua campanha baseia-se na ideia de que o governo pode e deve ser eficiente, como uma empresa de sucesso, área na qual Romney tem experiência. Infelizmente, na hora crucial de defender a demissão de funcionários, recuou; se nem ele acredita em sua mensagem, quanto menos os eleitores! É outro que, embora moralmente exemplar, não faz da moral sua bandeira primeira; é um (e o único) Republicano plenamente mainstream na corrida.

O efeito da ascensão conservadora dos dias de hoje tem sido "moralizar" a política; elevando questões secundárias ao primeiro plano. O resultado primeiro disso foi o aumento exponencial da fofoca e da hipocrisia (já pensaram esse tipo de campanha na época do Kennedy, do Nixon ou mesmo do Reagan?). O segundo será eleger um total inepto cujo grande mérito é ter seis filhos, querer proibir a sodomia e se enxergar como um tipo de cruzado moderno contra o inimigo sarraceno. E então colheremos os tão esperados frutos do conservadorismo; e pelos frutos o conheceremos...

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012

Transhumanismo e uma “nova” teoria da mente

O Transhumanismo é um movimento que surgiu há duas décadas e que defende que o homem deve buscar uma integração com as máquinas, gerando o que é conhecido como pós-humano. Apesar desse movimento e a roupagem que ele utiliza serem bem recentes, a ideia de se fundir com os outros materiais é um sonho antigo da humanidade, presente em mitos gregos, indianos, chineses, etc. Mas dada a evolução recente da tecnologia, pela primeira vez na história esse sonho parece algo factível, principalmente quando entendemos a dinâmica da ciência como algo que segue a Lei de Moore.

Em alguma medida somos todos Transhumanistas na atualidade. Achamos comum o uso de implantes dentários, válvulas no corpo e até mesmo quando isso é utilizado para questões estéticas, como o silicone. O ponto que começa a gerar problemas para algumas pessoas é quando a máquina que está sendo inserida no ser humano passa a torná-lo mais poderoso que os humanos normais, como algumas pernas que podem vir a existir nos próximos cinco anos. Sendo assim, haverá aceitação de uma pessoa que mesmo com uma perna sadia resolver arrancá-la e colocar uma feita em laboratório? E a questão da imortalidade do indivíduo, a humanidade está preparada para enfrentar as mudanças drásticas que vão ocorrer nesse processo?

Falando em imortalidade, acabei escrevendo sobre esse tema porque tive uma discussão recente sobre a possibilidade de transferir a mente de uma pessoa para um recipiente para em seguida ser colocada em outro corpo; a questão girou em torno desse assunto porque já tínhamos estabelecido que todas as outras partes do corpo poderiam ser alteradas sem nenhum problema. O primeiro problema dessa discussão é conseguir chegar a um consenso sobre o que nos torna um indivíduo. Minha visão da questão pode ser entendida utilizando alguns nomes da informática. Para mim o cérebro é o hardware e a mente é o software. Sendo assim, não ajuda em nada ficar tirando ressonâncias e tomografias do cérebro porque elas não vão dizer muita coisa, só irão mostrar onde determinadas capacidades (programa) estão rodando no cérebro; você não vai encontrar conceitos escritos em algum lugar do tecido cerebral e nem mesmo quem você é. Com isso, a minha definição do Eu (indivíduo) é o software único que está em funcionamento na cabeça de cada um.

Com essa definição, não consigo ver nenhuma impossibilidade de se transferir o Eu de determinada pessoa para um novo corpo gerado para ela, mantendo a vida dessa pessoa eterna. Uma das alternativas a essa ideia de ver a mente como um software é a que considera que o Eu está fisicamente presente no tecido cerebral; ou até mesmo a corrente que entende que o Eu está na alma e por isso não pode ser encontrado.
Lembro que quando ainda era muito pequeno já conhecia essa ideia de que o Eu se encontrava no espírito devido a minha mãe ser espírita. Curiosamente sem ter o menor contato com Transhumanismo ou qualquer coisa parecida Eu vivia dizendo que não iria morrer nunca (com minha mãe acrescentando, já que Eu não lembro, que Eu dizia que quando ela ficasse velha era só tomar uma pílula que rejuvenesceria novamente) e cheguei a propor uma alternativa para testar essa hipótese da mente existir no espírito, que era fazer um transplante de cérebro entre duas pessoas; porque se os corpos se trocassem, ao menos teríamos uma evidência forte de que de alguma forma o Eu se encontra dentro da caixa craniana, mesmo ainda existindo a possibilidade do espírito acompanhar o cérebro, etc.

Mas somente nessa teoria do Eu conter no espírito que não permite que a tecnologia nos torne imortais, porque na teoria do Eu estar grava no cérebro e ser a ligação entre os neurônios, é só uma questão de desenvolver a técnica certa para extrair o Eu de um corpo e passá-lo para outro.

Sendo assim, não há nenhum impedimento teórico que impeça o desejo dos Transhumanistas; tudo então não passa de uma questão de tempo até que a tecnologia necessária seja desenvolvida, e boa parte das lideranças do movimento acredita que em no máximo 50 anos já estaremos vivendo dessa forma no mundo, juntamente com a inteligência artificial.

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

O patrimônio histórico importa?

Às vezes chego a pensar que devo ser o único mineiro que não gosta de Ouro Preto; ou colocando em outros termos, o único que defende o tombamento da cidade, mas no sentido literal da palavra. Não consigo vislumbrar qual o motivo de ficar preservando cidades como Ouro Preto, Mariana, Tiradentes e outras centenas de cidades históricas que existem em Minas Gerais. Mas como Eu geralmente sou mal compreendido quando falo essas coisas, vou tentar aqui formalizar os motivos que me levam a ser contra “tudo que está ai”, abordando o tema por meio de questões utilitárias e alguns argumentos soltos que podem entrar em qualquer outra categoria.

Do ponto de vista da eficiência a preservação do Barroco mineiro é um monumento ao atraso e à ineficiência; ruas estreitas, falta de rede de esgoto decente (quando elas existem), impossibilidade de utilizar novos materiais e uma gigantesca burocracia para alterar qualquer mínimo detalhe das construções. Isso não apenas atrasa o progresso, mas o transforma em um vilão, quando o contrário é a verdade. Já cansei de ouvir casos de pessoas que adquirem alguma coisa que não tem importância alguma e depois de fazerem uma reforma recebem uma notificação do ministério público dizendo que eles têm que demolir tudo e refazer exatamente do jeito que estava antes. E o uso desse exemplo não tem o objetivo de pegar uma exceção e tentar provar algo geral; isso é algo que acontece recorrentemente, em fazendas e casas que nenhum turista nunca pensou em visitar.

Sobre turistas, não tenho os números do turismo de Ouro Preto (até porque eles não existem), mas a minha impressão pessoal é que ninguém visita aquele lugar, e os poucos que visitam não deixam lá muito dinheiro. Os únicos locais que retêm algum dinheiro são uns 2 ou 3 restaurantes absurdamente caros para o local e alguns hotéis aquém do preço cobrado. Turista mesmo que vai pra lá é mineiro e algumas pessoas de fora do estado, o que na maioria das vezes não é devido à cidade e ao patrimônio histórico em si, mas a alguma festa, quando realmente a cidade fica cheia, o que mostra que preservar a velharia que tem lá não traz nenhum benefício.

Mas a crítica não fica apenas no quesito eficiência. Talvez a questão moral seja o maior problema em preservar o Barroco. Acredito que cada indivíduo deve sempre buscar o melhor para sua vida, e isso significa abraçar em alguma medida as maravilhas tecnológicas que estão à nossa disposição, e quem gosta de morar em uma construção de no mínimo três séculos atrás não tem uma mentalidade voltada ao progresso, o que considero algo altamente desagradável e de alguma forma condenável.

E não é que Eu seja contra preservar coisas antigas, é que não há sentido em preservar algo além de objetos e estátuas em um museu, já que assim eles não vão atrapalhar o desenvolvimento do local. Congonhas, que é uma cidade horrível devido às leis de preservação, fica parada no tempo por causa de meia dúzia de estátuas de Aleijadinho e uma igreja. Que arranquem as estátuas e coloquem no museu e tentem fazer o mesmo com a igreja; mas não faz sentido condenarem toda a cidade ao atraso.

Mas deixando a questão um pouco mais ampla, o Barroco Mineiro não é algo digno de ser preservado como as Pirâmides do Egito, a Grande Muralha da China ou alguma catedral europeia. Essas coisas sim são um marco civilizatório; são relacionadas a quebras de paradigmas e grandes feitos durante a nossa história, na maior parte das vezes em sua era de ouro. Já o Barroco Mineiro representa apenas um período de extrativismo/exploração que não criou nada de novo, sendo superado em importância talvez até pelo ciclo da borracha no norte do Brasil, que criou algo de novo e era movido por uma mentalidade progressista (no sentido antigo e correto dessa palavra). A civilização portuguesa em si é demasiadamente carente de conquistas; talvez com algum exagero possamos considerar as grandes navegações, mas, como isso é supervalorizado no ensino de história do Brasil, nem tenho tanta certeza se globalmente esse fato foi algo relevante.

Por fim, a implicância com Ouro Preto é que essa cidade acaba servindo pra mim como um bastião representando tudo que há de atrasado no mundo, pois não consigo entender como a principal cidade do Brasil no começo de sua história conseguiu, com o ciclo de exploração do ouro, se tornar apenas isso, um morro com ruas estreitas e sujas que não produziu nada de bom.

P.S.: Acredito que da mesma forma que não temos um pensamento sério no Brasil, não temos uma modernidade séria no Brasil.

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

Os Usos de um Crime

Lola Aronovich é a blogueira feminista mais lida do país. Mais sã e razoável do que se poderia esperar de uma acadêmica, ainda assim dá larga vazão aos vícios intelectuais favoritos da classe. Ela ontem noticiou e comentou um crime bárbaro que ocorreu em Queimadas, Paraíba. Embora tenha ficado indignada com certos comentários preconceituosos (que ocorreram onde? Em alguma caixa de comentário perdida? Para quê dar publicidade a tais excrecências da web e tratá-las como fato socialmente relevante?), fez questão, ela também, de usar o crime para seus próprios fins: como trampolim para defesa de sua causa via chantagem moral.

Pois qual é, segundo Lola, a causa de um crime horroroso de estupros múltiplos premeditados como esse? Misoginia. Em certo sentido até concordo com ela: quem comete um crime assim, deve ver as mulheres só como objetos para sua satisfação sexual, e provavelmente trata todas as pessoas, independente do sexo, como instrumentos. É alguém sem a mínima capacidade de empatia. Só que Lola vai além; por misoginia ela quer dizer uma opinião ideológica. E mais: que seria partilhada e ensinada por toda a sociedade. Assim, o crime não é algo que fere os princípios da sociedade, mas manifestação particular deles.

"Estupro não é visto como ódio às mulheres, nem como violência. É visto como um pequeno descontrole, algo puraramente biológico (é o instinto do macho que o leva a isso! –- se eu dissesse algo assim eu seria misândrica, mas como são os homens que falam, tudo bem), e as mulheres não perdem muito no processo, é só sexo, não tira pedaço."

Vejam como se misturam opiniões bastante razoáveis, até evidentes, com outras obviamente falsas e detestáveis, como se fossem a mesma coisa. Estupro é "ódio às mulheres"? Será que alguém estupra uma mulher por odiá-la, ou por odiar o gênero feminino em geral? É capaz. Mas será sempre o caso? Não será possível que talvez, só talvez, estupro tenha algo a ver com desejo sexual? 

É fundamental para o feminismo que o estupro não seja visto como fruto de um impulso biológico (o impulso sexual), pois se for, então a culpa não é das opiniões ensinadas pela sociedade e pela mídia machistas, mas do indivíduo incapaz de controlar seus impulsos mais primais. E daí não existe "culpa coletiva" a se expiar; restará apenas a boa e velha educação moral de saber controlar as próprias paixões e de exercitar a capacidade de se colocar no lugar do outro.

Para fugir desse óbvio ponto fraco, ela tem que pintar a opinião contrária da forma mais ridícula possível. Ou defende-se, como ela, que estupro vem da misoginia, ou então adere-se à opinião de que se trata de um pequeno descontrole (o serviço que os qualificativos prestam à preguiça intelectual...) e um ato sem maior importância, do qual o homem não é culpado; posição ridícula, e que ninguém em sã consciência defende, nem mesmo a maioria dos supostos misóginos que fazem bravatas e comentários nojentos no youtube ou em mesas de bar. Na hora de falar sério, ninguém pensa assim. A não ser, é claro, os masculinistas (sim, isso existe!), um grupinho bizarro, minúsculo, com ideias tão malucas e tão obviamente oriundas do ressentimento e da auto-frustração que não existe motivo imaginável para se trazê-los à discussão que não seja servirem de espantalho. Como se representassem, de alguma maneira, uma opinião geral e aceita na sociedade. Pois de onde ela tira que estupro "não é visto como violência"? Em que sociedade/planeta ela vive? O fato de se fazer piada com estupro não significa nada, assim como o fato de se fazer muitas piadas sobre homicídio e até sobre genocídios também não significa que tais crimes sejam socialmente aceitos ou minimizados.

O fato de uma patota de psicóticos e alguns comentários de blog dizerem algo não é prova de que "os homens" pensam assim, que fazem isso ou fazem aquilo; de que há algum tipo de conspiração masculina para abafar o tema do estupro e silenciar as mulheres. Muitos estupros são cometidos, e é um crime sério; aliás, aposto que a maioria das pessoas que defende pena de morte (homens inclusive) a defendem exatamente para assassinato e estupro, o que indica (se minha aposta estiver correta) que os homens, mesmo os mais reacionários e menos feministas (pois, embora sejam coisas distintas, há clara relação negativa entre feminismo e defesa da pena de morte), vêm o estupro como algo sério.

Os homens se calam frente ao estupro, e silenciam as pobres mulheres que tocam no assunto, acusando-as de se vitimizarem. Ora, e alguém nega que o discurso feminista seja vitimista ao extremo? É o discurso de quem não quer deixar de ser vítima por nada neste mundo, pois o coloca (ou a coloca) numa posição de fazer chantagem moral e espiritual com o resto da sociedade; uma relação mutuamente maléfica, não tenho dúvidas, mas que em certas lógicas distorcidas parece ser bom para o chantagista. Prova disso é que mulheres educadas europeias e americanas têm a coragem de dizer que sofrem opressão similar ou comparável ao que ocorre na Arábia. A chantagem funciona convencendo os ouvintes de que eles são culpados por associação de crimes terríveis como esse, e sente-se então obrigado a expiá-los defendendo a causa da vez (feminismo, consciência negra, direitos dos anões; escolha o seu); se disser algo contra, estará automaticamente do lado dos assassinos, estupradores e preconceituosos. 

Ao fim do texto, Lola nos presenteia com sua fina ironia brechtiana: "E dessa forma a gente pode fingir, feliz, que a ideia de estuprar mulheres como presente de aniversário é algo que só acontece na mente de uns poucos doentes." - E não é algo que só acontece na mente de uns poucos doentes? E da mente desses poucos "doentes" (na verdade não são doentes, mas simplesmente maus, ativa ou passivamente) concretiza-se de vez em quando na realidade; felizmente, é um crime raro, e por isso mesmo choca. Um crime de alguns homens contra algumas mulheres não é um crime "dos homens" contra "as mulheres".

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

Utilitarismo Cristão

A preocupação maior do Cristianismo é a salvação da alma. É a melhor coisa que podemos querer para nós mesmos e para os outros. O amor cristão é compatível, em casos extremos, com querer até mesmo a morte do próximo (por exemplo, se for um terrorista perigoso), mas não - nunca - sua perdição eterna. A "salvação das almas", entendida genericamente, é, segundo alguns, o princípio que deve guiar os atos individuais.

Chegamos assim a uma espécie de utilitarismo cristão. O bom cristão é aquele por cujas ações salvar o maior número de almas possível e que, obviamente, queira salvá-las; se um homem comete um crime terrível com a intenção de ficar rico e, acidentalmente, isso acaba convertendo e salvando milhões de seres humanos, isso não faz dele um homem bom. (É óbvio que quem salva os homens é Cristo; aqui estamos usando a linguagem popular, a mesma que usamos ao dizer que fulano converteu ciclano.) E como a salvação da alma é, sem dúvida, o evento com maior utilidade imaginável (utilidade infinitamente maior do que mesmo o maior deleite possível aqui neste mundo), pode-se mesmo dizer que o bom cristão busca maximizar a utilidade (ou felicidade) do maior número de pessoas; só que isso se faz mandando suas almas para o Céu.

Mas e se for possível, pecando, salvar uma alma? A resposta tradicional é que não se deve fazê-lo, mas sempre junto da convicção de que é quase impossível haver um dilema desse tipo. Afinal, a comunhão dos santos é tal que uma boa ação, uma ação movida pela caridade, beneficia a todos os homens; e uma má ação, mesmo que tenha efeitos imediatos bons, prejudica a vida espiritual dos demais cristãos. E que mesmo esse efeito imediato bom dificilmente incluirá a salvação de uma alma. Afinal, como isso seria possível? Matando alguém que está em estado de graça? Mas você nunca sabe se uma pessoa está realmente em estado de graça.

Só que existe uma situação na qual essa relação acidental entre pecado e salvação da alma alheia (pois a relação essencial é entre virtude e salvação) pode ser consistentemente produzida. Isso ocorre porque existe um estado da vida, plenamente observável (ao contrário do estado de graça nos adultos), em que, se o indivíduo morre, ele vai com certeza absoluta para o Céu: o do bebê batizado.

A salvação de um homem adulto é incerta (segundo os Verdadeiros Católicos, é quase certo que a maioria das pessoas no mundo moderno se destinam ao Inferno). A de um bebê batizado é infalível. Portanto, se aceitamos que a salvação da alma é um bem tal que comparado a ele todos os outros são praticamente irrelevantes (é comparar o infinito ao finito), segue-se que o homem que mata um bebê batizado lhe faz um grande serviço: priva-lhe de uns noventa anos de felicidade imperfeita e lhe garante, desde já, a felicidade perfeita e eterna.

Alguém pode contra-argumentar que o bebê que morre e vai para o Céu não teve tempo de ser bom e virtuoso, e que portanto a alma do adulto que se salva tem uma felicidade maior no Céu. Logo, pode ser um desserviço ao bebê matá-lo para que ele garanta o Céu. Essa objeção não procede. Primeiro porque a felicidade essencial de todos os salvos é a mesma; a diferença é apenas acidental, ou seja, finita; uma ou duas cerejas a mais no mesmo bolo. Esse ganho acessório não pode ser comparado ao ganho básico que é garantir a salvação da alma. Ademais, é bem capaz que muitas pessoas que se salvem cheguem ao fim da vida num estado espiritual pior do que o bebê; isto é, mais voltados para o mal do que para o bem. São salvos por se arrependerem, quererem de forma tíbia o bem, embora seu deslocamento durante a vida tenha sido mais na direção contrária. Chegar à idade adulta, portanto, torna a salvação incerta e, mesmo que o indivíduo se salve, não garante que seu estado beatífico seja melhor do que o da alma do bebê que morreu sem pecado.

(Olhando o bebê, não temos como saber se ele, quando for adulto, se condenará ou se salvará, e qual será o estado final de sua alma. Portanto, na falta de maiores informações, e sendo conservadores, supomos que haja 50% de chances de uma pessoa se salvar e que, dos que se salvam, 50% estão melhores que a alma pura dos bebês e 50% estão piores. Ou seja, comparando as utilidades esperadas (tendo a salvação como 100 e a perdição como zero) temos: bebê batizado: 1*100 = 100. homem adulto: 0,5*0 + 0,5*(0,5*99 + 0,5*101) = 0 + 0,5*100 = 50. A utilidade esperada do que morre bebê é maior do que a do que morre adulto. Se quisermos maximizar o número de salvos ou a beatitude esperada, matar os bebês batizados é a melhor estratégia.)

Portanto, um serial killer católico, que matasse o maior número de bebês batizados (se considerarmos acertada a crença mais aceita hoje em dia de que não há Limbo, e que portanto mesmo os bebês não-batizados são salvos, a qualificação batizados é desnecessária), não por sadismo ou sede de sangue, mas para garantir a salvação de suas almas, estaria agindo bem? Ora, ele certamente estaria tomando a "salvação das almas" como o guia máximo de seus atos. Estaria condenando sua alma ao Inferno? Sim, mas o que é a perdição de uma alma se comparada à salvação de milhares e milhares de outras? E sacrificar-se pelo bem do outro não é justamente a mais nobre ação possível? Pois esse homem sacrifica seu bem máximo, a salvação, para que o resto do mundo a alcance. Ele quer a melhor coisa possível para o próximo, e seu desejo não fica estéril: ele garante com certeza absoluta que o próximo ganhará esse bem. Não seria nosso serial killer católico, verdadeiramente, um santo?

***

É óbvio que o assassino em questão é um monstro, e não um santo. Quero apenas indicar como certos lugares-comuns, alguns deles bem tradicionais, com os quais se tenta explicar e formular filosoficamente a ética cristã, não dão conta do recado. A pergunta de se a pessoa deve estar disposta a ir para o Inferno para que outra seja salva é sempre respondida - e acertadamente, na minha opinião - com um "não". Mas é uma restrição imposta, extrínseca e até meio contraditória com o resto da ética, formulada em termos de que "fazer o bem é se sacrificar pelo próximo", "tudo deve ser feito pela salvação das almas", ou ainda que a vida neste mundo não importa, só importa a salvação da alma.

Resta, então, a pergunta: Onde está o erro no raciocínio do serial killer cristão; ou, melhor dizendo, de nosso utilitarista cristão? Por que sua ação não é boa?

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

Sobre poesia contemporânea, com ênfase no caso brasileiro

Cartas a Um Jovem Poeta é a compilação das dez cartas que Rainer Maria Rilke endereçou, no período de 1903 a 1908, a um jovem aspirante a poeta. Nelas Rilke discute a natureza da poesia e daquele que dela se ocupa, entre outras reflexões sempre agudas, serenas, cuidadosas, sobre os mais variados temas.

Mas passemos de uma vez ao fato interessante: o livro se tornou, contemporaneamente, em verdadeira Bíblia do poeta wannabe. Cansei de ver e ouvir seus trechos serem utilizados para fundamentar as inclinações literárias de meus companheiros de geração. Sobretudo a idéia expressa no trecho a seguir:

Pergunta se seus versos são bons. Pergunta-o a mim, depois de o ter perguntado a outras pessoas. Manda-os a periódicos, compara-os a outras poesias e inquieta-se quando suas tentativas são recusadas por um ou outro redator. Pois bem – usando da licença que me deu de aconselhá-lo –, peço-lhe que deixe tudo isso. O senhor está olhando para fora, e é justamente o que menos deveria fazer nesse momento. Ninguém o pode aconselhar ou ajudar – ninguém. Não há senão um caminho. Procure entrar em si mesmo. Investigue o motivo que o manda escrever; examine se estende suas raízes pelos recantos mais profundos de sua alma; confesse a si mesmo: morreria, se lhe fosse vedado escrever? Isto, acima de tudo, pergunte a si mesmo na hora mais tranqüila da sua noite: “Sou mesmo forçado a escrever?”. Escave dentro de si uma resposta profunda. Se for afirmativa, se puder contestar àquela pergunta severa por um forte e simples “sou”, então construa sua vida de acordo com essa necessidade.


Assinalemos, antes de tudo, a razoabilidade do trecho. A lição é simples e digna: que não se pronuncie aquele cuja contribuição não se impuser como necessidade, oferecendo-se ao invés como coisa supérflua, fruto de vaidade ou tédio ou o que for. Para Rilke, o poeta sabe fazer essa distinção, como é possível saber que se desafina ao cantarolar uma música, ou que não se é bem-vindo num determinado ambiente.

Se é realmente possível sabê-lo, ainda assim é preciso notar a sutileza da noção em jogo e a conseqüente dificuldade da tarefa de abarcá-la. Há cem anos, quando Rilke teceu suas considerações, “voltar-se para si mesmo” ainda não tinha o significado viciado que tem hoje, quando a tendência espontânea geral é ler frase ao pé da letra como “ignorar tudo que não seja meu umbigo, seguir meus instintos primevos e deplorar toda e qualquer exterioridade” – ao passo em Rilke tinha em mente, pelo contrário, o colocar-se em perspectiva para buscar sua genuína vocação. Ele se permite o uso de termos metafóricos, por vezes um tanto vagos, porque nem sequer lhe passa pela cabeça que “escavar dentro de si mesmo” possa prescindir de uma consideração profunda dos arredores em que o ser se encontra, único meio de localizar-se com a devida precisão. (O próprio tom fraterno, jamais perdendo de vista a existência concreta de seu interlocutor, empregado por Rilke em Cartas a Um Jovem Poeta já bastaria para demonstrar que a apologia da solidão presente no livro jamais contradiz e em verdade depende da noção de alteridade somente por meio da qual um sujeito, em sua solidão, pode chegar ao conhecimento de si mesmo.)

Mas o contemporâneo aprendiz de poeta, ao invés de uma reflexão honesta sobre seu papel – sua vocação – enquanto escritor, vê nas palavras de Rilke a confirmação do que ele (o aprendiz) sempre sentiu ser a verdade sobre si mesmo e sobre o mundo: só ele próprio tem existência concreta e às favas que vá o mundo.

Essa atitude redunda no desdém dos poetas contemporâneos pela tradição em torno da qual se consolidou o gênero poético e no pouco estudo que dedicam aos únicos mestres possíveis a todos que se desejem continuadores de tal arte. O poeta contemporâneo se basta a si mesmo, ou assim se pretende. Nenhuma erudição é páreo para sua escrita automática, único modo de captar a “fugacidade e imponderabilidade” de seu ser e sua existência.

Porém errôneo seria dizer que tudo isso se dá consciente ou voluntariamente; que essa coisa amorfa chamada poesia contemporânea, sobretudo a brasileira, erige seu programa em torno da negação da tradição e da prática do automatismo. Não; não se pode falar disso senão com respeito à primeira metade do século vinte, quando eclodiu e enraizou-se culturalmente o movimento modernista. Nós, literatos do século vinte e um, estamos sem rumo há pelo menos cinqüenta anos e nada seria mais risível do que atribuir um “programa” a nosso desnorteamento. Nos determina a pura e simples política da idiotização generalizada, que se edifica sobre as bases sólidas dos quinze anos de acefalização em que consiste a vida escolar do brasileiro. De modo que o bom poeta o qual, contra a corrente e se valendo de seus próprios recursos, consiga suspender a cabeça para fora dessa água causticante – encontra apenas o silêncio gélido da falta de leitores. Vá lá que uns ou outros, sobreviventes como ele, venham a apreciá-lo; ainda assim, para um poeta produzindo no Brasil nos dias de hoje, é precisamente utópico sonhar com um grande alcance para suas obras. Ou seja, ele pode até fomentar a revitalização de sua cultura a longo prazo, mas deve estar certo de que não viverá para colher os frutos últimos desse processo.

É verdade também que o desprezo pela tradição poética nem sempre se dá no nível do discurso. O que se vê no mais das vezes é um puro e simples despreparo intelectual, que produz no protoartista um embasbacamento paralisante diante de qualquer poema de Camões, estabelecendo léguas de distância entre o aprendiz de poeta e o que lhe parece um cânone inalcançável. Os brasileiros hoje não temos, para início de conversa, qualquer noção de ritmo, de musicalidade poética. O uso de métrica na escrita é tão estranho à forma de nosso pensamento quanto cores para alguém que tivesse morado a vida toda num iglu na Antártida. Qualquer farmacêutico há cento e cinqüenta anos seria capaz de compor um sonetinho duro, desses bem bobos, fórmula pronta. Mas os poetas de hoje (esqueçamos, em absoluto, os farmacêuticos) continuam prestando favores ao Concretismo de cinqüenta anos atrás e ao poema-pílula que era muito interessante em 1922 – apenas porque ambos, embora em teoria representem a epítome do tecnicismo, a hipérbole da poesia condensada, oferecem uma máscara fácil aos que se queiram passar por muito inteligentes sem ter em verdade o que dizer (nas palavras de Rilke, sem terem a vocação de qualquer coisa dizer).

Trata-se, com efeito, da convergência de diversos fatores culminando no que se pode sem medo chamar de ausência de cultura poética no Brasil. (Tendo a acreditar que alguns desses fatores sejam mais ou menos universais e se apliquem à situação da poesia no Ocidente como um todo – não faço a menor idéia do que se passa em culturas mais exóticas –, porém me furto a afirmar qualquer coisa nesse âmbito maior, pois me falta conhecimento de causa específico; e, principalmente, é possível que a cena em países mais desenvolvidos seja muito superior à do Brasil, no mínimo em virtude de uma educação mais decente, tanto de base quanto superior.) O primeiro desses fatores foi o estabelecimento de uma nova noção de poesia, de uma nova dicção poética – aquela inaugurada pelo Modernismo e desde então esgarçada até sua sublimação para além da literatura, com o poema pulverizando-se para fora do papel, reduzido a seus átomos e lançado ao espaço sideral, transformado em vacas de plástico pelas ruas de São Paulo e apresentações em formato Flash e Power Point.

Essa mudança no modo de se abordar a poesia a partir do início do século vinte já surgiu como uma tentativa de se abarcar a novidade – notadamente, a velocidade – da vida moderna, cujo símbolo são as grandes metrópoles globalizadas. Porém o que se chamava de “a ágil modernidade” do pós-Primeira Guerra, se comparado com o mundo em que vivemos hoje, provavelmente evidenciará mais diferenças entre ambos do que entre o Modernismo e o passado que ele tentava refutar. E no entanto nós gostamos de nos chamar pós-modernos, assinalando nossa filiação a um movimento que já não nos diz respeito, e vivemos até hoje a desfiar o novelo desgastado de uma época cujas soluções estéticas já não respondem pelo que somos.

Em suma, a liberdade poética instaurada pelo Modernismo, associada à pouca educação do brasileiro contemporâneo (e me refiro inclusive ao brasileiro universitário, ao aprendiz de poeta), em cujo espírito se reproduzem aquelas noções de doce complacência em relação a si mesmo e grande preguiça quanto ao que está fora dele, gerou um monstro desfigurado, um arremedo de expressão artística inteiramente prescindível àquilo que seria o fim mais nobre da poesia dentro de um dado contexto social: dar voz simbólica e distintiva aos traços desse contexto, localizando-o no tempo, desenvolvendo sua consciência de si próprio.

Tenha-se o Desconstrutivismo como método de análise da realidade e o individualismo fazendo-se confundir com individualidade numa cultura de analfabetos funcionais e eis a genealogia da poesia contemporânea brasileira. Só Deus sabe em que medida é consciente a concatenação entre políticas públicas visando apenas a derreter nossos cérebros e a onda de discursos vazios que as universidades despejam sobre o imaginário coletivo – o fato é que tudo tem convergido perfeitamente para a paralisação de qualquer capacidade crítica e esforço de autoconsciência de nosso país, como um barquinho cujos remadores trabalhassem em sentidos contrários, fazendo-o girar sem sair do lugar.

Há pouco mais de cinqüenta anos, o poeta João Cabral de Melo Neto já alertava para os riscos do que se poderia chamar de falta de responsabilidade ou de consciência do poeta com relação a seu ambiente sócio-cultural. Não que Cabral exigisse do poeta um posicionamento político ou crítica social vazada em arte; seu argumento se desenvolve no sentido de que cabe ao artista pesquisar as formas de expressão mais adequadas ao seu próprio tempo, do contrário seu trabalho resultará inútil, indiferente (e para Cabral as soluções poéticas propostas por seus contemporâneos não passavam de paliativos preguiçosos à verdadeira pesquisa existencial inerente à composição de poesia). Não se trata – reitero – de rejeitar a “arte pela arte”. O que ocorre é ser variável, ao longo do tempo, aquilo a que se pode chamar de “a demanda estética da realidade”. Pode-se argumentar, por exemplo, que os dias atuais já estão saturados da dualidade “arte social” versus “abstracionismo porra louca”; que alternativas a essas correntes estéticas existem, ainda que nossa auto-estima de sobreviventes pós-apocalípticos amputados nos faça duvidar de termos forças para um retorno, digamos, à poesia narrativa, de formas determinadas, difícil de compor pois dependente da apropriação de um modelo milenar, cujo aprendizado só pode ser feito pelo estudo longo e cansativo de sua tradição. Ou seja, talvez o que se deva fazer para resgatar a poesia contemporânea do limbo em que se encontra seja reeducar formalmente os novos poetas, desfazer o legado modernista-desconstrucionista em suas consciências, reequipá-los com os instrumentos milenares de composição poética, já de todo extirpados do seu bojo de conhecimentos  e então quem sabe comecemos a ouvir vozes atuais, vozes de poetas que nos representem, que nos deem a ver a nós mesmos. É a essa preocupação com a manutenção da eficácia cultural da poesia, indiferente por meio de qual solução estética se dê, que João Cabral de Melo Neto chama seus contemporâneos.

Em texto intitulado Da Função Moderna da Poesia (1954), ele descreve do seguinte modo o tipo de poesia que é alvo de sua crítica:

A necessidade de exprimir objetiva ou subjetivamente a vida moderna levou a um certo tipo especializado de aprofundamento formal da poesia, à descoberta de novos processos, à renovação de processos antigos. Afirmá-lo não significa dizer que cada poeta de hoje é um poeta mais rico. Pelo contrário: esse aprofundamento deu-se por meio de uma como desintegração do conjunto da arte poética, em que cada autor, circunscrevendo-se a um setor determinado, levou-o às suas últimas conseqüências. A arte poética tornou-se, em abstrato, mais rica, mas nenhum poeta até agora se revelou capaz de usá-la, em concreto, na sua totalidade.

(...) O poeta moderno, que vive no individualismo mais exacerbado, sacrifica ao bem da expressão a intenção de se comunicar. (...) O alvo desse caçador não é o animal que ele vê passar correndo. Ele atira a flecha de seu poema sem direção definida, com a obscura esperança de que uma caça qualquer aconteça achar-se na sua trajetória.

(...) Tudo o que os poetas contemporâneos obtiveram foi o chamado “poema” moderno, esse híbrido de monólogo interior e de discurso de praça, de diário íntimo e de declaração de princípios, de balbucio e de hermenêutica filosófica, monotonamente linear e sem estrutura discursiva ou desenvolvimento melódico, escrito quase sempre na primeira pessoa e usado indiferentemente para qualquer tipo de mensagem que o seu autor pretenda enviar. Mas esse tipo de poema não foi obtido através de nenhuma consideração acerca de sua possível função social de comunicação. O poeta contemporâneo chegou até ele passivamente, por inércia, simplesmente por não ter cogitado do assunto.


Como não podemos dizer que nosso processo poético, desde João Cabral, tem evoluído, resta-nos apagar nossos garranchos, jogar fora nossos cadernos de esboços, e começar do zero lá de onde tais severas e sóbrias palavras foram pronunciadas.

Este é um artigo pessimista, para cujos fins não interessa enfatizar as parcas reservas de esperança que nos restam, ou os casos excepcionais de poetas verdadeiros – poucos, muito poucos – vistos pelo Brasil nos últimos cinqüenta anos. A inclinação poética existirá enquanto houver homens, e está na estrutura da natureza que, entre todos, n’alguns esta inclinação resulte em traço preponderante, impelindo-os à tradução simbólica da realidade nisso que conhecemos por linguagem poética. Nada garante, entretanto (e, em verdade, os nossos tempos dão perigoso atestado disso), que um povo não possa enveredar por caminhos antinaturais, destruindo-se; que a poesia num homem não se possa perverter em loucura, que o simbolismo, em vez da luz, não possa ser posto a serviço das trevas.

terça-feira, 7 de fevereiro de 2012

Vilém Flusser vai à Escola Politécnica

Este texto, meu primeiro no Ad Hominem, na verdade é um comentário à última postagem de Joel Pinheiro da Fonseca no site da Dicta & Contradicta. Como notei que crescia em demasia, achei por bem lhe dar publicação à parte, de modo que segue abaixo.

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Caro Joel,

A visão de Olavo de Carvalho sobre a impossibilidade de limitar a obra de um filósofo a seus textos, referida por um leitor em comentário a teu post na Dicta & Contradicta e pela qual demonstraste alguma curiosidade, parte do princípio de que os fatos biográficos e outros correlatos importam porque, para ele, e evidentemente não só para ele, o modelo da filosofia só pode ser dado no homem vivo. Só existe filosofia para que seres humanos possam ser filósofos, não para que escrevam teses sobre filosofia, ainda que estas possam auxiliar muito na formação de uma mente filosófica. Os abundantes exemplos de filósofos cuja obra em sua quase totalidade é composta de exposições orais, muitas vezes só impressas quando já mortos os autores, falam por si sós. Os atos importam, sim, porque são eles parte do projeto in fieri que é a vida do filósofo, o qual só cessa com a morte. Nem precisamos falar dos atos propriamente ditos, aliás: basta ver que o ensinamento do filósofo presente – com seus modos, o olhar, as ênfases – importa incomparavelmente mais que seu texto em livro, mesmo quando este corrige algo da exposição oral ou da conduta do homem. Sua “obra”, em suma, é uma tensão que emerge de todos esses elementos. Diante do filósofo nós temos a filosofia, ela mesma, enquanto diante dos textos nós temos uma barreira a mais – o trato refinado e técnico da leitura reimaginativa, tão necessário, claro – entre nós e a filosofia. Não por acaso, isso lembra a compreensão da obra platônica que Thomas Szlezak, indo além de Paul Friedländer e Giovanni Reale, informa em Ler Platão.

Essa é, em parte, a perspectiva do Olavo quanto às assertivas referidas. Um exemplo historicamente notável, embora não tão atinente ao assunto em pauta, é o fenômeno estudado no livro The Envy of Angels, de Stephen Jaeger, recomendado por Olavo aos alunos do Seminário de Filosofia. Embora não o tenha lido ainda, pelas resenhas sei tratar-se de livro que demonstra que todo o grande ensino medieval, anterior ao surgimento da escolástica, é fundado sobre a imagem do mestre. O professor, que gozava de admiração por sua vida piedosa, dedicada à verdade, era a pedra de toque de todo o ensino, cujo primeiro estágio – veja só! – dizia respeito à educação do corpo (aliás, ainda enfatizada de algum modo até um pouco mais tarde, no século XII, por Hugo de São Vítor, nas partes finais do Livro III de seu Didascálicon). Toda a filosofia era dedicada a formar pessoas exemplares. Não se documentava por escrito quase nada. Daí que, ao que parece, a escolástica, máxime a do período final, viria a ser a sistematização formal insípida dos frutos desse ensino que começava a desaparecer. Catedrais góticas, sumas, universidades: tudo isso, longe de ser a glória da cultura medieval, seria seu canto de cisne, para além do qual se elevavam Santo Tomás e Duns Scotus. É um ponto a mais a considerar.

Tu te queixas, Joel, de que o modelo de ensino adotado pela USP não forma pessoas capacitadas a fazerem filosofia, e a razão mais óbvia disso, diríamos a partir do que se expôs acima, é que lá não há filósofos. Ou seja: não há exemplos vivos de a que se endereça, afinal, todo esse trato minucioso com textos. Se releres o ensaio Dois métodos (Dicta & Contradicta nº 6), do Olavo, verás ele advogando que a insistência alucinada dos professores que formaram a USP pelo “rigor” e pela profissionalização do estudo acabou, paradoxalmente, dando em beletrismo. Porque não havia nada além de textos. É como se o mundo de Derrida – melhor: o mundo daquela biblioteca do conto famoso de Borges – houvesse se tornado um pesadelo real.

Tenho como exemplo emblemático desse espírito a conduta de José Arthur Giannotti ao devolver, de forma mal educada, ao meu ver, o esboço de tradução do Tractatus Logico-Philosophicus feito por Vilém Flusser, o qual lho enviara em sinal de boa fé e empolgação com tais estudos no Brasil. Giannotti remeteu os originais de volta, dizendo algo como “Obrigado, mas o que estou fazendo é um trabalho técnico, que não tem nada a ver com o que você faz” (mas se deve lembrar a favor de Giannotti que este mais tarde reconheceria que Flusser estava correto quanto às críticas à sua tradução expostas em artigo de jornal, embora continuasse discordando dos motivos da divergência). Isso pode ser lido nos depoimentos colhidos em uma dissertação de mestrado sobre Flusser apresentada à ECA (MENDES, Ricardo. “Flusser: uma história dos diabos”, in Flusser: uma história do diabo, 2000). Na verdade, esse documento inteiro poderia ser lido a propósito desta discussão. A história do relacionamento de Vilém Flusser com os professores da Maria Antônia é altamente ilustrativa: fizeram um esforço desgraçado para desbancar o filósofo – diziam que ele era só um “chutador”, um “pensador de fim de semana”, um “amador” – justamente porque ele fazia filosofia, porque ele era filósofo. E pior: meio mundo amava aquele velho meio maluco andando pra lá e pra cá com um cachimbo na boca! As reuniões em sua casa, assim como os cursos e palestras que ministrava (por exemplo, na FAAP, no fim da década de 1960, onde aparecia muito mais gente do que as salas poderiam comportar), tinham público que nenhum professor da USP jamais viria a ter – até taxista chegou a reconhecer o Flusser numa corrida, perguntando se era ele fulano de tal que tinha escrito tal coisa no Estadão.

Havia, enfim, muitos ciúmes, e assim o departamento da USP foi hermeticamente fechado, de forma pensada, para vedar a entrada de gente como o Flusser – filósofos de verdade. No fim das contas, apelaram ao expediente de toda hora: “Ele não tem diploma, portanto...” Deixaram-no pro forma integrando o Departamento de Filosofia, mas o mandaram para Caixa Prego: dar aulas na Escola Politécnica! Poucos anos depois, Flusser perdeu a paciência, brigou com a Folha de São Paulo, brigou com o Estadão; não se apresentou para tomar posse na Filosofia, aborreceu-se com alguns de seus alunos – Celso Lafer entre eles, e por um motivo algo ridículo –; cansou de dar aulas particulares para madames da alta sociedade paulista e mandou-se de volta para a Europa. Lá, em menos de um ano já seria reconhecido, em sei lá quantas universidades alemãs, como um dos filósofos com obra mais inventiva à época.

O problema, em última instância, é que temos academias, sem filósofos, impedindo que filósofos surjam. E é em razão desse mesmo problema que Marilena Chauí pode ser uma professora rigorosa no trato de textos dentro da academia, mas fora da sala de aula é capaz até de pôr Espinosa a serviço do PT, como de fato fez.

De resto, Joel, teu texto é excelente, além de muito oportuno.

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

Catecismo do Verdadeiro Católico em tempos de Facebook

Os Dez Mandamentos:

1 - Amarás o latim acima de todas as línguas. Preencherás teu perfil, tanto quanto possível, com citações em latim, para que os demais pressintam a profundidade e a erudição de tua alma; quanto mais longas, melhor. Enquanto o povo entender o que se diz na Missa, tua missão não estará cumprida.

2 - Adotarás uma moral rígida e composta exclusivamente de proibições. Comprazer-te-ás em condenar, do alto de tua cátedra twíttica, os pecados desta época maligna. Ao mesmo tempo, quedarás seguro de que tua alma está limpa, posto que, passando o dia inteiro na blogosfera e nas redes sociais, é-te impossível cometer algum pecado grave (a não ser que passes os olhos pelos decotes das meninas de tua página).

3 - Só te sentirás seguro de tua opinião em algum assunto quando a encontrares em alguma citação descontextualizada da Suma Teológica, de algum documento papal, do Denzinger ou do Tanquerey. Daí em diante, considerarás a questão fechada e não mais pensarás no assunto, excomungando por scrap todos os que discordarem.

4 - Medirás tua virtude pela tua capacidade de chocar a amigos e conhecidos com afirmações obtusas e absurdas, fotos de aborto e sensacionalismos baratos em seu status. Bem sabes que o cristão verdadeiro deve estar preparado para todo tipo de tortura e humilhação, como ser alvo de unfollow e unsubscribe.

5 - Zombarás sem dó das demais religiões e visões de mundo. Quando alguém falar mal do Catolicismo, contudo, farás beicinho, participarás de abaixo-assinado e ameaçarás um processo judicial.

6 - Nutrirás um ódio santo ao Estado laico, e ansiarás profundamente por um governo monárquico, confessional e clerical. Ao mesmo tempo, repudiarás publicamente, e tratarás com imenso despeito, a imensa maioria dos padres e bispos que efetivamente compõem o clero.

7 - Demonstrarás fetiche por tudo o que é medieval ou metido a aristocrático. Chorarás lágrimas de verdadeira indignação ao pensares na Revolução Francesa. Embora sejas plebeu, passarás a vida em meio a sonhos de nobreza, cavalaria, e muita, mas muita, rendinha.

8 - Ao leres documentos papais e escritos de santos antigos, distinguirás cuidadosamente, de um lado, a verdadeira devoção e caridade lá contidas e, de outro, as limitações e preconceitos da época, partidarismos políticos e exageros retóricos. Erigirás em dogma tudo o que pertencer a este segundo grupo.

9 - Excomungarás parentes, amigos e conhecidos que, sendo católicos normais, demonstrarem alguma ideia meio heterodoxa ou dúvida sincera.

10 - Cultivarás, acima de tudo, o amor ao próximo, cuja principal expressão é a ameaça mais ou menos velada de danação eterna.


Os Sete Pecados Capitais:

1. Modernidade
2. Protestantismo
3. Teologia da Libertação
4. Luxúria
5. Missa Nova
6. Revolução Francesa
7. Rock

(No caso das mulheres, substitui-se "Luxúria" por "Calça".)


Pecados Contra o Espírito Santo:


- Relacionar Missa a Ceia
- Dizer "ofensa" ao invés de "dívida" no Pai-Nosso
- Responder à "Paz de Cristo" do fiel ao lado
- Comunhão na mão


Conselhos Evangélicos (no sentido de tirados do Evangelho, e não, de forma alguma, tendo algo a ver com a seita dos adoradores de Satanás que usa deste nome)


- Para ficar seguro, esteja sempre teologicamente à direita da Bula Unam Sanctam de Bonifácio VIII
- Expresse dúvidas salutares quanto à validade dos papas após Pio XII.
- Faça um apostolado online ofensivo o bastante, e com mau gosto o suficiente, para que o Facebook feche seu perfil e o Blogger cancele sua conta. Deus reserva um tesouro nos céus aos coroados por esse Batismo de Sangue.


Os Três Inimigos da Alma de todo fiel:

1. Concílio Vaticano II
2. Pároco da vizinhança
3. Dep. Jean Wyllys
Tecnologia do Blogger.

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